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domingo, 4 de agosto de 2013

CADA PAÍS TEM O NÚMERO DE PRESOS QUE DECIDE POLITICAMENTE TER





Para o ministro da Suprema Corte Argentina, Raúl Eugenio Zaffaroni, a redução da maioridade penal é também uma demanda mundial que se relaciona à política de criminalização da pobreza.

Viviane Tavares da  EPSJV/Fiocruz
 





 
O ministro da Suprema Corte Argentina e professor titular e diretor do Departamento de Direito Penal e Criminologia na Universidade de Buenos Aires, Raúl Eugenio Zaffaroni, fala nesta entrevista à EPSJV/Fiocruz sobre o direito penal na América Latina e como ele vem sendo usado para fazer uma ‘limpeza social’. Segundo Zaffaroni, a demanda da redução da maioridade penal e o combate às drogas seguem esta mesma linha de criminalização e exclusão do pobre.


Eis a Entrevista:
 
Raúl Eugenio Zaffaroni,
  
 EPSJV/Fiocruz - Por que o senhor defende a necessidade de uma identidade latina no direito penal?

Raúl Eugenio Zaffaroni – Nossos países estão vivendo um crescimento da legislação repressiva, porém, deveríamos caminhar para fortalecer a solidariedade pluriclassista em nosso continente. Não podemos seguir os modelos europeus e, muito menos, o norte americano, em que a política criminal é marcada por uma agenda midiática que provoca emergências passageiras, resultando em leis desconexas, que, passada a euforia midiática, continuam vigentes.

 EPSJV/Fiocruz - No Brasil, estamos diante de um cenário em que a guerra contra as drogas mata mais do que a droga em si. Como o senhor analisa isso?

Raúl Eugenio ZaffaroniÉ um fenômeno mundial. Quantos anos demoraria para que o México alcançasse a cifra de 60 mil mortos por overdose de cocaína? No entanto, já alcançou, em cinco anos, como resultado da competição para ingressar no mercado consumidor dos EUA.

 EPSJV/Fiocruz - Atualmente, a grande questão do sistema penal brasileiro é a redução da maioridade penal. Qual é a sua opinião sobre isso? O que deve ser levado em conta para se limitar essa idade?

Raúl Eugenio ZaffaroniA redução da maioridade penal é também uma demanda mundial que se relaciona à política de criminalização da pobreza. A intenção é pôr na prisão os filhos dos setores mais vulneráveis, enquanto os da classe média continuam protegidos. Embora haja alguns adolescentes assassinos, a grande maioria dos delitos que eles cometem são de pouquíssima relevância criminal. O Brasil tem um Estatuto [Estatuto da Criança e Adolescente] que é modelo para o mundo. Lamento muito que, por causa da campanha midiática, ele possa ser destruído.

 EPSJV/Fiocruz - Na Argentina existe um modelo de responsabilidade penal para adolescentes de 16 anos. Como isso se dá?

Raúl Eugenio ZaffaroniNa Argentina, a responsabilização penal começa aos 16 anos, de maneira atenuada, e somente é plena a partir dos 18 anos. Não obstante, somos vítimas da mesma campanha, embora os menores de 16 anos homicidas na cidade de Buenos Aires, nos últimos dois anos, sejam apenas dois. A ditadura reduziu a idade de responsabilização para 14 anos e logo teve que subir de novo para 16, ante ao resultado catastrófico dessa reforma brutal, como tudo o que fizeram, claro.

Ninguém pode exigir que um adolescente tenha a maturidade de um adulto. Sua inteligência está desenvolvida, mas seu aspecto emocional não. O que você faria se um adolescente jogasse um giz em outra pessoa na escola? Em vez disso, o que você faria se eu jogasse um giz no diretor da faculdade de direito em uma reunião do conselho diretivo? Não se pode alterar a natureza das coisas, uma adolescente é uma coisa e um marmanjo de 40 anos, outra.

 EPSJV/Fiocruz - Muitos especialistas consideram esse modelo atual de encarceramento dos jovens falido. Por que a sociedade continua clamando por isso? Qual seria a alternativa?

Raúl Eugenio Zaffaroni Não creio que a sociedade exija coisa alguma. São os meios de comunicação que exigem, e a sociedade, da qual fazem parte os adolescentes, é vítima dos monopólios midiáticos que criam o pânico social. Melhorem a qualidade de vida das pessoas, eduquem, ofereçam possibilidades de estudo e trabalho, criem políticas públicas viáveis. Essa é a melhor forma de lidar com os jovens. 

O Brasil é um grande país, e tem um povo extraordinário, o que vocês fazem é muito importante para toda a região, não se esqueçam disso. E não caiam nas garras dos grupos econômicos que manipulam a opinião através da mídia. O povo brasileiro é por natureza solidário e de uma elevada espiritualidade, quase mística. Não podem se deixar levar por campanhas que só objetivam destruir a solidariedade e a própria consciência nacional.

 EPSJV/Fiocruz - Como o senhor avalia o sistema de encarceramento?

Raúl Eugenio ZaffaroniAs prisões são sempre reprodutoras. São máquinas de fixação das condutas desviantes. Por isso devemos usá-las o menos possível. E, como muitas prisões latino-americanas, além disso, estão superlotadas e com altíssimo índice de mortalidade, violência etc., são ainda mais reprodutoras. O preso, subjetivamente, se desvaloriza. É um milagre que quem egresse do sistema não reincida.

Enquanto não podemos eliminar a prisão, é necessário usá-la com muita moderação. Cada país tem o número de presos que decide politicamente ter. Isso explica que os EUA tenham o índice mais alto do mundo e o Canadá quase o mais baixo de todo o mundo. Não porque os canadenses soltem os homicidas e estupradores, mas porque o nível de criminalidade média é escolhido de forma política.

Não há regra quando se trata de casos de delinquência mediana, a decisão a respeito é política, portanto, pode ser arbitrária ou não. Ademais, a maioria de nossos presos latino-americanos não estão condenados, são processados no curso da prisão preventiva. Como podemos discutir o tratamento, quando não sabemos se estamos diante de um culpado?

 EPSJV/Fiocruz - Como podemos explicar este foco no tráfico de drogas como o principal mal da sociedade atual? Ele precisa ser combatido?

Raúl Eugenio Zaffaroni A proibição de tóxicos chegou a um ponto que não sei se tem retorno sem criar um gravíssimo problema ao sistema financeiro mundial. A única solução é a legalização, porém não acho que seja possível. A queda acentuada do preço do serviço de distribuição provocaria uma perda de meio bilhão de dólares, no mínimo. 

Esta mais-valia totalmente artificial entra na espiral financeira mundial, através da lavagem de dinheiro, que o hemisfério norte monopoliza. Sem essa injeção anual, se produziria uma recessão mundial. Como se resolve isso? Sinceramente, não sei. Só sei que isso é resultado de uma política realmente criminal, no pior sentido da palavra.

 EPSJV/Fiocruz - No Brasil, estamos vivendo um fenômeno com o crack. Em estados como Rio de Janeiro e São Paulo, os usuários estão sendo encaminhados para uma internação compulsória, uma espécie de encarceramento para o tratamento. Como o senhor avalia isso?

Raúl Eugenio Zaffaroni Não sei o que é esse crack, suponho que seja um tóxico da miséria, como o nosso conhecido “paco”. O “paco” é uma mistura de venenos, vidro moído e um resíduo da cocaína.

É um veneno difundido entre as crianças e adolescentes de bairros pobres, deteriora e mata em pouco tempo, provoca lesões cerebrais. Como se combate? Quem deve ser preso? Os meninos que são vítimas? Isso não pode ser vendido sem a conivência policial, como todos os outros tóxicos proibidos, porém, nesse caso, é muito mais criminal a conivência. Seria preferível distribuir maconha. Isso é o resultado letal da proibição. Nós chegamos a isso, a matar meninos pobres.

 EPSJV/Fiocruz - Existe alguma forma de combater a violência sem produção de mais violência por parte do Estado?

Raúl Eugenio Zaffaroni Na própria pergunta está a resposta. Se o Estado produz violência não faz mais que reproduzi-la. Cada conflito requer uma solução, temos de ver qual é a solução. Não existe o crime em abstrato, existem, sim, conflitos concretos, que podem ser solucionados pela via da reparação, da conciliação, da terapêutica etc., esgotemos antes de tudo essas soluções e apenas quando não funcionarem pensemos na punição e usemos, ainda assim, o mínimo possível a prisão. Não podemos pensar em soluções com a polícia destruída, mal paga, não profissionalizada, infestada por cúpulas corruptas etc. Ou não estou descrevendo uma realidade latino-americana? (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz)

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29/07/2013
Foto: Reprodução

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