Estamos tentando recuperar nossa PRÓPRIA VOZ
Como
pode ser observado na publicação passada, “Outono Austral”, destacamos uma
série de eventos históricos que aconteceram no mês de maio, que poderia ser
trabalhado em sala de aula sem nenhum prejuízo aos assuntos que comumente aparece nos
manuais escolares, além de um estudo das obras de Eduardo Galeano e Gabriel
García Márques. Com efeito, esse material já seria suficiente para o período de
maio; e assim sendo, teríamos cumprido a nossa missão com o nosso alunado. Mas,
minha intuição aliada à inquietação e incompletude humana, me dizia que ainda estava
faltando alguma coisa para fechamos este mês com “chave de ouro”, como diz o
adágio popular. Deste modo, revirando o meu baú encontrei um importante decreto federal:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art.
84, inciso II, da Constituição,
DECRETA:
DECRETA:
Art. 1º Fica instituído o Dia Nacional do Cigano, a ser comemorado no dia
24 de maio de cada ano.
Art. 2º As Secretarias Especiais de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial e dos Direitos Humanos da Presidência da República apoiarão as medidas a
serem adotadas para comemoração do Dia Nacional do Cigano.
Art. 3º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 25 de maio de 2006; 185o da Independência e 118o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Dilma Rousseff
Publicado no D.O.U. de 26.5.2006
Porém, o referido decreto faz uma merecida e justa homenagem
às minorias étnicas, especificamente, os ciganos que muito contribuíram
culturalmente para a construção da nossa pátria. Embora hoje, exista apenas um
grupo muito pequeno de ciganos que habitam o espaço territorial brasileiro
resistindo e mantendo viva a sua cultura milenar, isto não tira a sua
importância ou inserção nas políticas públicas que assiste as minorias étnicas do
país. No entanto, a própria Constituição Federal de 1988 apontam artigos que,
por extensão, engloba o respeito e os direitos das minorias étnicas. A partir
deste decreto federal, fica estabelecido no nosso calendário que no dia 24 de maio é
comemorado o Dia Nacional do Cigano. Ou seja, o Dia da Consciência Cigana. Além
deste importante decreto federal encontramos também uma preciosa entrevista
intitulada “Estamos tentando recuperar nossa PRÓPPRIA VOZ” do escritor Eduardo
Galeano, concedida à jornalista Fania Rodrigues da Revista Caros Amigos em
2009. Estampei um sorriso de orelha a orelha no rosto; pois, temporariamente
minha busca chegara ao fim. Contudo, um decreto federal em prol dos menos favorecidos e
essa entrevista do Galeano ao nosso entender contribuem para a formação
humanística e crítica dos alunos, e, sobretudo, a construção de uma identidade
que os levem a romper com a história postulada pelos donatários do poder,
reinventando-a e reescrevendo-a. Eis abaixo, a entrevista na íntegra:
“Um do mais respeitados escritores e
intelectuais da América Latina, Eduardo Hughes Galeano recebeu a Caros Amigos
numa tarde de segunda-feira, no Café Brasilero, em Montevidéu. Aos 69 anos
fala, em fluente português, sobre sua literatura, o amor pelos cafés e, claro,
sobre política. Uruguaio de nascimento (1940), latino-americano por devoção e
cidadão do mundo por paixão, quando criança, sonhava em ser jogador de futebol.
‘Era uma maravilha jogando, mas só de noite, enquanto dormia’. Melhor assim. Os
campos de futebol não perderam nada, porém a literatura ganhou um verdadeiro
artesão das palavras. Suas obras combinam elementos de literatura,
sensibilidade e observação jornalística, que estão sempre em função de paixões.
Autor de mais de trinta livros, dezenas de crônicas e artigos, Galeano também é
um exímio defensor do socialismo, dos direitos e da dignidade humana. Entre
seus livros, pode se destacar As Veias Abertas da América Latina, a trilogia
Memória do Fogo, Livro dos Abraços e o último, Espelhos- uma história quase
universal, lançado em 2008, em que o autor reescreve, a partir de um outro
ponto de vista, episódios que a história oficial camuflou.Galeano ‘remexe no
lixão da história mundial’ para dar voz aos ‘náufragos e humilhados’”.
Caros Amigos - Você nasceu em Montevidéu? Gostaria que falasse um pouco da sua
infância?
Eduardo Galeano – Sim, nasci em Montevidéu. Minha Infância? Eu nem lembro já faz tanto tempo...
Mas acho que foi bastante livre. Eu morava em um bairro quase no limite da Montevidéu, onde havia grandes edifícios.
Então tinha espaço verde. Sinto pena das coitadas das criancinhas que vejo
agora, prisioneiras na varanda de casa. Meninos ricos são tratados como se
fossem dinheiro, meninos pobres são tratados como se fossem lixo. Muitos,
pobres e ricos viram prisioneiros, atados aos computadores, à televisão ou
alguma outra máquina. Mas eu tive uma infância muito livre. Fiz a escola
primária, secundária, depois comecei a trabalhar por minha conta. Então, com 15
anos, já era completamente livre.
Caros Amigos - Em que trabalhou?
Eduardo Galeano – Fiz de tudo o que você possa imaginar. Fui desenhista (adoro desenhar
até hoje), taquígrafo, mensageiro, funcionário de banco, trabalhei em agência
de publicidade, colaborador... Fiz milhares de coisas, mas, sobretudo, comecei
a aprender o ofício de contar história. Eu era um cuenta cuentos (conta
contos). E aprendi a fazer isso nos cafés, como esse onde a gente está agora
falando, que leva o honroso nome de brasilero.
Caros Amigos - O mais tradicional dos cafés uruguaios se chama brasilero?
Eduardo Galeano - E esse é o último sobrevivente, o último dos
moicanos dos cafés nos quais eu fui formado. Minha universidade foram os cafés
de Montevidéu, foi aqui que aprendi a arte de narrar, a arte de contar
histórias.
Caros Amigos - Conversando com pessoas?
Eduardo Galeano - Escutando. Conversando sim, mas aprendi muito mais escutando. Desde
muito menino aprendi que, por alguma razão, nascemos com dois ouvidos e uma
única boca. Mas esses cafés típicos de Montevidéu pertenciam a uma época que
não existem mais. Pertenciam a um tempo no qual havia tempo para perder tempo.
Caros Amigos - Como foi sair do Uruguai, na
época da ditadura (1973-1984)?
Eduardo Galeano - Quando a ditadura se instalou, eu corri para a Argentina, em 1973. Lá
fundei uma revista cultural chamada Crisis. Depois fui obrigado a voar de novo.
Não podia voltar para o Uruguai, porque não queria ficar preso, e fui obrigado
a sair da Argentina porque não queria ser morto. A morte é uma coisa muito chata.
Então fiquei na Argentina até o final de 1976, quando se instala a ditadura Argentina.
Aí fui para a Espanha, onde fiquei até o final da de 1985. Depois disso voltei
ao Uruguai. No começo, minha situação em Barcelona foi muito complicada. Eu não
tinha documentos, pois a ditadura uruguaia se recusava a fornecer. O que
possuía era um documento de salvo conduta das Nações Unidas, que não servia
para muita coisa. Eu tinha que ir todo mês à polícia renovar o meu visto de
permanência e passava o dia inteiro preenchendo formulários de perguntas.
Então, um dia, onde dizia profissão, coloquei escritor, entre aspas, de
formulários. Mas ninguém percebeu. A polícia achou normal ser escritor de
formulários!
Caros Amigos - Havia duas listas das ditaduras do Cone Sul. Uma, com os nomes das
pessoas que estavam marcadas para morrer e outra para a extradição. Em qual
você estava?
Eduardo Galeano - Nas duas
Caros Amigos - Na época da ditadura, muitas pessoas, assim como você, ficaram sem
documentos, não podiam sair do país e foram mortas a tiro ou envenenadas?
Eduardo Galeano – Eu tive sorte. Não me lembro de ter sido envenenado, nem mesmo pelos
críticos literários. Claro que sofri muitas ameaças, mas não vou fazer aqui uma
apologia do mártir, do herói da revolução. Mas claro que a vida não era fácil,
sobretudo por que a situação dessa revista que fundei na Argentina era difícil,
pois chegava muito além das fronteiras tradicionais das revistas culturais. Nós
vendíamos entre 30 e 35 mil exemplares. Isso, para uma revista cultural, era
uma prova de resistência. Nós pensávamos em fazer era um resgate das mil e uma
formas de expressão da sociedade. Não apenas dos profissionais da cultura, mas
também das cartas dos presos, cultura contada pelos operários das fábricas, que
raramente viam a luz o sol. Esse tipo de coisa que para nós também era cultura.
Caros Amigos - O livro As Veias Abertas da América Latina foi escrito na década de
1970. Hoje, é possível escrever um novo As Veias Abertas?
Eduardo Galeano – Para mim esse livro foi um ponto de partida, não de chegada. Foi o
começo de algo, de muitos anos de vida literárias e jornalística tentando redescobrir
realidade, tentando ver o não visto e contar o não contado. Depois de Veias
escrevi muitos livros que foram continuações, de um certo modo, e uma tentativa
de cavar, cada vez mais profundamente, a realidade.Isso com o objeto de ampliar
um pouco as ideias, porque Veias é um livro limitado à economia política
latino-americana. Os livros seguintes tem que ser lidos com a vida toda, nas
suas múltiplas expressões, sem dar muita bola nem ao mapa, nem ao tempo. Se eu
fico apaixonado por uma história, me ponho a contar histórias de qualquer lugar
do mundo e de qualquer tempo. Conto a história da história, que podem ter
acontecido há 2 mil anos e tento escrever de tal modo que aconteçam de novo, na
hora em que são contadas. Aí está o verdadeiro ofício de contar, que aprendi
nos cafés de Montevidéu, que inclusive permite a você escutar o som das patas
dos cavalos, sentir o cheiro da chuva...
Caros
Amigos - Pode-se dizer que hoje
existe uma demanda por governos de esquerda na América Latina? Em sua opinião,
esses governos têm contribuído para diminuir a pobreza e a desigualdade social
nesses países?
Eduardo Galeano – O que existe é um panorama muito complexo e diverso de realidades
diferentes. Também vemos respostas sociais e políticas diversas. Isso é o que
nossa região do mundo tem de melhor: sua diversidade. Esse encontro de cores,
de dores tão diferentes, é a nossa riqueza maior. Os novos movimentos, como
esses, que estão brotando por toda parte, que tentam oferecer uma resposta
diferente às desigualdades sociais, contra os maus costumes da humilhação e o
fatalismo tradicional, também são respostas diversas porque expressam
realidades diferentes. Não se pode generalizar. O que existe sim é uma energia
de mudança. Uma energia popular que gera diversas realidades, não só políticas,
mas realidades de todo tipo, tentando encontrar respostas, depois de vários
séculos de experiências não muito brilhantes em matéria de independência. Agora
estamos comemorando, em quase todos os países, o bicentenário de uma
independência que ainda é uma tarefa por fazer.
Caros Amigos - O que falta para a América Latina ser completamente independente?
Eduardo Galeano - Romper com o velho hábito da obediência. Em vez de obedecer à história,
inventá-la. Ser capaz de imaginar o futuro e não simplesmente aceitá-lo. Para
isso é preciso revoltar-se contra a horrenda herança imperial, romper com essa
cultura de impotência que diz que você é incapaz de fazer, por isso tem que
comprar feito, que diz que você é incapaz de mudar, que aquele que nasceu como
nasceu vai morrer. Porque dessa forma na temos nenhuma possibilidade de
inventar a vida. A cultura da impotência te ensina a não vencer com sua própria
cabeça, a não caminhar com suas próprias pernas e a não sentir com seu próprio
coração. Eu penso que é imprescindível vencer isso para poder gerar uma nova
realidade.
Caros Amigos - A América latina copiou um modelo de desenvolvimento que não foi feito
para ela. É possível inventar um modelo próprio de desenvolvimento?
Eduardo Galeano – Não vou entrar em detalhes porque se fosse falar da quantidade de
cópias erradas seria uma lista infinita. O desafio é pensar no que queremos
ser: originais ou cópias? Uma voz ou eco? Agora estamos tentando recuperar
nossa própria voz, em diferentes países, de diversas maneiras.
Caros Amigos- A implantação das bases dos Estados Unidos na Colômbia fere a dignidade
do povo latino-americano e compromete a independência e a liberdade do Sul?
Eduardo Galeano – Sim. É a continuação de uma tradição humilhante. Também há perigo da
intervenção direta dos Estados Unidos nos países latino-americanos. Meu mestre,
Ambroce Bierce, um escritor norte-americano maravilhoso, quando se iniciou a
expansão imperial dos Estados Unidos, no século 19, dizia que a guerra é um
presente divino enviada por Deus para ensinar geografia. Por que assim eles (estadunidenses)
aprendiam geografia. E é verdade. Os EUA têm uma tradição de invadir países sem
saber onde estão localizados e como são esses países. Tenho até a suspeita de
que (George W.) Bush achasse que as Escrituras tinham sido inventadas no Texas
e não no Iraque, país que ele exterminou. Então, esse perigo militar latente é
muito concreto. Atualmente, os EUA possuem 850 bases militares em quarenta
países. A metade do gasto militar mundial corresponde aos gastos de guerras dos
EUA. Esse é um país em que o orçamento militar se chama orçamento de defesa por
motivos, para mim, misteriosos e inexplicáveis. Porque a última invasão sofrida
pelos EUA foi em 1812 e já faz quase dois séculos. O mistério se chama de
defesa, mas é de guerra, mas como que se chama de defesa? O que tem a ver com a
defesa? A mesma coisa se aplica às bases na Colômbia, que também são “defensivas”.
Todas as guerras dizem ser “defensivas”. Nenhuma guerra tem honestidade de
dizer “eu mato para roubar”. Nenhuma, na história da humanidade. Hitler invadiu
a Polônia porque, segundo ele, a Polônia iria invadir a Alemanha. Os pretextos
invocados para a instalação dessa base dos EUA na Colômbia não são só ofensivas
contra a dignidade nacional dos nossos países, como também ofensivas contra a
inteligência humana. Por Que dizer que serão colocadas lá para combater o
tráfico de drogas e o terrorismo? Tráfico de drogas, muito bem... 80% da
heroína que se consome no mundo inteiro vêm do Afeganistão. 80%! Afeganistão é
um país ocupado pelos EUA. Segundo a legislação internacional, os países
ocupantes têm a responsabilidade sobre o que acontece nos países ocupados. Se
os EUA têm interesse de verdade de lutar contra o narcotráfico, tem que começar
pela própria casa, não pela Colômbia
e sim pelo Afeganistão, que faz parte da sua estrutura de poder, e que é o
grande abastecedor de heroína, a pior das drogas. Outro pretexto invocado é o
terrorismo. Mas não é sério. Não é sério, por favor. A grande fábrica do
terrorismo é essa potência mundial que invade países, gera desespero, ódio,
angústia. Sabe quem esteve sessenta anos na lista oficial dos terroristas dos
EUA? Nelson Mandela, Prêmio Nobel, presidente da África do Sul. Cada vez que
viajava aos EUA, ele precisa de um visto especial do presidente dos Estados
Unidos, porque era considerado um terrorista perigoso durante sessenta anos.
Até 2008. É desse terrorismo que estão falando? Imagina se eu fosse incorporado
agora na lista dos terroristas dos EUA e tivesse que esperar sessenta anos para
ser tirado. Acho que daqui a sessenta anos vou estar um poquitito mortito.
Caros Amigos - Você acredita que o Brasil também exerce um imperialismo sobre os
países da América do Sul?
Eduardo Galeano – Não. Não é só a situação do Brasil, mas de países que são grandes e
poderosos em relação a outros que são menores e mais fracos. Porque a cadeia de
opressão nunca tem apenas dois elos. Na história, nunca existiu apenas um
opressor e apenas um oprimido. Uma classe social opressora é uma classe
oprimida. Não. Os elos são múltiplos e muito diversos. A situação do Brasil não
tem nada de excepcional. A relação do Brasil com o Paraguai, por exemplo,
começa agora ser mais respeitosa. A partir das presidências do Lula e do Lugo. Mas
evidentemente que antes não eram nada igualitárias. Com a Bolívia tampouco. Mas
isso é como na sociedade: o presidente da empresa dita ordens para o diretor,
que dita ordens ao gerente, que repassa para o chefe de sessão, que ordena ao
operário, que dita ordens à mulher, que manda no menino, que chuta o cachorro.
Caros Amigos - O socialismo ainda é possível?
Eduardo Galeano – A palavra socialismo foi
muito desprestigiada, devido à utilização errada do termo ao longo do século
20. Foi usada para maquiar o capitalismo ou para justificar um poder
burocrático que tratava o povo como se fosse menor de idade. Então, houve um
grande desprestígio da palavra. Foi utilizada como social - democracia pelos
governos comunistas em tais termos que hoje é difícil recuperá-la.O importante
é ajudar o nascimento, o parto, desse mundo cansado que está grávido de outro,
para que outro mundo novo possa nascer. Tenha o nome que tenha. Não sei se vai
ser chamado de socialismo, mas tem que ser, sim, solidário num sentido
comunitário, e, sobretudo, tem que ser um mundo capaz de resgatar a melhor das
tradições americanas: a comunhão com a natureza. É a tradição indígena mais
velha e mais importante de todas: resgatar a certeza de que somos parte da
natureza e de todo crime executado contra a natureza se converte em suicídio,
porque acaba sendo um tiro no pé da condição e do gênero humano. Uma coisa me
espantou muito foi quando li nos jornais há poucos dias, que o Brasil é o
número um no ranking dos países consumidores de agrotóxicos, ou seja, é o país
que mais consome venenos químicos na agricultura no mundo. Espero que a
informação seja errada, pois isso seria muito grave. Espero que meus amigos
brasileiros me digam que não é assim para o meu consolo. Porque é um país que
eu amo. Como isso é possível? Às vezes as boas notícias não vêm apenas dos
países que ocupam os maiores espaços nos jornais no mundo. Como, por exemplo, o
Equador. Mas esse é um país que há pouco tempo, pela primeira vez na história
da humanidade, incorporou à sua Constituição uma disposição estabelecendo os
direitos da natureza. A natureza como sujeito de direito. É a primeira vez que
isto acontece. Acho que é um passo muito importante nesse mundo, que está
avançando rapidamente para o extermínio do ar, da terra e das águas. Seria
importante que esse país pequeno, do qual se fala pouco, fosse imitado pelos
países grandes. A natureza tem direitos e esses direitos são sagrados.
Caros Amigos - Qual sua opinião sobre a implantação da planta e Botnia (empresa de
celulose) no Uruguai?
Eduardo Galeano – A Botnia já está funcionando faz tempo. Prometeu milhões de empregos e
depois foram poucos. A causa que acho legítima da defesa do meio ambiente pode
não ser muito popular, porque existe uma expectativa de geração de emprego que
faz com que muitos desesperados, muita gente em condição difícil aceite esse
pão, mesmo que implique fome para amanhã. Pan para hoy, hambre para mañama.
(Pão para hoje, fome para amanhã). Por isso, a causa ecológica não é muito
popular. O que acho é que o Uruguai é um
país muito pequeno e não tem costas para aguentar várias empresas, como essa,
de fabricação de celulose. Porque Botnia é a primeira, depois vem o segundo
projeto, o terceiro, o quarto... Tínhamos seis projetos como esse. Agora, com a
crise a coisa mudou, para nossa sorte. Afortunadamente parece que a coisa está
mudando. Alguns desses gigantes estão apreensivos e não vão fazer os
investimentos que tinham prometido. Mas as condições que o Uruguai ofereceu
eram as melhores: subsídios, nada de impostos, aceitação passiva da destruição
da terra, o ressecamento geral das águas e poluição do ar.
Caros Amigos - A crise econômica mundial provocou uma reflexão sobre o sistema
capitalista e sobre nossa cultura consumista?
Eduardo Galeano – Não sabemos o que vai acontecer, porque a crise ainda não passou. Não
se trata de um mau momento. Está sendo um problema gravíssimo no mundo inteiro
e que no meu entender mostrou mais uma vez a liberdade do dinheiro e a prisão
das pessoas. Ficamos todos prisioneiros da loucura e do delírio especulativo
das altas finanças, que hoje mandam no mundo capitalista muito mais do que as
forças produtivas. Isto gerou a necessidade do Estado intervir na economia dos
países ricos. Mas o que aconteceu nesses países onde o Estado foi aniquilado em
nome da liberdade do mercado? A religião do mercado aniquilou o Estado, ou pelo
menos fez o possível para reduzi-lo à triste função de carrasco e de carcereiro.
É preciso recuperar os super poderes do Estado em nome do poder público, porque
só ele é capaz de controlar essas forças diabólicas do mercado livre. O livre
comércio tem refluxo das pressões, que tem uma história tristíssima. Foi em
nome do livre comércio que o Paraguai foi aniquilado no século 19. Foi em nome
do livre comércio que a China foi obrigada a consumir ópio. A rainha da Vitória
(da Inglaterra) era narcotraficante. E foi em nome do livre comércio que a indústria
têxtil da Índia foi exterminada. Ou seja, o livre comércio tem uma história
horrível e está claríssimo que se os EUA tivessem aplicado o livre comércio
logo após sua independência continuariam sendo colônia da Inglaterra. Portanto,
essa identificação da liberdade do dinheiro com a liberdade das pessoas é
mentirosa e inimiga da liberdade humana.
Caros
Amigos - Agora vamos falara um pouco
de literatura e sua rotina de trabalho. Você ainda escreve todos os dias?
Eduardo Galeano – Não. Eu só escrevo quando minha mão coça. Aprendi isso com um velho
negro que tocava tambor como Deus. Vê-se que Deus toca tambor... Bem, ou pelo
menos como o diabo deveria tocar. Então perguntei a ele: “como você faz para
tocar tambor assim?” E ele me respondeu: “eu toco quando a minha mão coça,
quando a mão pica.” Eu também escrevo quando sinto necessidade de contar algo,
alguma história que está crescendo dentro de mim e que quer se oferecer aos
demais.
Caros Amigos - Qual sua obra-prima? Você já escreveu ou ainda está por vir?
Eduardo Galeano – O melhor dos meus livros é o livro que ainda não escrevi. O mais
intenso e alegre dos meus dias é aquele que ainda não vivi. O Espelhos é o mais
audaz, no sentido de que é um livro sem fronteiras. Nele, conto histórias que
acontecem em todas as partes em todos os tempos, tentando ver as coisas do
ponto de vista dos náufragos dessa longa viagem através dos séculos do gênero
humano no mundo. Dos náufragos que não estão na história oficial. Como as
mulheres, por exemplo.
Caros Amigos - E por que Espelhos?
Eduardo Galeano - Tenho a esperança de que quem leia possa sentir que ele está também aí dentro
(do livro), que tem um espelho que reflete a sua face. A ideia é que seja um
livro de todos, de todas as caras que aparecem no espelho quando nos vemos.
Cada pessoa é de alguma maneira, muito mais do que sabe que é. Nós temos um
arco-íris terrestre para recuperar, que é de uma cor e uma alegria impressionante.
É uma tarefa a fazer porque esses arco-íris terrestres são muito mais lindos,
muito mais belos. Mas esse arco-íris está mutilado pelo machismo, pelo racismo,
pelo militarismo e por muitos ismos a mais. Isso impede a felicidade de conhecer
o tempo passado e de reconhecer que ele foi uma profecia do tempo presente. Não
estamos condenados a repetir o passado, mas sim, somos obrigados a aprender com
ele para não repeti-lo. A proposta de Espelhos, assim como a de todos os outros
livros que escrevi, é ver as coisas a partir de outro ponto de vista. Se um
verme vê um prato de espaguete vai achar que é uma orgia. Tudo depende de onde
você se coloca. Para os países oprimidos, a história oficial não é a história
verdadeira. Outro exemplo são vocês mulheres. A Revolução Francesa promoveu a
declaração dos direitos dos homens e dos cidadãos, mas quando uma mulher
chamada Olímpia de Gouges teve a coragem, e a loucura, de propor uma declaração
dos direitos da mulher e da cidadã, a guilhotina cortou a sua cabeça. Então, o
ponto de vista da mulher não pode ser o mesmo ponto de vista do homem. A mesma
coisa acontece com os humilhados da terra, como os negros, por exemplo.
Enfim, mais uma contribuição deste cigano da educação para aqueles que sonham, lutam e acreditam que um mundo melhor é possível. Ou talvez, uma provocação a aqueles que ousam desafiar e humilhar os náufragos da América Latina a nossa pátria mãe.
Enfim, mais uma contribuição deste cigano da educação para aqueles que sonham, lutam e acreditam que um mundo melhor é possível. Ou talvez, uma provocação a aqueles que ousam desafiar e humilhar os náufragos da América Latina a nossa pátria mãe.
Referências:
- Caros Amigos. Revista Mensal. Ano XIII Nº 152. São Paulo: Casa Amarela. Nov, 2009.
- http://www.jusbrasil.com.br/diarios/589298/dou-secao-1-26-05-2006-pg-4