Militante do movimento negro dos Estados Unidos, Biko Barker discute o
racismo na sociedade norte-americana, evidenciado pela violência policial em
Ferguson e Baltimore.
Por José Coutinho e
Simone Freire
Freddie Gray, jovem negro de 25 anos residente em Baltimore, no distrito
de Maryland (EUA), foi preso no dia 12 de abril após tentativa de fuga. Apesar
de portar apenas um canivete, Gray foi colocado num camburão e misteriosamente
sofreu uma grave lesão na espinha, que resultou em seu óbito uma semana depois.
Michal Brown, jovem negro de 18 anos, residente em Ferguson, estava a
caminho da casa de sua avó no dia 09 de agosto de 2014. Foi abordado por
policiais e, de mãos levantadas, foi baleado.
Os assassinatos de Gray e Brown deixaram claro à sociedade estadunidense
que, apesar da abolição da escravidão em 1863 e o fim da segregação racial na
década de 1960, o racismo continua enraizado no país. Essas mortes, no entanto,
foram o estopim para grandes manifestações da comunidade negra contra o
racismo, o preconceito, e exigindo que a justiça fosse feita.
“O racismo institucional não é efetivo porque uma pessoa aqui ou ali é
racista; ele funciona porque as pessoas, às vezes sem saber, propagam práticas
e políticas preconceituosas que estão enraizadas na sociedade, e que acabam
enfraquecendo, desvalorizando e as vezes matam pessoas negras”, analisa Biko
Baker, doutor em Tecnologia e diretor executivo da organização League of Young Voters Education Fund (Fundo de
Educação da Liga de Jovens Eleitores - tradução livre).
Em entrevista concedida ao Brasil de Fato, Biko discute o
racismo na sociedade estadunidense, evidenciado pela violência policial em
Ferguson e Baltimore, e como o racismo nos EUA se assemelha ao brasileiro.
Biko Baker, militante do movimeno negro nos EUA |
Abaixo, confira a entrevista:
Brasil de Fato - O racismo e preconceito nos EUA
são ensinados em casa? Onde mais podemos identificar que o racismo é propagado
na sociedade norte-americana?
Biko Baker - Eu acredito
que o racismo é ensinado em casa, num nível individual. Mas nunca podemos
esquecer que o racismo é perigoso porque tem um impacto em instituições, como
escolas, cortes de justiça, até mesmo em bancos, negros têm mais dificuldades
para obter empréstimos e começar um negócio.
Também há discriminação no espaço de trabalho, que previne pessoas
negras qualificadas de conseguir empregos.
O racismo institucional não é efetivo porque uma pessoa aqui ou ali é
racista; ele funciona porque as pessoas, às vezes sem saber, propagam práticas
e políticas preconceituosas que estão enraizadas na sociedade, e que acabam
enfraquecendo, desvalorizando e às vezes matam pessoas negras.
Brasil de Fato - Qual a relação dos negros com as
instituições de Estado e governos?
Biko Baker - Os negros têm muito poder político nos EUA.
Barack Obama não teria sido eleito presidente se não fosse a força do nosso
voto. Pessoas negras têm poder em um nível local, especialmente em cidades como
Atlanta e Filadélfia, com prefeitos negros. O problema é que o sistema em que
vivemos tem um histórico de discriminação e más políticas internas, que
propagam a discriminação.
Os EUA acabaram com o racismo explícito com o fim das leis Jim Crow (que
legalizavam a segregação racial no país) nas décadas de 1950 e 1960, mas
estabeleceram o racismo institucional quando estabeleceu, nas décadas de 1970 e
1980, a guerra contra as drogas.
Então, mesmo que pessoas negras tenham força política, cidades que são
governadas por elas são igualmente opressoras para a população negra. E isso se
dá porque esses governos locais continuam avançando as políticas fundadas na
guerra contra as drogas.
Brasil de Fato - Que políticas de guerra contra as
drogas institucionalizaram o racismo?
Biko Baker - Mesmo pessoas
negras e brancas consumindo a mesma quantidade de drogas no mesmo nível, a
guerra contra as drogas tem os maiores e mais danosos impactos nas comunidades
de cor.
Há um superpoliciamento nas comunidades negras, e a justiça
historicamente tratou as drogas usadas em comunidades pobres, como o crack, que
é mais acessível que a cocaína, com penalidades mais duras.
A disparidade das sentenças em certo ponto foi de 100 usuários de crack
presos para cada usuário de cocaína. Mesmo com o Ato de Sentença Justas de 2010
fazendo a proporção mais igualitária, a diferença ainda é de 18 para 1.
No fim das contas, se você é negro e pobre, você tem mais chances de ser pego, preso e julgado por usar drogas, porque a polícia tem mais chances de estar na sua comunidade procurando de uma forma doentia por traficantes e usuários.
No fim das contas, se você é negro e pobre, você tem mais chances de ser pego, preso e julgado por usar drogas, porque a polícia tem mais chances de estar na sua comunidade procurando de uma forma doentia por traficantes e usuários.
Brasil de Fato - Como você avalia o que aconteceu
em Ferguson, em termos da brutalidade policial e também como a população lidou
com isso nos protestos?
Biko Baker - Os jovens
negros não têm medo. Eles também são muito conscientes politicamente. Os jovens
militantes de Ferguson disseram que já bastava e se mantiveram contra a
polícia, não parando de se manifestar desde 9 de agosto de 2014.
Em minha opinião, St. Louis, Fergunson, ainda lutam contra os fantasmas da escravidão. Missouri foi uma das últimas cidades a abolir a escravidão, e eu acredito que é por causa disso que há uma propensão para ignorar o racismo.
Mas os jovens negros não vão deixar a sua história ser ignorada. Então
eles tomaram as ruas, todos os dias por nove meses. A mídia tradicional tenta
focar nos incêndios e saques, mas, na maior parte, o que eu vi foram jovens
respondendo à dor e violência com arte, amor, fazendo com que suas vozes fossem
ouvidas.
Denunciar sua situação de opressão é o primeiro passo para elevar a
consciência, e acredito que Ferguson mostrou que estamos começando a ver a
força política dos jovens.
Brasil de Fato - Qual foi o papel do hip hop e das
redes sociais para mostrar o que ocorria em Ferguson? Como a mídia tradicional
tratou os protestos?
Biko Baker - O mundo não
estaria falando de Ferguson ou Baltimore se não fosse pela força da arte e as
redes sociais. Conectados por plataformas como WhatsApp, Facebook e Twitter, os
jovens dos EUA estão compartilhando e aprendendo das experiências de cada um.
Não é sem motivo que as vozes mais ouvidas nas lutas são de rappers e
artistas; eles são as vozes mais críveis e experientes dentro das comunidades
negras.
A grande mídia adoraria virar a história e tratá-las pelo seu viés
conservador, mas ela não pôde ignorar a indignação dos negros nos EUA. A voz
deles era muito forte, e eles estavam muito conectados.
Brasil de Fato - Depois de Ferguson, temos
Baltimore. O que conecta a violência nas duas cidades? Você acha que os
protestos vão mudar a forma como os negros são tratados nos EUA?
Biko Baker - De tudo que
sei do que ocorreu em Baltimore, a situação é similar a Ferguson. Baltimore é
uma cidade do sul do país que ainda tem de lidar com os problemas raciais.
Pobreza e racismo não podem ser colocados debaixo do tapete e
esquecidos. Uma hora, como ocorreu, isso sempre vai aflorar.
Brasil de Fato - No Brasil, com a eleição de Dilma
Rousseff, pela primeira vez, muitas expectativas foram criadas em relação às
lutas de igualdade de gênero. Expectativas que não se tornaram realidade. Nos
EUA, com a eleição de Obama, houve a mesma expectativa em relação à questão
racial?
Biko Baker - O movimento
negro nunca teve grandes expectativas de que Obama realizasse milagres. Mas
também não pensamos que muitos brancos fossem tão relutantes à mudança na
presidência.
No entanto, esperávamos que pelo menos houvesse um novo caminho aberto
para pessoas de cor e pobres. Foi isso que ele nos prometeu durante sua
primeira campanha. E mesmo assim vivemos em período tão carregado pelo preconceito
racial como em 1968.
Os apoiadores de Obama apontam que nosso Legislativo dividido é a fonte
dos problemas, mas acredito que nosso presidente deve ser criticado por não
antecipar o nível ao quais seus oponentes se rebaixariam, usando velhos
estereótipos racistas para atacá-lo.
No fim das contas, estamos debatendo o racismo e o assassinato de
pessoas negras, ao invés de discutir formas de trabalhar juntos e fazer com que
pessoas pobres possam ter melhores condições de vida. Talvez Obama tenha sido
ingênuo e não entendeu a força da elite política dos EUA para manter o status
quo.
O que eu sei é que os negros não estão melhores economicamente do que
estavam antes dele entrar na Casa Branca, e seu legado será manchado por isso.
Brasil de Fato - A maioria das mortes de negros no
Brasil nas periferias são registradas pela polícia como “autos de resistência”.
Esse termo jurídico é questionado por movimentos sociais, porque protege o
policial e culpa quem morreu sem qualquer investigação. Nos EUA, o termo usado
é “homicídio justificado”. A situação nos EUA de proteger a polícia ao matar
negros é similar ao Brasil?
Biko Baker - Antes dos
celulares com câmeras, a polícia usava o “homicídio justificado” como desculpa
para seus abusos. Agora, com tantas dessas tragédias sendo flagradas e
registradas, ficou claro para a sociedade que a polícia nem sempre conta a
verdade.
Enquanto muitos advogam colocar câmeras nos uniformes dos policiais e
dizem que isso vai resolver o problema, o movimento negro acredita que o
sistema inteiro em que vivemos construídos na criminalização e militarização de
comunidades pobres, é o problema. Muitas pessoas e instituições se beneficiam
economicamente desse sistema, como departamentos de polícia locais, que recebem
enormes quantias de dinheiro do governo. A menos que consigamos que o Estado
valorize nossas vidas, a polícia sempre vai sair impune ao assassinar negros.
Brasil de Fato - Também no Brasil, o Congresso quer
passar um projeto de lei que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. O EUA
adotou medida similar, mas vários estados já discutem aumentar a idade penal,
por perceber que a medida não reduz a violência. Como você analisa a intenção
de reduzir a maioridade?
Biko Baker - Os EUA
prenderam aproximadamente 1 milhão e 300 mil jovens com menos de 18 anos em
2012. Só 61 mil dessas prisões foram relacionados à crimes violentos. Isso
significa que prendemos uma maioria por crimes não violentos. Isso não é um
pouco extremo?
É claro que o sistema de justiça juvenil é um grande negócio para
governos locais que precisam dar empregos à classe trabalhadora que foi
demitida pela economia em crise.
Os EUA construíram um modelo econômico inteiro baseado em punir crimes
não violentos, quando isso deveria ser tratado nas comunidades locais e
famílias.
No fim das contas, se tornou legal mirar nos
jovens, porque torna mais fácil justificar a criminalização contínua das
comunidades pobres negras. Se o medo for criado e as pessoas acreditarem que a
juventude quer assassiná-las, é mais fácil justificar esse modelo quebrado de
sociedade em que vivemos.
Fonte:.brasildefato.com.br
13/05/2015