Danny Glover |
Em visita ao Brasil, ator e ativista norte-americano falou ao Brasil de
Fato sobre racismo, as condições dos trabalhadores nos Estados Unidos e o
potencial do cinema para conscientizar o público.
Por José Coutinho
Júnior, De São Paulo (SP)
Danny Glover ainda
não sabia, mas na tarde daquela quarta-feira (15), estaria exausto. O ator,
ativista e produtor norte-americano veio ao Brasil para participar de um
congresso da CUT na terça-feira (14). No dia seguinte, acordou cedo, saiu de
seu hotel próximo ao aeroporto de Guarulhos e foi, acompanhado de militantes do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conhecer a Escola Nacional
Florestan Fernandes (ENFF).
Tomou café,
conversou com a coordenação da escola e conheceu mais de 60 estudantes do mundo
inteiro, todos parte de um curso de teoria política e que não pouparam os
flashes das câmeras.
“É incrível existir um local que prepara as pessoas para lutar por um
mundo melhor. Isso é o que essa escola representa. Esse lugar é um sopro de ar
fresco. É um presente estar aqui hoje. Olhando para vocês, que são o futuro”,
disse, sob uma chuva de palmas.
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Glover, famoso no
mundo todo por sua atuação em filmes como A Cor Púrpura, Mandela e Máquina
Mortífera, sempre foi ligado às causas sociais. Quando jovem, fez parte de
movimentos que lutaram contra a segregação racial nos Estados Unidos. Filho de
trabalhadores que participavam de sindicatos, ele denuncia a falta de direitos
e a exploração a que muitos trabalhadores estão submetidos no país.
Hoje, é produtor de
cinema, realizando diversos documentários na Palestina, Tailândia e também
sobre temas sensíveis aos estadunidenses, como o porte de armas e o aquecimento
global.
No final da visita
à escola, o ator plantou uma muda de cerejeira no jardim do local. Com
dificuldades para colocar e regar a muda na terra, brincou: “I’m too old for
this shit [estou muito velho para essa merda]”, bordão de Roger Murtaugh, o
icônico policial de Máquina Mortífera.
Mas, por mais que estivesse velho e reclamasse, Murtaugh nunca deixava de fazer o que tinha de fazer para salvar o dia. E assim também é Danny Glover: apesar da exaustão, está ao lado dos trabalhadores, participando de atos, congressos e movimentos sociais pelo mundo.
Abaixo, confira a
entrevista de Danny Glover ao Brasil de Fato sobre o racismo
nos Estados Unidos, sua trajetória como militante, o que pensa do Brasil e o
potencial do cinema para conscientizar as pessoas, concedida pouco tempo antes
do ator tirar seu merecido sono:
Danny Glover |
Brasil de Fato -
Você nasceu no período em que os negros eram segregados da sociedade americana.
Como era ser negro nessa época?
Danny Glover - Eu fui nutrido por uma cultura,
não só daquela época, mas do meu passado. Minha bisavó nasceu em 1853. A
emancipação dos escravos ocorreu quando ela tinha 10 anos. E a conheci quando
era criança, ela tinha mais de 90 anos. Há uma conexão entre a minha vida, a
minha raça e o pensamento político da minha família. Minha mãe foi a primeira
pessoa da família e da comunidade a se formar numa universidade, em 1942. Meus
avôs conseguiram, após trabalhar muito tempo como camponeses, comprar uma
propriedade rural de 52 hectares. Minha mãe e seus irmãos foram à escola e não
tiveram que colher algodão na época da colheita. Isso foi um grande sacrifício
para a família, pois eles precisavam de todas as mãos possíveis para colher e
pagar as contas. Minha mãe estava internamente grata pelos pais por ir à
escola. A escola se tornou algo cravado na consciência da minha família como um
local necessário para se seguir em frente na vida. Meus avós, que tinham a
educação mais básica, viram que era esse o futuro e fizeram o sacrifício para
que seus filhos estudassem. É esse tipo de coisa que moldou minha vida.
Nasci em 1946, oito
anos depois da decisão da suprema corte americana que disse que “igual não é
igual”. Foi a fundação dos movimentos que lutaram pelos direitos civis e
antissegregação. A ideia de criar locais e acomodações diferentes para negros e
brancos virou lei. Essa segregação, que afetou meus pais imediatamente, se
tornou o catalizador para que eu iniciasse o processo de entender a relação que
tenho com o meu país como um cidadão. Meus pais eram carteiros, ligados ao
sindicato, e, frequentemente, conversavam sobre o trabalho militante deles no
sindicato e como isso se conectava aos movimentos dos direitos civis. Escutava
isso, além de ler muito.
Sou de São
Francisco, California, uma cidade muito radical, progressista. Tinha o
sindicato mais progressista do país, formado por trabalhadores de armazéns e
portos. Era um dos grupos mais radicais: foi o primeiro a boicotar bens
sul-africanos, dizendo que não descarregariam produtos do país do Apartheid. As
políticas estudantis, nas duas universidades da Califórnia, a cultura que
emergiu com os hippies, os panteras negras, foram parte em especial do meu modo
de entender o que estava acontecendo no mundo.
Quando estava com
14, 15 anos, comecei a participar do movimento pelos direitos civis, inspirado
nesse atleta incrível chamado Mohhamad Ali, quando disse que “I Ain't Got No
Quarrel With The vietcong... No vietcong ever called me nigger [não tenho
desavenças com os vietcongs, nenhum vietcong jamais me chamou de preto]”. Foi
uma frase simples, mas que teve implicações enormes para mim e para a
sociedade. Quando tinha 20 anos, tudo isso estava em mim. Todos esses elementos
progressistas se tornaram parte da minha consciência e abracei tudo isso.
Em 1987, vou para a
San Francisco State, uma universidade que passa por outro nível de
radicalização, com grupos de estudantes negros. Tudo isso me situa e molda a
forma como lido com a cultura, o que leio, o que escuto.
Brasil de Fato - Como a arte, principalmente o
cinema, pode levar questões sociais às pessoas e ser transformadora?
Danny Glover - Sempre assisti filmes de vários
países e cineastas: brasileiros, argentinos, bolivianos, europeus, africanos,
japoneses... os trabalhos de Fellini, Truffaut, Bergman, todos esses filmes e
diretores me influenciaram. Quando era jovem, trabalhava numa área diferente do
teatro. Geralmente, as peças de teatro tem uma estória, uma estrutura
organizada, que se manifesta ao longo da obra, mas me envolvi no que foi
considerado “arte negra”. Eram peças de agitação e propaganda. Curtas, que
tinham como objetivo passar uma mensagem ideológica. Sobre como se tornar
militante, conseguir emprego. Eram peças muito políticas.
Então, eu via o
drama como algo político, uma forma de transmitir essas ideias de uma forma
diferente. Esse foi o começo da minha relação com teatro e arte. E como fui
formado por isso, o que eu queria fazer com a arte, na maioria das vezes,
difere da agenda que a indústria me apresentou. Fiz muitos filmes populares e
comerciais, mas sempre tive essa inclinação de querer fazer filmes menores, que
tenham um significado.
Só nos últimos dez
anos consegui fazer o tipo de arte com caráter político similar ao que tinha me
formado, via documentários ou narrativas. Como produtor, já fiz três filmes
palestinos, dois tailandeses, um documentário sobre o movimento de direitos
civis, um sobre aquecimento global e outro sobre a liberação de armas. São
essas experiências que me moldaram como artista, ator e cidadão, e me fizeram
pensar em como manifestar essas ideias no meu trabalho.
Brasil de Fato - É possível fazer filmes com um caráter crítico
e social em Hollywood?
Danny Glover - É difícil dizer. Tento fazer um
filme sobre a revolução haitiana por anos. É obviamente uma história sobre
negros, e tem sido difícil. Mas por propósito de custos, o filme tem de ser
fora do sistema. Se fizesse dentro, o custo seria 30% ou 40% maior. Sob esse
ponto de vista, é possível? Mas quando se pensa em produções culturais, a forma
como o cinema pode moldar pensamentos em um curto período de tempo é algo
incrivelmente bom para nós, e isso precisa ser explorado.
Brasil de Fato - Como você vê o racismo hoje nos EUA,
principalmente após o que ocorreu em Ferguson?
Danny Glover - Ferguson e outros lugares
semelhantes são criados pela ausência de qualquer estrutura, além da
brutalização da força policial. A questão racial é algo muito enraizado na
minha vida, no que faço. O que penso é que muitas vezes se ignora que a raça
está ligada, tangencialmente, a muitos outros temas, como pobreza, saúde,
procura de empregos. Prestamos atenção no racismo explícito, mas acabamos
ignorando esse racismo mais sutil. O problema é que a raça é obscurecida por
outros problemas programados na nossa cabeça pelo consumismo. Para manter nosso
padrão ou lugar nas nossas vidas, precisamos manter certas necessidades físicas
e psicológicas.
Assim, o racismo
tem uma relação funcional com o capitalismo, na exploração dos negros como
mão-de-obra barata. E para romper com isso, precisamos pensar em outros
sistemas e formas. Que potencial um outro sistema, como o socialismo, poderia
ter nessa questão? Como falar de raça sobre outro ponto de vista e criar uma
estrutura que melhore o planeta e a humanidade? Quais ferramentas e políticas
que precisamos para isso?
Brasil de Fato - Você está engajado na luta sindical dos EUA.
Qual a situação dos trabalhadores no país, em especial os negros?
Danny Glover - Estatisticamente, há 40 anos, a
renda dos trabalhadores vem diminuindo significativamente. Não só isso, os
trabalhadores americanos trabalham mais horas, o número de mulheres que compõem
a força de trabalho mais que dobrou nesse tempo, não porque há novas oportunidades
para mulheres, mas porque o dinheiro que elas ganham é crucial para manter a
casa.
Os trabalhadores
americanos brancos ganham mais que os negros, e os números para as mulheres são
menores ainda. Há uma situação onde negros têm as maiores taxas de desemprego,
menores condições de economizar dinheiro e acumular bens no mesmo trabalho.
Brasil de Fato - Você já visitou o Brasil várias
vezes. Como você enxerga o racismo no país? Um garoto negro de 10 anos foi
assassinado recentemente em uma favela do rio pela Polícia Militar...
Danny Glover - O racismo e a militarização da
polícia nas comunidades negras é algo que ocorre em várias partes do mundo e
temos que nos preocupar com isso. Como o Estado, junto com a sociedade, se
aproximam desse problema? E qual o papel da polícia na sociedade? Por que não
houve uma comoção no espaço público causada pela morte desse menino? A morte
desse garoto é emblemática. As pessoas da favela estão excluídas economicamente
da sociedade, mas também psicologicamente.
Esse tipo de
violência acontece com tanta regularidade que o Estado deve ser
responsabilizado. Não me interessa se o Estado é de direita ou esquerda, ele
tem de tomar medidas, desenvolver políticas públicas para melhorar a vida nas
comunidades e das crianças negras e pobres, valorizando a vida delas.
Brasil de Fato - Para terminar, você pensa um dia em fazer um
filme sobre o Brasil?
Danny Glover - Claro! Adoraria fazer um documentário sobre o Brasil. Não tenho
planos ainda, mas, provavelmente, é algo que vou fazer.
FONTE
:http ://www.brasildefato.com.br/
17/04/2015