“O Estado deve assumir o ônus de
ter titulado terras indígenas em nome de particulares”, assinala o antropólogo
Levi Marques-Pereira.
“O governo tem se mostrado omisso
com o problema fundiário dos indígenas em Mato Grosso do Sul.
(...) A questão é sempre tratada como problema pontual, o que é um equívoco.
São dezenas de comunidades reivindicando a demarcação de seus territórios,
Buriti é apenas um desses casos, o que está na mídia nesse momento”. A
avaliação é de Levi Marques-Pereira, professor na Universidade Federal da
Grande Dourados, e que está acompanhando os conflitos entre fazendeiros e os
índios Terenas, que reivindicam a ocupação de Buriti.
Índias na labuta do dia a dia - Foto: Ruy Sposati/Cimi |
Na entrevista a seguir, concedida à
IHU On-Line por e-mail, o antropólogo explica como aconteceu o
processo de ocupação e desocupação da Terra Indígena de Buriti. Segundo ele, o
Serviço de Proteção aos Índios – SPI, ao organizar os indígenas em reservas,
tinha dois objetivos:
“a) liberar as terras indígenas
para a ocupação de particulares, interessados em requerer terras na região;
b) incorporar a população indígena
na categoria de ‘trabalhadores nacionais’, que seriam incorporados nas
atividades produtivas que se implantariam na região”.
De acordo com ele, “na lógica de
atuação do SPI, não fazia sentido demarcar terras indígenas de maior extensão,
suficientes para a reprodução dos indígenas de acordo com seus usos, costumes e
tradições. Segundo o imaginário da época, a condição de indígena era vista como
transitória, pois se acreditava que em pouco tempo os indígenas se convenceriam
das vantagens da civilização e abandonariam suas práticas culturais”.
A modernização do campo, a partir
da década de 1970, explica, impôs a “retirada total das famílias, obrigadas a
se recolherem na área de acomodação de 2.090 hectares,
constituída como reserva em 1926”.
Somente mais de 70 anos depois, em 2001, a Funai reconheceu o direito dos Terena
de Buriti sobre uma área de 17.200 hectares. “A partir de então a região
tem vivido forte tensão, com os Terena pressionando para que o governo conclua
o processo de regularização de suas terras de ocupação tradicional”, menciona.
Confira a entrevista.
Levi Marques-Pereira |
IHU On-Line – Qual a
situação dos índios Terena que vivem no Mato Grosso do Sul? Do mesmo modo que
os Guarani, eles também estão confinados?
Levi Marques-Pereira – Sim,
o processo de expropriação dos territórios de ocupação tradicional dos Terena é
semelhante ao que aconteceu com os Guarani e os Kaiowá que vivem no sul do MS.
O compartilhamento dessa história de submissão neocolonial comum tem até
aproximado as lideranças desses grupos étnicos, que mutuamente se apoiam na
luta pela reconquista de seus territórios. Esses grupos étnicos foram objeto da
mesma política governamental de recolhimento em reservas, com extensões
diminutas de terra. A intenção do Serviço de Proteção aos Índios – SPI, o órgão
indigenista oficial do Estado brasileiro, era reunir em reservas a população de
diversas comunidades. Antes de serem expulsas de suas terras, as comunidades
indígenas radicavam suas aldeias por uma extensão de terra muito ampla.
Dois objetivos orientavam essa
política de recolhimento em reservas:
a) liberar as terras indígenas para
a ocupação de particulares, interessados em requerer terras na região;
b) incorporar a população indígena
na categoria de “trabalhadores nacionais”, que seriam incorporados nas
atividades produtivas que se implantariam na região.
Na lógica de atuação do SPI, não
fazia sentido demarcar terras indígenas de maior extensão, suficientes para a
reprodução dos indígenas de acordo com seus usos, costumes e tradições. Segundo
o imaginário da época, a condição de indígena era vista como transitória, pois
se acreditava que em pouco tempo os indígenas se convenceriam das vantagens da
civilização e abandonariam suas práticas culturais. Entretanto, passado um
século, os indígenas continuam se apresentando enquanto grupos étnicos
diferenciados e reivindicando o direito de ocupação dos territórios dos
expropriados no processo de expansão das frentes econômicas.
IHU On-Line – Pode nos
contar como ocorreu o processo de ocupação da Terra Indígena Buriti pelos
índios Terena? Como ocorreu, ao longo dos anos, a luta pela ocupação e
reconhecimento dessa terra?
Levi Marques-Pereira – O histórico da ocupação da Terra
Indígena Buriti pelos índios Terena foi descrito em livro que apresenta os
resultados da perícia judicial realizada por mim e pelo prof. Dr. Jorge
Eremites de Oliveira, disponível em PDF.
A partir da última década do século
XIX se inicia o processo de ocupação das terras até então ocupadas pelos Terena
na região de Buriti. A titulação das terras se estende até as primeiras décadas
do século XX, mas a expulsão dos Terena foi gradativa, se prolongando pelo
menos até a década de 1970. Em muitos casos os próprios Terena foram
incorporados nos trabalhos de formação de fazendas sobre os seus territórios,
já que essa se tornava a única alternativa, além de constituir uma estratégia
para permanecerem em seus territórios.
No entanto, a modernização do
campo, principalmente a partir da década de 1970, impôs a retirada total das
famílias, obrigadas a se recolherem na área de acomodação de 2.090 hectares,
constituída como reserva em 1926. Essa retirada das famílias não foi pacífica,
muito índios reagiram e buscaram recursos juntos ao próprio SPI e depois à
Funai, mas prevaleceram os interesses dos particulares que requereram e
titularam as terras dos Terena.
Só em 2001, depois de muita pressão dos Terena,
a Funai publica o resultado do estudo coordenado pelo antropólogo Gilberto
Azanha, reconhecendo o direito dos Terena de Buriti sobre uma área de 17.200 hectares. A
partir de então a região tem vivido forte tensão, com os Terena pressionando
para que o governo conclua o processo de regularização de suas terras de
ocupação tradicional.
IHU On-Line – A Terra
Indígena Buriti foi declarada, em 2010, pelo Ministério da Justiça como de
ocupação tradicional. Entretanto, dos 17 mil hectares reconhecidos, os índios
ocupam hoje apenas 3 mil hectares. Quais as razões disso? Qual é a situação
legal desta Terra Indígena?
Levi Marques-Pereira – Nos processos judiciais envolvendo
o reconhecimento de terras indígenas em Levi Marques-Pereira – MS, sistemática e reincidentemente a
Justiça Federal, em primeira instância, costuma dar ganho de causa aos
portadores de títulos de propriedade. O Ministério Público Federal e a Funai
costumam recorrer dessas decisões e, em muitos casos, conseguem a revisão da
sentença em tribunais superiores.
O problema é a fragilidade do ato
administrativo da publicação do relatório no Diário Oficial da União ou da
Portaria Declaratória do Ministro da Justiça, que não são suficientes para
assegurar a posse da terra por parte dos indígenas. Mesmo quando o presidente
da República homologa o processo administrativo, ações judiciais impedem a
posse indígena.
O histórico das reocupações
indígenas e das desocupações por ordem judicial indica que o cumprimento das
ações de reintegração de posse não encerra a questão. Os índios são retirados
por forças policiais, mas em pouco tempo acabam retornando. Dessa forma, índios
e proprietários ficam expostos a um conflito interminável, que pode durar anos
ou décadas. É urgente a construção e uma solução. Ao que tudo indica, a solução
definitiva só virá quando os indígenas retornarem às suas terras e os atuais
proprietários receberem a indenização do Estado.
IHU On-Line – Após a morte
de Oziel Gabriel, a presidente Dilma disse que a solução do conflito se tornou
“prioridade” para o governo. Como vê essa declaração?
Levi Marques-Pereira – O governo tem se mostrado omisso
com o problema fundiário dos indígenas em MS. Essa postura não é só do governo atual, mas
também dos que o antecederam. A questão é sempre tratada como problema pontual,
o que é um equívoco. São dezenas de comunidades reivindicando a demarcação de
seus territórios, Buriti é apenas um desses casos, o que está na mídia nesse
momento. Mesmo que se descubra uma solução para esse caso, outros continuarão
surgindo enquanto não se descobrir uma solução para todos eles.
IHU On-Line – Entre as
mudanças sugeridas recentemente pelo governo está a proposta da ministra Gleisi
Hoffmann, de que as demarcações das terras indígenas recebam pareceres da
Embrapa. Como valia essa medida?
Levi Marques-Pereira – Esta solução é velha. No início da
década de 1990, enquanto não havia legislação que regulamentava os artigos da
Constituição de 1988, os quais regulam a demarcação de Terras Indígenas,
algumas terras foram demarcadas por equipes compostas por técnicos de vários
ministérios e sem orientação antropológica. Em MS o resultado foi desastroso.
Terras Indígenas como Jaguary, Sucuri’y e Jarará foram demarcadas por grupos
técnicos dessa natureza e não contemplaram as expectativas dos índios em
relação às terras tradicionalmente ocupadas. Tais demarcações geram
insatisfações e reclamações até hoje. É difícil imaginar qual parecer a Embrapa
poderá emitir e como seria a contribuição que daria aos estudos.
IHU On-Line – Como entender
o conflito pela posse de terras entre índio e não índio? Qual a importância que
a terra e o território têm para os índios?
Levi Marques-Pereira – O vínculo dos Terena de Buriti com
a terra que reivindicam é histórico e cultural. Tal vínculo recebeu o
reconhecimento da Funai e do Ministério da Justiça, que acataram os estudos
técnicos realizados. Os indígenas estão cada vez mais conscientes dos direitos
territoriais a eles assegurados. Se no passado foram constrangidos a deixar
seus territórios por conta das pressões de particulares que titularam as terras
por eles ocupadas, atualmente demonstram firme propósito em reaver seus
territórios de ocupação tradicional, nos quais nunca deixaram de transitar,
mesmo que em expedições clandestinas de caça, pesca ou coleta. Também muitas
famílias permaneceram residindo nesses locais até poucos anos, assumindo a
condição de peões de fazenda. Essas estratégias permitiram manter os vínculos
com o território.
O conflito se tornou visível quando
os indígenas assumiram a intenção de romper a aparente aceitação do
confinamento na reserva e passaram a reocupar seus territórios. Os
proprietários estranham muito essa mudança de postura. Muitos acreditam que ela
se deve à interferência de atores externos, interessados em romper a paz no
campo. Tal proposição não se sustenta, até porque em MS existem cerca de 800
acadêmicos indígenas, muitos já formados em cursos de graduação, mestrado e
doutorado. Para se ter ideia, um advogado terena acompanha o processo judicial
em Buriti, então como supor que eles não seriam sujeitos políticos plenamente
capacitados para defender seus interesses?
IHU On-Line – Como esses
conflitos são vistos pela população sul-mato-grossense?
Levi Marques-Pereira – Um estudo realizado por
pesquisadores de demografia da Unicamp constatou que MS é o estado com mais
preconceito em relação aos indígenas. Em geral, a população sul-mato-grossense
não gosta dos indígenas nem manifesta disposição em reconhecer seus direitos. A
visão dos opositores dos indígenas, diretamente envolvidos nos conflitos
fundiários, tende a se projetar como hegemônica em MS. Entretanto, os
indígenas recorrem ao recurso das redes sociais na internet para divulgarem
suas demandas, interesses e perspectivas. Mesmo em MS eles conseguem
apoiadores, muito tímidos é verdade, por conta das enormes pressões exercidas
pela predominância dos interesses anti-indígenas.
IHU On-Line – Qual a melhor
maneira de resolver os conflitos entre indígenas e não indígenas?
Levi Marques-Pereira – Nos casos em que há comprovação da
ocupação tradicional indígena, como no caso dos 17.200 hectares
reivindicados pelas aldeias de Buriti, a solução parece passar pela devolução
das terras para os indígenas e a indenização dos proprietários. A indenização
deve ser considerada como procedimento justo, tendo em vista que a cadeia
dominial é antiga. Via de regra, os atuais proprietários adquiriram as terras
de boa fé e não foram eles os responsáveis pela expulsão dos indígenas. O
Estado deve assumir o ônus de ter titulado terras indígenas em nome de
particulares, deve reconhecer seu erro e ressarcir tanto os indígenas como os
atuais proprietários.
Levi Marques-Pereira é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas, especialista em
História da América Latina pela Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul – UFMS, mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de
Campinas – Unicamp, doutor em Antropologia Social pela Universidade de
São Paulo – USP, e pós-doutor em Antropologia Social pela Unicamp. É
professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados, onde
participa dos programas de pós-graduação em Antropologia e História.
Realizou perícias para a justiça (estadual e federal) e trabalhos
técnicos para governos, Unicef e Unesco. Atua também em estudos de
licenciamento ambiental.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/13149
06/06/2013
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