Janaína Oliveira |
Por Isabela Vieira, repórter da Agência Brasil
Rio de Janeiro - Historiadora e coordenadora do Fórum Itinerante de
Cinema Negro (Ficine) Janaína Oliveira (Fernando Frazão / Agência Brasil)
Com quatro sessões lotadas no prestigiado Cinema
Odeon – incluindo a primeira lotação para 600 pessoas após reforma da casa, no
centro do Rio de Janeiro –, o filme Kbela, de Yasmin Thainá, é um
dos mais importantes representantes de uma leva de produções feitas por
realizadoras negras que ganharam o mundo em 2015. São narrativas que contam com
mulheres negras na direção, na produção e como protagonistas, em um terreno
onde elas costumam ser estereotipadas.
Levantamento da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj), feito em 2014, já apontava para a sub-representação da mulher
negra no cinema nacional. Para a professora do Instituto Federal do Rio de
Janeiro (IFRJ) e doutora em história, Janaína Oliveira, Kbela rompeu
essa lógica em 2015.
Coordenadora do Fórum Itinerante de Cinema Negro
(Ficine), um espaço de formação e reflexão sobre a produção de realizadores
negros, Janaína afirma que Kbela não está sozinho.
Segundo a pesquisadora, que em 2015 circulou por
festivais em países como Burkina Fasso, Cabo Verde e Cuba discutindo e
divulgando essas produções, os filmes das realizadoras negras brasileiras
alcançaram qualidade internacional e já é uma referência, embora pouco
conhecidos no próprio país.
A professora, que é curadora do Festival
Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou (Fespaco), o maior de todo o
continente, recebeu a Agência Brasil em seu apartamento, em Santa Teresa, para
conversar sobre a repercussão dessas produções brasileiras. Para ela, o cinema
negro é um campo político, de luta por representação e desconstrução de
estereótipos.
Leia os principais trechos da entrevista:
Agência Brasil: O que é o
cinema negro?
Janaína Oliveira: O que eu venho dizendo, e as pessoas ficam
chateadas, é que não dá para definir cinema negro. É um campo político, de luta
por representação, de desconstrução de estereótipos, de tornar as
representações mais complexas, de ampliação de representações nos espaços mais
diversos. Há quem defina, eu não defini. Definir é limitar. O cinema negro tem
toda uma história, que começa nos Estados Unidos, passa pela diáspora negra,
caminha por vários lugares. Por exemplo, hoje, além do samba, carnaval e
futebol, temos o estereótipo da violência na favela presente. [O filme] Cidade
de Deus [ambientado em uma favela e com protagonistas negros]
claramente não é cinema negro. A questão é: dá para fazer imagens
contra-hegemônicas, que desconstroem o estereótipo dentro de um grande estúdio
de cinema ou de uma grande rede de televisão? É difícil.
Agência Brasil: Qual foi
sua primeira experiência com esse formato?
Janaína: Sempre gostei de
cinema e muito de cinema africano. O primeiro filme africano que vi foi no
festival de Cinema do Rio [de Janeiro], o Vida sobre a Terra, de
Abderrahmane Sissako [diretor, escritor e cineasta da Mautiânia, autor de
Timbuktu, longa-metragem que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro em
2014 e a prêmio no Festival de Cannes no mesmo ano].
Agência Brasil: Quem está
produzindo cinema negro hoje no Brasil?
Janaína: Antes é
importante esclarecer que estamos falando de curta-metragens, falar de
longa-metragem é outra coisa, são pouquíssimos os negros que fizeram filmes de
longa-metragem de ficção na nova geração, aliás, fica a provocação. Nesse
universo, onde as pessoas efetivamente produzem – seja com ajuda de editais,
seja nas universidades –, o que temos, de filmes de expressão, que atingiram
patamar de técnica e de qualidade são os filmes feitos por mulheres negras. E
são várias.
Agência Brasil: Quais?
Janaína: São as produções
de Renata Martins, que fez Aquém das Nuvens e agora está
fazendo uma websérie fenomenal, a Empoderadas, que só fala de
mulheres negras, tem a Juliana Vicente, que fez o Cores e Botas e
o Minas do Rap e está produzindo um filme sobre os Racionais
MCs. Tem a Viviane Ferreira, que fez o Dia de Jerusa, que foi para
[o Festival de] Cannes. Tem uma menina que está nos Estados Unidos, Eliciana
Nascimento, autora de O Tempo dos Orixás, tem Everlaine Morais, de
Sergipe, que fez dois curtas muito bons e vai estudar cinema em Cuba. E do Tela
Preta [coletivo de realizadoras negras ligado à Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB)], a Larissa Fulana de Tal, que fez o Lápis de
Cor e acabou de lançar o Cinzas. No Rio, o nome da vez é
Yasmin Thayná, que está bombando com o Kbela. Um filmaço, no
sentido da técnica e das referências. Quer mais?
Cena do curta-metragem Kbla, de Yasmin Thayná (Divulgação) |
Agência Brasil: Então há
mais filmes com estética e cultura negra nos últimos anos?
Janaína: Nos últimos dez
anos nos acostumamos a ver mais negros nas telas fazendo alguma coisa. Mas é
pontualmente, fazendo algumas coisas. Ainda estamos presos a um universo de
estereótipo. Que não é só o do bandido, o do cafetão, mas o da falta de
complexidade das personagens. Os relacionamentos amorosos, os dilemas da vida,
onde estão essas coisas? Não estão nas telas.
Agência Brasil: Qual a
novidade nas produções brasileiras que você tem levado aos festivais?
Janaína: Uma coisa
bacana é que nessa conexão com o continente africano, estamos redespertando
debates. Em Moçambique, por exemplo, temos o retorno de que os vídeos sobre
transição capilar (do cabelo alisado para o cabelo crespo, natural) tem ajudado
mulheres e meninas de lá. Esses produtos, principalmente filmes disponíveis no
Youtube, são feitos por meninas negras brasileiras. É quase uma rede de
solidariedade. O audiovisual tem a capacidade de fazer isso.
Agência Brasil: E
como aumentar a demanda por esse conteúdo no Brasil?
Janaína: A formação de público
é uma questão central. Os filmes precisam ser vistos. Mas mostrar os filmes [em
salas de cinema ou televisão] não é suficiente, se fosse, o problema estava
resolvido. As pessoas não veem porque elas não gostam e mudar o gosto leva
muito tempo. Enquanto você tem uma novela premiada como a Lado a Lado,
da Rede Globo [que recebeu o Emmy Internacional em 2013], passando às 18h, em
50 anos da principal emissora de TV do país, você tem uma série como o Sexo
e as Negas, em horário nobre com forte divulgação comercial e circulação.
Agência Brasil: Mas é
preciso começar a estimular, não?
Janaína: Ainda
vivemos em um contexto de imagens que precisamos desconstruir. O cinema é uma
indústria, uma indústria de dinheiro que constrói imagens que querem ser vistas.
Temos um padrão de cinema de Hollywood, daquilo que você espera ver. E esse
padrão repete as estruturas de um universo eurocêntrico onde muito claramente
está dividido o lugar das pessoas negras e brancas. Então, o que você vê, em
geral é negros e negras em situação de
subserviência, nunca em destaque, sempre com atributos negativos. Isso está no
universo da colonização da cultura, do gosto, da estética. É a mesma razão para
a gente falar: a coisa está preta quando a situação é negativa, por que denegrir
é uma coisa ruim? Por que usar “a coisa fica preta” é ruim? A gente não
inventou isso, a gente reproduz isso e isso está nas telas. O cinema que existe
é um cinema eurocêntrico que determina padrões estéticos, narrativos, rítmicos
e musicais. Se não é isso, pessoas não gostam. Os filmes brasileiros de
sucesso, como Tropa de Elite, seguem esse padrão.
Agência Brasil: E o que é preciso fazer?
Janaína: Formar
redes de distribuição desses filmes. Se possível, junto com debates. É ir além
da exibição. As novas imagens têm que chegar às salas de aula, criar aderência.
Além de mais editais, mais parcerias e a presença do Estado, que facilita a
produção e a circulação.
Fonte: https://br.cinema.yahoo.com
26 de
dezembro de 2015