Foto: Arquivo/Xingu Vivo |
Em entrevista, D. Erwin Kräutler
questiona: "Por que os teólogos não aproveitaram a audiência com Dilma
para unir-se aos povos indígenas no grito uníssono de “Demarcação já!”?
Por Patricia Fachin
e João Vitor Santos Do IHU-Online
A chegada de um
novo ano quase sempre traz votos de renovação e esperança. Porém, 2015 não
começa com esse espírito para quem vive nas cercanias das obras de construção
da Usina de Belo Monte, em Altamira, no Pará.
Em entrevista
concedida por e-mail para IHU On-Line, o bispo do Xingu e
presidente do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, dom
Erwin Kräutler, denuncia o que já havia previsto: “a grande
euforia que cinco anos atrás tomou conta da cidade de Altamira, a
ponto de muitos carros e motos exibirem adesivos “queremos Belo Monte”,
cedeu lugar a um surdo desânimo.
Até agora, nada do
que comerciantes, empresários e os políticos de plantão esperaram e
prognosticaram como a salvação do oeste do Pará se realizou. A cidade está
quase intransitável. Homicídios, assaltos, arrastões estão na ordem do dia. O
povo está apreensivo e assustado”, pontua.
A difícil situação
apontada por dom Erwin é ainda mais complicada quando se tenta
traçar uma perspectiva de futuro do governo que se inicia. Isso, levando em consideração
as posturas que a presidente Dilma Rousseff vem adotando nesse seu segundo mandato.
Além de não citar questões que são velhas demandas de povos indígenas em seu
discurso de posse, a presidente nomeia Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura.
Sinais que,
para dom Erwin, podem dizer muito do que pode vir pela frente.
“Para Dilma, Belo Monte nunca foi assunto de pauta
com movimentos populares ou a população diretamente impactada. (...) O governo
continua a defender o latifúndio e os privilégios que tem concedido ao
agronegócio contra os povos indígenas. (...) O rolo compressor continuará a
passar por cima de todos nós aqui noXingu e em breve por cima
dos povos do Tapajós e de outros rios da Amazônia”,
prevê.
Dom Erwin Kräutler é bispo
prelado de Xingu, PA, presidente do Conselho Indigenista Missionário - CIMI.
Confira a entrevista.
Dom Erwin Kräutler |
IHU On-Line - Há mais de cinco anos o senhor alerta para os
riscos e implicações sociais e ambientais da construção de Belo Monte. Como tem
sido acompanhar esse processo, desde a elaboração do projeto até o início da
construção da usina?
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Dom Erwin Kräutler - Na realidade,
essa luta contra o barramento do Rio Xingu já dura mais de 30 anos.
Por algum tempo acreditávamos que o projeto fosse arquivado. Foi engano.
Quando Lula assumiu o governo, em vez de definitivamente renunciar a
essa monstruosidade, abraçou-o e secundando os pareceres eufóricos de sua
ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, deu ênfase especial à
execução da obra, incorporando-a ao Programa de Aceleração
do Crescimento - PAC.
As implicações
sociais e ambientais estavam programadas, especialmente a partir daquele dia
fatídico em que o Governo entendeu que as condicionantes exigidas pelo Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente - IBAMA e pela Fundação Nacional do Índio
- FUNAI não precisavam ser atendidas antes da instalação do canteiro de
obras, mas poderiam ser cumpridas ao longo da execução do projeto. Com essa
decisão, não foi instalado apenas o canteiro de obras, mas também o caos
em Altamira. Durante a campanha eleitoral, a presidente
Dilma veio visitar Belo Monte para gravar um vídeo. Seu avião
pousou no aeroporto de Altamira. No entanto, ela não teve coragem de
entrar na cidade para ver “in loco” o descalabro que nos assola.
IHU On-Line - Em que estágio se encontra a construção de
Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler - Volta e meia
se noticia que a construção estaria atrasada por causa das várias manifestaçõescontrárias ao projeto. Mas, tenho a impressão
de que está bastante adiantada. Já são derrubadas as casas nos bairros que
serão atingidos, e as famílias, transferidas para as novas moradias construídas
em concreto. Sei, no entanto, que nem de longe haverá casas suficientes para
abrigar todas as famílias.
IHU On-Line - O senhor tem visitado várias comunidades da
Prelazia do Xingu. Qual é o sentimento das pessoas em relação à construção de
Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler - A grande
euforia que cinco anos atrás tomou conta da cidade de Altamira, a ponto de
muitos carros e motos exibirem adesivos “queremos Belo Monte”,
cedeu lugar a um surdo desânimo. Até agora, nada do que comerciantes,
empresários e os políticos de plantão esperaram e prognosticaram como a
salvação do oeste do Pará se realizou. A cidade está quase intransitável.
Homicídios, assaltos, arrastões estão na ordem do dia. O povo está apreensivo e
assustado.
Houve certo boom na
construção civil devido à procura de aluguéis. Alguns ganharam somas
exorbitantes cedendo quartos ou casas a preços exagerados. Mas essa onda passou
quando a Norte Energia instalou a vila residencial bem próxima
ao canteiro de obras. A vila possui infraestrutura completa, com
escola, farmácia, supermercado, restaurantes, padaria, academia de ginástica,
clube, biblioteca e áreas livres para recreação e lazer e ainda serviços de
clínica geral, ginecologia, cardiologia, oftalmologia, pediatria, odontologia,
pronto-atendimento, laboratório e salas de raios-X e ultrassonografia. Essas
comodidades de primeiro mundo estão em manifesto contraste com as condições em
que vivemos na cidade da Altamira.
Lula me assegurou,
num dos encontros que tive com ele, que o governo havia aprendido a lição dos
erros cometidos em outros empreendimentos e Belo Monteseria
totalmente diferente. Mas, na realidade, mais uma vez se repete a já conhecida
história da Usina Hidrelétrica Tucuruí, também no Estado do
Pará (a 350 km ao sul de Belém), construída a partir de 1975 e inaugurada em
novembro de 1984. Surgiu uma cidade-luxo em torno da obra, e a cidade de Tucuruí foi
condenada à categoria de cidade-lixo. Nosso grande medo em Altamira é de que,
na inauguração de Belo Monte, as prometidas melhorias em
infraestrutura nem de longe estejam concluídas e, depois da festa, se desmonta
o palanque e a população ficará entregue à própria sorte.
IHU On-Line - Que espécie de conflitos a construção de
Belo Monte tem gerado entre as comunidades indígenas e entre indígenas e não
indígenas? Como Belo Monte tem afetado e até mesmo rompido com a cosmologia
indígena?
Dom Erwin Kräutler - Desde que
decidiu construir Belo Monte, o governo se equivocou
quanto aos impactos que os povos indígenas da Grande Volta do Xingu iriam sofrer. Propagou-se por
todo o Brasil a informação de que nenhuma aldeia indígena seria inundada. E é
verdade. De fato, a água do reservatório não vai submergir nenhuma aldeia. O
contrário acontecerá: o rio que banha as aldeias vai sumir ou se tornará um
córrego atrofiado com uma sequência de lagoas bem rasas. O peixe desaparecerá e
sem água suficiente não haverá condições de sobrevivência nestes lugares. Os
indígenas forçosamente serão desterrados para outros locais. Muitos já se
transferiram para a cidade e perdem sua cultura, seus costumes e sua maneira
própria de organizar-se em comunidade. Lamentavelmente, grande número sucumbe
aos vícios dos brancos.
IHU On-Line - O senhor leu a carta do Grupo de Emaús à
presidente Dilma? Como vê as manifestações do grupo de teólogos acerca dos
impactos dos megaprojetos, sem fazer referência direta às hidrelétricas?
Dom Erwin Kräutler - A carta entregue pelo Grupo Emaús à Presidente Dilma em
audiência que ela concedeu a uma delegação dessa entidade no dia 26 de novembro
de 2014 tem o título “O Brasil que queremos”. Vejo na escolha do título certa
analogia com o documento final da Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável– Rio + 20 (20
a 22 de junho de 2012) “O futuro que queremos”. É um documento chocho e
insosso, sem consequências palpáveis. Assim também a carta dos teólogos não faz
nenhuma reivindicação pontualizada, nenhuma exigência concreta, nenhuma
denúncia circunstanciada, fornecendo nomes e endereços. E destarte, logicamente
também não fala das consequências perniciosas de Belo Monte e
de muitos outros projetos do Programa de Aceleração do Crescimento -
PAC. Não empresta sua voz — como se esperaria de teólogos — às famílias
arrancadas de seus lares e suas terras e de tantos outros que foram atingidos
por barragens ao longo das décadas passadas. Não reclama nada. Só pede uma
“reavaliação”.
Da mesma maneira,
só fala genericamente da defesa dos direitos indígenas e quilombolas. Não emprega uma única vez a palavra
“demarcação”. Dilma impôs no ano de 2013 a paralisação dos
procedimentos demarcatórios de terras indígenas. Assim, demonstrando claramente
que as atenções de seu governo estão voltadas aos setores da economia e da
política ligados ao latifúndio, ao agronegócio, às empreiteiras, mineradoras e
empresas de energia hidráulica, que visam exclusivamente à
exploração da natureza em terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas.
O descumprimento dos parâmetros constitucionais da Carta Magna de 1988 que
previu a demarcação de todas as áreas indígenas num prazo de cinco anos é o
lúgubre pano de fundo de todos os conflitos sangrentos que causaram centenas de
mortes de indígenas em todos os quadrantes do país. Por que os teólogos não
aproveitaram a audiência para unir-se aos povos indígenas no grito uníssono de
“Demarcação já!”?
Ao assumir o
segundo mandato, a presidente da República chegou a propor um diálogo com a
sociedade. A pergunta que me faço é se ela realmente está disposta a ouvir, a
discutir, a receber críticas, a conversar, por exemplo, com os povos indígenas
ou os atingidos por barragens. Em relação a Belo Monte, o seu
predecessor na Presidência me falou, em 22 de julho de 2009, que o diálogo tem
que continuar. Mas foi Lula mesmo que o abortou. Para Dilma, Belo
Montenunca foi assunto de pauta com movimentos populares ou a população
diretamente impactada. Dilma se negou a qualquer diálogo sobre este tema. Pelo
contrário, mandou recado a quem fizesse oposição à menina de seus olhos:Belo
Monte é irreversível!
E como vimos há
poucos dias, Dilma não se deixou impressionar nem um pouco
pelas manifestações contrárias à nomeação de Kátia Abreu,
implementadas por amplos setores da sociedade brasileira. Na entrevista
que Kátia Abreudeu à Folha de São
Paulo no dia 5 de janeiro, dia de sua posse como ministra da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento, ficou bem claro qual é a posição do
governo em relação aos povos indígenas. O governo continua a
defender o latifúndio e os privilégios que tem concedido ao agronegócio contra
os povos indígenas. Povos que, na opinião grotesca da ministra, “saíram da
floresta e passaram a descer nas áreas de produção”. Não é um fato altamente
indicativo que a presidente Dilma, nos dois discursos do dia de sua
posse, não fez uma única referência sequer aospovos indígenas?!
IHU On-Line - Como o senhor avalia a reeleição da
presidente Dilma e as declarações logo após as eleições, de que a hidrelétrica
é uma das prioridades do governo?
Dom Erwin Kräutler - Eu não
esperava outra coisa. Se durante o primeiro mandato e ao longo da campanha o
discurso foi esse, como ela iria mudar depois de conferir os votos e se dar
conta de sua reeleição? O rolo compressor continuará a passar por cima de todos
nós aqui no Xingu e em breve por cima dos povos do
Tapajós e de outros rios da Amazônia. As reivindicações da
população não contam. Nem o Plano Básico Ambiental é cumprido.
É alterado, sempre que assim convier ao governo.
IHU On-Line - Como compreender que pessoas ligadas às CEBs
e à Igreja, hoje presentes no governo, defendem a construção de hidrelétricas,
sem considerar os impactos às comunidades indígenas, às comunidades
tradicionais e à própria população de Altamira, por exemplo?
Dom Erwin Kräutler - Respondo com
um comentário de um padre gaúcho a respeito da carta de repúdio do Conselho Indigenista Missionário - Cimi à entrevista
de Kátia Abreu. Partilho do mesmo sentimento do padre: “Sou padre
diocesano há 50 anos (...). Desde meus últimos anos de Teologia e até hoje
sempre me comprometi na defesa dos direitos dos mais pobres, entre os quais
indígenas e sem terra. Conseguimos avançar pouco e agora o freio é escancarado
com a prepotente Kátia Abreu. Engajei-me na construção
do PT imaginando que o poder em mãos de lideranças, boa parte formada na visão
da Teologia e Pastoral populares, constituiriam um ‘outro Brasil possível’, mas
caíram no ralo comum. Nos traíram!”.
IHU On-Line - O senhor conhece Thais Santi, a nova procuradora
do MP de Altamira? Quais são os desafios dela diante das dificuldades em torno
de Belo Monte, considerando que já passaram outros procuradores por Altamira —
a exemplo de Felício Pontes Jr. —, mas que pouco conseguiu avançar por conta da
estrutura judiciária?
Dom Erwin Kräutler - Conheço, sim,
a Thais Santi. Como também o Felício Pontes. A minha amizade com Felício já
é de muitos anos. Sempre estive ligado a ele na defesa dos direitos dos povos
do Xingu. E ainda de modo especial após o assassinato da Irmã
Dorothy, que no próximo dia 12 de fevereiro completará dez anos.
A Thaís está
em Altamira desde 2012. Muito a estimo e admiro a sua coragem.
É uma verdadeira dádiva paraAltamira. Posso dizê-lo em relação a seu
profissionalismo e sua competência, à sua determinação na busca de solução para
as mais diferentes questões que é solicitada a dirimir. Além disso, é de uma
personalidade cativante. Sabe ouvir o povo simples. Faço votos de que não saia
tão cedo de Altamira. É impressionante e esclarecedora a entrevista que Thaís deu
a Eliane Brum: A anatomia de um etnocídio.
Tive, aliás, a
felicidade de conhecer várias jovens procuradoras que passaram por Altamira e
lamentavelmente ficaram apenas pouco tempo. Lembro-me também com gratidão do
procurador Marco Antônio, que voltou para o seu estado de origem,
o Mato Grosso do Sul. Em conversas descontraídas descobri que todos
sonharam com um Brasil diferente, um Brasil bem “legal” (no mais estrito
sentido da palavra!) e queriam dar a sua contribuição, lutando pelos direitos e
a dignidade dos povos do Xingu, indígenas, migrantes, ribeirinhos e
habitantes das cidades e vilas ao longo deste rio majestoso e maravilhoso,
condenado a morrer. Esbarraram quase sempre em estruturas judiciárias adversas
que obedecem a outros interesses.
IHU On-Line – Nesse começo de 2015, que mensagem é
possível transmitir àqueles que vivem as consequências de Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler - Na passagem
de ano escrevi uma meditação que quero deixar aqui como palavra final de nossa
entrevista:
31 de dezembro, 24:00 horas:
É 1º de janeiro, 0,00 hora.
O ano velho e o novo se tocam.
O que passou, não volta mais.
O futuro está por vir.
O “agora” é agora!
Mas, enquanto falo “agora”,
Já se foi.
Tudo flui, voa, some, morre.
E acorda, floreia, revive, brilha de novo.
É 1º de janeiro, 0,00 hora.
O ano velho e o novo se tocam.
O que passou, não volta mais.
O futuro está por vir.
O “agora” é agora!
Mas, enquanto falo “agora”,
Já se foi.
Tudo flui, voa, some, morre.
E acorda, floreia, revive, brilha de novo.
A noite se torna dia,
A luz dissipa a escuridão.
A vida vence a morte.
A luz dissipa a escuridão.
A vida vence a morte.
Nosso caminho nos leva
Até o último „agora“:
Quando vida e morte
São como 24 e 0:00 horas
E o tempo esvanece na eternidade.
Até o último „agora“:
Quando vida e morte
São como 24 e 0:00 horas
E o tempo esvanece na eternidade.
Até lá, Cada momento é um presente,
Mas também um convite para amar.
Mas também um convite para amar.
Fonte:
http://www.brasildefato.com.br/node/31027
16/01/2015