No
circuito das grandes lojas de brinquedos são raras as bonecas negras. E quando
estão presentes, geralmente trazem traços característicos de pessoas brancas,
alterando apenas a cor da pele
Daniele Silveira de São Paulo
(SP)
O racismo e a vontade de se ver representada
levaram Ana Júlia dos Santos a usar sua arte como forma de expressar as
especificidades da população negra brasileira. Há 15 anos, a artesã faz bonecas
negras, que subvertem o estereótipo “nega maluca” e fornecem novas armas para o
combate ao preconceito.
Ana Fulô, como é conhecida, conta que foram poucos
os brinquedos durante sua infância, mas lembra de “nunca ter tido uma boneca
negra”. Talvez, mais marcante do que a falta de referências ainda quando
pequena tenha sido o relato de uma de suas netas sobre um trabalho de escola em
que deveria montar uma “bonequinha”.
“A professora disse ‘Agora quando você fi zer a
boneca negra, você põe um pedaço de Bombril [esponja de aço] para imitar o
cabelo dela’. Ouvi esse relato da minha neta. A minha filha ficou mal, se
dirigiu à professora e questionou isso. Foi retirado o trabalho. Não foi feito
mais.”
Coincidentemente, com a experiência de racismo
vivida pela neta, Fulô explica que procurou uma feira para expor seu artesanato,
mas não havia mais vagas. Então, a coordenadora do espaço sugeriu que ela
fizesse bonecas negras, pois a artesã que desenvolvia esse trabalho havia
falecido. Neste encontro de situações, Fulô deparou-se com a oportunidade de
expressar sua identidade e combater o racismo.
“Eu notei que as meninas negras brincam com as
bonecas brancas, mas nem sempre as meninas brancas brincam com as bonecas
negras. Então, eu quis tirar aquela maneira da pessoa tratar a boneca negra
como a ‘nega maluca’. Eu quis fazer as meninas bonitas. Então, eu comecei a
trabalhar nesse sentido até para elevar a autoestima das nossas crianças e
mostrar para elas que os brinquedos delas podem ser tão ou mais bonitos que os
outros.”
Olhos claros, pele escura
No circuito das grandes lojas de brinquedos são
raras as bonecas negras. E quando estão presentes, geralmente trazem traços
característicos de pessoas brancas, alterando apenas a cor da pele. Dessa
forma, fabricantes de brinquedos não se intimidam em apresentar bonecas negras
com olhos verdes ou, ainda, reforçar preconceitos com a reprodução de
estereótipos.
Artesã e professora do Ensino Fundamental, Lúcia
Makena faz bonecas negras há mais de dez anos. Ela avalia que o mercado formal
de brinquedos não demonstra interesse em conhecer e representar a população
negra.
“A indústria, eu acredito que quando ela faz uma
boneca negra, ela não está muito preocupada com a questão da identidade e da
cultura. Eu acho que eles só colocam tinta marrom e pronto, né. E a preocupação
que eu acho que as empresas deveriam ter é de pensar quem é esse povo negro,
qual é essa cultura, qual o seu modo de ver a vida, o que é importante para
eles, e eles [as empresas] não se preocupam com isso.”
Arte-educadora, Lúcia ainda destaca a importância
do trabalho para a educação das crianças na questão da diversidade
étnico-racial. “Eu acredito que os brinquedos fazem parte desse processo de
formação das crianças. Então, você tem que fazer bonecas contemplando as
etnias. Não pode a criança passar a vida inteira comprando bonequinhas loiras,
loiras, loiras, se muitas vezes elas não são loiras e muitas vezes elas não vão
se identifi car com aquilo. Vai trazer uma impressão de que a sua referência de
beleza é outra.”
Brincadeira séria
Assim como Makena, Fulô considera fundamental a
função educacional dos brinquedos. “Nenhuma criança nasce preconceituosa. Isso
é coisa que vão colocando na cabecinha dela. Eu acho que a partir do momento
que ela começa a brincar, ela tem um entendimento da diversidade de raça.
Coloca as duas para a criança brincar, se a gente percebe que ela não integra a
boneca negra nas brincadeiras, então, ali tem algum problema. Aí é que se
começa a trabalhar a cabecinha da criança.”
Para Fulô, mais do que bonecas, suas criações são
personagens que possuem histórias próprias. Juntamente com a arte do
desenvolvimento de cada novo molde, roupas e outros adereços que acompanham
suas meninas, ela pensa também na identifi cação de cada boneca. Assim,
costuma presentear quem compra seu trabalho com textos sobre o que ela imagina
para cada menina.
26/12/2013
Foto:
Daniele Silveira