Sociólogo Michael Löwy discorre sobre os
pensamentos de Walter Benjamin, em especial, a sua visão do capitalismo
como religião.
Marcelo Netto Rodrigues, Da Redação
Um dos maiores pesquisadores da obra de Walter
Benjamin, Michael Löwy, sociólogo brasileiro radicado na França desde os anos
de 1960, veio ao Brasil no mês passado para participar de debates em torno do
recém-lançado O capitalismo como religião, livro por ele organizado.
Nele, além do fragmento que dá título ao livro,
Löwy reuniu 16 ensaios de Benjamin ainda inéditos em português ou difíceis de
consultar, que contêm, em graus variados, uma crítica radical da civilização
capitalista-industrial moderna.
O capitalismo como religião “original”, redigido em 1921, mas
que permaneceu inédito até 1985, é considerado um dos textos mais intrigantes
de Benjamin, apesar de conter – ou justamente por isso – não mais do que três
páginas.
Como, uma vez, sintetizou Löwy em artigo de 2006:
“Inspirado na obra de Max Weber [1864-1920] – nominalmente citado –, sob uma
afinidade eletiva com “A ética protestante e o espírito do capitalismo”
[1904-1905/1920], Benjamin [não obstante] vai mais longe que o sociólogo: o
capitalismo não tem somente origens religiosas, ele mesmo é uma religião, um
culto incessante, sem trégua nem piedade, que conduz o planeta humano à “casa
do desespero”. Esse fragmento pertence, como alguns textos de Georg Lukács,
Ernst Bloch ou Erich Fromm, à categoria das ‘interpretações’ anticapitalistas
de Weber”.
|
Michael Löwy |
Brasil de Fato – Como atua o capitalismo como
religião na visão de Benjamin? Essa visão ainda é pertinente?
Michael Löwy – Benjamin tem algumas intuições fortes neste ensaio,
que não é um ensaio marxista, Nessa época, Benjamin era próximo do anarquismo,
do socialismo libertário, mas ele capta alguns aspectos essenciais do capitalismo
que são surpreendentemente atuais. Primeiro, ele define o capitalismo como
culto religioso, rituais, práticas de adoração. Ele menciona que uma das
divindades dessa religião capitalista é o dinheiro. Enquanto as práticas
capitalistas, a especulação na Bolsa, as negociatas bancárias, tudo isso, são
elementos desse ritual religioso em torno do dinheiro. Ele diz que esse culto é
sem trégua nem piedade. O capitalismo não para, não tem feriado. De dia e de
noite, acompanha as pessoas, do nascimento ao túmulo. Enfim, o capitalismo
ocupa o conjunto da vida das pessoas. E ele é completamente impiedoso, não
possui ética. Isso Max Weber já tinha dito. E Benjamin retoma alguns temas de
Weber. O capitalismo é sem ética. Por essência, ele é estranho a qualquer argumento
ético. Não por maldade, mas porque a lógica do sistema não admite critérios
éticos. Isso parece também muito atual. Além disso, Benjamin também diz que no
coração da religião capitalista há o conceito de Schuld, que em alemão é ao
mesmo tempo “dívida” e “culpa”. Benjamin diz que é uma coincidência diabólica
que culpa e dívida sejam a mesma palavra. O que a gente vê hoje com a crise
capitalista é exatamente isso, quer dizer, o argumento dos governos, dos
bancos, dos economistas, da imprensa, é que quem está endividado é culpado. Se
Grécia, Portugal e Espanha estão endividados é culpa deles, porque são
preguiçosos, não trabalham. Toda uma argumentação pseudo-religiosa, moralista,
que explica a dívida pela culpa. Essa conjunção diabólica está no centro dessa
situação atual na Europa. Isso é muito evidente. Outra característica do
capitalismo como religião, segundo Benjamin, é o desespero. A religião
capitalista levou a humanidade à casa do desespero. Isso a gente vê hoje com a
crise, com esse estado de espírito de desespero terrível das pessoas, que se
traduz até em suicídio, coisas bastante terríveis do ponto de vista humano.
Então, acho que [a leitura feita por Benjamin] é de uma atualidade tremenda.
Brasil de Fato – Em As utopias de Michael
Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado (2007), lá no apêndice, o
senhor traça comentários sobre trechos d’ O capitalismo como religião,
mas o fragmento em si não aparece na íntegra. Agora, o texto inteiro de
Benjamin é publicado, mas sem os seus comentários...
Michael Löwy – Aquele texto que saiu em As utopias é uma
conferência que dei naquela ocasião e escolhi como tema esse texto de Benjamin.
Então, como já havia sido publicado não era o caso de retomá-lo. Naquela
coletânea não aparece o texto do Benjamin porque se trata de outra temática e
eu queria que o texto [na íntegra] figurasse nesta nova coletânea que estamos
lançando.
Brasil de Fato – Na orelha do livro, a psicanalista
Maria Rita Kehl ressalta que apesar da palavra “melancolia” não estar contida
no texto de Benjamin, seu sentido é iluminado por ele.
Michael Löwy – A “melancolia” aqui aparece sob a forma do
desespero, o sentimento de que você está condenado sem esperança: a
desesperança. O capitalismo é uma jaula de ferro, [conceito desenvolvido por
Weber], na qual estamos fechados sem saída. Isso é o desespero, isso é a
melancolia. Agora, Benjamin não é um melancólico resignado. Ele tem um ensaio
sobre surrealismo, de 1929, em que ele diz que ser comunista, ser
revolucionário, exige pessimismo. Ser revolucionário é organizar o pessimismo.
Então o pessimismo, a melancolia e até o desespero de Benjamin não são
resignados, não são fatalistas como era Weber. São ativos, são rebeldes, são
revolucionários. É um pouco difícil entender isso: como você pode ser um
pessimista revolucionário. Então, Benjamin argumenta que há o pessimismo porque
se deixarmos as coisas correrem como até agora, a catástrofe é inevitável. E
até agora tem sido assim. Temos sido derrotados e a história é uma sucessão de
catástrofes. Mas, ao mesmo tempo, é um chamado para a ação. Se queremos impedir
a catástrofe, temos que agir. E a única esperança de impedir a catástrofe é a
revolução. A revolução, ele escreve em Rua de mão única, é você cortar o
fi o da meada antes que pegue fogo na dinamite.
Então é um chamado à ação antes que seja tarde
demais. A uma ação urgente. Então, todo espírito dele é esse: precisamos agir
antes que seja tarde demais. Então é um pessimismo ativo, é uma melancolia
ativa e é um desespero ativo, paradoxal, mas é assim. Então, nesse fragmento,
não chega a ser um ensaio, sobre o capitalismo como religião você vê que ele
está buscando uma saída. Não está resignado, está buscando uma saída, mais além
do desespero. Temos que encontrar a porta, a janela para sair dessa casa do
desespero. Então, ele vai discutindo várias propostas de saída, dizendo: “Essa
é uma ilusão”. Por exemplo, ele pega os monges que se afastaram do capitalismo,
mas isso não é uma saída. Há quem propõe reformar o capitalismo e isso não é
uma saída, é uma ilusão, não dá para reformar o capitalismo. Então, ele vai afastando
algumas soluções, outras ele não diz se concorda ou não, mas provavelmente ele
tem mais simpatia.
Por exemplo, tem um anarquista chamado Erich Unger,
que ele propõe que os povos abandonem os países capitalistas para irem viver lá
onde o capitalismo ainda não chegou. Não sei se ele partilhava isso. Acho que
ele é mais próximo a essa época de um autor que ele cita no fragmento que é o
Gustav Landauer, que era um anarquista romântico que tinha um pouco a ideia de
que as pessoas devem que sair das cidades capitalistas para viver em colônias
anarquistas. Seriam, talvez, as ocupações e assentamentos do MST.
Brasil de Fato – Como o senhor vê os zapatistas
nisso? Pergunto isso porque o John Holloway naquele livro Como mudar o
mundo sem tomar o poder (2002) fala também da necessidade de um pessimismo,
advogando que o “erro” de alguns marxistas estaria justamente no
contrário, em insistir num positivismo, sem trocadilhos, como base para a ação
dos trabalhadores.
Michael Löwy – Muitas das colocações do Holloway são
interessantes, toda parte de crítica dele ao capitalismo acho muito pertinente
e esse pessimismo, digamos, revolucionário. Agora, a colocação de mudar o mundo
sem tomar o poder, eu acho problemática. Eu acho que você não escapa da
necessidade de criar novas formas de poder. Inclusive a experiência zapatista é
essa. O que eles fizeram lá, onde têm influência, foi tomar o poder. Criaram
formas de poder por baixo, alternativas, democráticas e o projeto deles pro
México, eu acho que é esse: o de criar uma nova forma de poder como alternativa
ao poder estatal capitalista institucional que oprime o povo mexicano há um
século.
Agora, Benjamin está buscando uma saída para isso,
ele não tem uma, mas a simpatia dele vai para o anarquismo, apesar de ele não
ter uma proposta. Depois ele vai descobrir o marxismo e ele vai, digamos,
aderir à proposta marxista, mas guardando um certo aspecto anarquista que
faz com que ele nunca vá aderir totalmente ao Partido Comunista. Mesmo ao
projeto soviético ele guarda uma distância crítica que tem a ver com essas
raízes libertárias do pensamento dele.
Brasil de Fato – Falando dessas raízes do Benjamim,
na contracapa, a também especialista em Benjamin, a professora Jeanne Marie
Gagnebin cita que a intenção do livro é a de explorar como Benjamin soube unir,
nessa rejeição ao capitalismo “impulsos oriundos do romantismo alemão, do
messianismo judaico e do marxismo libertário”. Como é que esses três impulsos
entraram na vida do Benjamin?
Michael Löwy – O Benjamin começa com reflexões teológicas
messiânicas, mas já como inspiração revolucionária. Tem um texto dele de 1915
sobre a vida dos estudantes em que ele já diz que o progresso é uma
mistificação, essa ideia de que a história é um caminho muito mais denso, a
alternativa são as imagens utópicas como o reino messiânico e a revolução. E no
mesmo texto ele menciona também os anarquistas. Então, desde o começo ele tem
essa ideia da utopia revolucionária messiânica como alternativa à ideia
burguesa de progresso. Bom, isso vai se desdobrando na obra dele, com uma
virada importante a partir de 1923 quando ele descobre o marxismo.
Mas, então, é um marxismo que incorpora a crítica
romântica à civilização. E isso é o tema que está nessa coletânea, que mostra
como a crítica romântica à civilização é um fio condutor da obra dele desde o
começo e a partir de 1923, 1924, já associada ao marxismo. E no começo também
associada a temas messiânicos, teológicos que depois vão sendo um pouco
marginalizados, mas que voltam no fim, nos últimos escritos, com força nessa
síntese extraordinária que são as Teses sobre o conceito de história (1940)
que o marxismo se associa à teologia e à crítica romântica.
Agora, a ideia de uma aliança entre a teologia e o
materialismo histórico é um dos pontos mais difíceis de entender na Europa. Os
leitores de Benjamin ou são marxistas, então dizem que a teologia é uma
metáfora, ou como [Gerhard] Scholem, são teólogos, então dizem que o marxismo é
uma questão de terminologias, ou como [Jürgen] Habermas, dizem que é impossível
se juntar marxismo com teologia e que, portanto, isso não funciona. Então é
difícil na Europa entender isso. Agora, aqui na América Latina, há condições
para se entender Benjamin, porque aqui temos o fenômeno da Teologia da
Libertação, que foi justamente isso.
Embora eles não tivessem lido Benjamin, embora a
teologia seja mais cristã do que judaica, aqui na América Latina há conjunção
entre teologia e marxismo não é uma hipótese filosófica meio arriscada, é um
movimento de massas que mudou a história da América Latina, com a Teologia da
Libertação. Então, é aqui na América Latina que se tem condições de se entender
Walter Benjamin de uma maneira mais profunda.
Brasil de Fato – Em contraposição à noção de
progresso linear, o que seria o progresso para o Benjamin, na acepção da
palavra, não na mistificação?
Michael Löwy – A ideia dominante de progresso, que é a burguesa,
mas que foi assumida por boa parte da esquerda, é a de que a história da
humanidade é a história do progresso. O capitalismo é um progresso em relação
ao feudalismo e o socialismo vai coroar , digamos, vai retomar as conquistas
capitalistas e vai levá-las até as últimas consequências. E a história é isso:
você simplesmente tem que nadar com a corrente, que a história vai caminhando
nessa direção.
Então, Benjamin rejeita essa mistificação, mostra
que a história não é nada disso, a história é a história dos dominantes, das
classes dominantes, que uma vai herdando da outra e é a história da opressão e
da derrota das tentativas de revolta dos oprimidos. Mas essas tentativas de
revoltas são os únicos aspectos progressistas da história, são essas revoluções,
desde Spartacus, os escravos que se revoltam, os camponeses que se revoltam no
século 16 na Alemanha com Thomas Münzer, a Comuna de Paris, esses
momentos de rebelião dos oprimidos são os únicos momentos de progresso.
Então, existe o que Benjamin chama uma tradição dos
oprimidos, que inclui Spartacus, Münzer, Comuna de Paris, a revolução alemã de
1919 de Rosa Luxemburgo. Então, progresso são esses momentos messiânicos,
utópicos, revolucionários, que são a interrupção da dominação, do progresso das
classes dominantes e o verdadeiro progresso será o dia em que se interromper o
progresso da dominação. Esse será o verdadeiro progresso revolucionário.
Brasil de Fato – E qual era a visão dele de
vanguarda? Como ele via o processo da Revolução Russa?
Michael Löwy – Benjamin não tem uma reflexão sobre a vanguarda.
Ele não tem uma reflexão sobre estratégia e tática. A temática política dele é
uma reflexão filosófica sobre a história, que é muito instigante, muito atual.
Mas ele não é alguém que dá a linha estratégica, tática, de partido. Aí temos
que completar Benjamin com outros. Com relação à experiência soviética ele
passa por momentos diferentes. No começo, ele ignora, o que é curioso porque de
1917 à 1923 é quando o entusiasmo pela Revolução Russa atinge o máximo na
Europa. E curiosamente Benjamin está fora, ele não se deu conta. Ele descobre a
revolução russa quando se apaixona por uma revolucionária russa [da Letônia],
Asja Lacis, e quando ele lê História e consciência de classe, do Georg Lukács,
em 1925.
Então é uma descoberta tardia. Aí ele se entusiasma
com a revolução russa, com o comunismo e vai visitar a União Soviética, em
1927, mais por amor por Asja Lacis do que por outra coisa, e aí ele começa já a
perceber que há problemas. Quando passa alguns meses na União Soviética e ele
simpatiza com um pessoal ligado a oposição de esquerda, que se dão conta de que
algo está indo errado. Nas notas que escreve durante esta estadia ele diz que
parece que a revolução se interrompeu, parece que a revolução parou. Enfi m, isso
é um primeiro momento crítico.
Ele continua acompanhando as críticas da oposição
de esquerda e em um certo momento ele lê, acho que a História da Revolução
Russa, de Trotsky (1930), e escreve, acho que para o Scholem, nunca vi uma
coisa tão impressionante, ele se interessa pelos argumentos de Trotsky, mas ele
não adere, tampouco adere ao partido, mas há um período curto, entre 1933,
quando os nazistas tomam o poder, e 35, 36, quando começam os processos de
Moscou em que ele parece aderir ao marxismo soviético, escreve alguns artigos
muito entusiastas sobre a experiência soviética, mas é um período curto, dois,
três anos.
Quando vêm os processos de Moscou, ele fica
perplexo. Ele não consegue explicar isso e, a partir daí, Ele começa mais uma
vez a se distanciar e, em 1938, ele já tem uma visão claramente crítica, embora
não exposta publicamente. Ele discute com Brecht, quando os dois dizem: “Bom,
mas o que é a União Soviética? É uma monarquia operária? Não é possível, é um
monstro, é como um peixe com chifre”. Ele tem essa idéia de que a União
Soviética virou um monstro inexplicável. Têm umas notas que ele toma sobre
Brecht em que ele fala da polícia, que ele a compara com a Gestapo, são os
mesmos métodos.
Mas, de alguma maneira, ele ainda tem esperança na
União Soviética como força antifascista. Em 1938, a União Soviética, de Stalin,
é uma ditadura autocrática com todos os seus terrores, mas é a única esperança
que temos de resistir ao nazismo. Quando vem o pacto Molotov-Ribbentrop [o
tratado de não-agressão firmado às vésperas da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), entre a Alemanha nazista e a União Soviética], ele se dá conta que
nem isso. Então, ele vê como traição e aí nas Teses sobre o conceito de
história já aparece a ideia de que o stalinismo traiu a causa, não só a
causa socialista, mas a antifascista.
Brasil de Fato – Como era a relação dele com o
Brecht?
Michael Löwy – Ele era muito amigo do Brecht, tinha muito
entusiasmo por sua obra teatral, pela poesia, muita simpatia pelo materialismo
de Brecht, mas guardava uma certa distância porque ele tinha outras
referências, românticas, teológicas que o Brecht não partilhava. Então uma
parte do marxismo dele é brechtiano e outra parte não é. E os dois compartem
essa atitude de ao mesmo tempo simpatia e distância em relação à União Soviética.
O Benjamin com mais distância.
Nessas notas sobre Brecht, Benjamin diz que alguns
dos poemas de Brecht dos anos de 1930 parecem que estão celebrando a polícia
soviética. “Isso não dá, né?”, diz ele. Então, tem uma certa distância em
relação a Brecht, mas os dois são muito próximos. E quando ele manda uma cópia
das Teses sobre o conceito de história para o Brecht, este fica muito
entusiasmado, só que ele descarta a teologia. Ele diz este texto é formidável,
mas deixemos de lado esses aspectos teológicos judaicos que não tenho
interesse.
Brasil de Fato – Além do fragmento principal, o
livro traz outros 16 ensaios. Quais são os de maior destaque?
Michael Löwy – É difícil. Cada um deles tem aspectos que eu acho
muito interessantes. É difícil dar mais importância a uns do que a outros. Cada
um deles tem uma contribuição específi ca e o conjunto forma um mosaico de
crítica da civilização. Para dar um exemplo, há um texto que se chama As
armas do futuro, que acho muito interessante.
É um texto sobre a guerra química, os gases, e a
ideia do Benjamin é de que a tecnologia e a ciência moderna a serviço do
capitalismo tem conseqüências trágicas. É a tal dialética do progresso. A
técnica e a ciência são portadoras do progresso por um lado, mas por outro são
portadoras de destruição e do capitalismo.
As guerras do futuro, então, serão terríveis porque
utilizarão as técnicas mais avançadas do capitalismo. E podem utilizar os gases
de maneira a exterminar a população civil. Agora, ele que era o mais pessimista
dos intelectuais de esquerda da Europa, mesmo ele não podia prever a bomba
atômica, muito pior do que a guerra de gás. Mas ele teve essa intuição de que a
ciência a serviço do capitalismo e das guerras imperialistas vai ter
consequências terríveis. Foi praticamente o único intelectual na Europa a ter
essa intuição.
Brasil de Fato – Como foi a compilação? Partiu de
sua pesquisa?
Michael Löwy – Sim, eu reuni esses textos – há uma edição francesa
que é um pouco diferente – com dois critérios. Um, que era o de serem textos
inéditos, na França e no Brasil, não todos, mas a grande maioria, e o segundo,
esse fio condutor, que é a crítica à civilização capitalista, de inspiração
romântica. Esse foi o critério que dá uma unidade ao conjunto. São textos muito
diferentes, de épocas diferentes, alguns pré-marxistas, outros já marxistas,
alguns têm a ver com literatura, com teologia, com política, enfim, temas muito
diferentes, mas há um fio condutor. Eu não os descobri, eles já estão
publicados [em outras línguas] nas Obras completas.
Brasil de Fato – Como foi a relação de Benjamin com
a Escola de Frankfurt?
Michael Löwy – É verdade que Horkheimer, que era professor na
Escola de Frankfurt, foi um dos que rejeitaram a tese de habilitação de
Benjamin que era um trabalho sobre o drama barroco alemão. Mas isso era numa
época em que Horkheimer não conhecia pessoalmente Benjamin, também era um livro
não-marxista, e Horkheimer a essa época já se interessava pelo marxismo. Enfim,
houve esse episódio, mas a decisão principal não coube a Horkheimer, coube a
outras pessoas. Mais tarde eles vão se tornar amigos e, de certa maneira, Benjamin
faz parte dessa constelação que é a Escola de Frankfurt. Ele tem muitas coisas
em comum com Adorno e Horkheimer.
Ele simpatizava com a Escola de Frankfurt e aqui eu
publico um texto em que ele mostra como a Escola de Frankfurt é uma crítica
radical do positivismo, tanto o burguês quanto o marxista. E o pessoal da
Escola de Frankfurt, afinal, foi quem manteve ele em Paris com uma pequena
bolsa, justo o suficiente pra ele não morrer de fome, mas graças a isso que ele
pode sobreviver no exílio francês. Agora, eles pediam de vez em quando artigos
para ele artigos para publicar na Zeitschrift für Sozialforschung,
revista para pesquisa social, que era uma revista da Escola de Frankfurt,
eles já nos Estados Unidos, exilados. Ele escreveu um texto sobre Baudelaire
que o Adorno criticou e Benjamin teve que reescrever. Houve aí uma certa tensão
entre eles, mas ao fi nal o texto foi publicado em nova versão. Há uma relação
ao mesmo tempo tensionada, mas de proximidade. E por último o Adorno tentou
convencer Benjamin a ir para os Estados Unidos, mas ele não queria, queria
estar na Europa e acabou caindo na armadilha da ocupação nazista da França.
Brasil de Fato – Esse índice onomástico foi
construído pelo senhor?
Michael Löwy – Não. Isso foi o pessoal da editora.
Brasil de Fato – É que eu achei interessante que, a
despeito do livro tratar de religião, às personagens deste campo, ali, são
concedidas as explicações mais sucintas. Tipo: “Cristo: personagem do Novo
Testamento.” Ponto. Judas, Lutero, Moisés... cada um tem uma linha só
(risos)...
Michael Löwy – Não assumo responsabilidade... (risos). Não sou
responsável pelo índice. Mas suponho que os leitores sabem quem é Cristo.
Aliás, nem sei por que puseram. Quem é que no Brasil não sabe quem é Cristo. Se
você encontrar uma pessoa que não conheça quem é Cristo, merece fazer uma tese.
Brasil de Fato – E as jornadas de junho? Como
o senhor vê essa nova cultura política surgindo no Brasil, esse novo espírito
de contestação... Ele vai numa direção mais benjaminiana, de uma contestação
que passa pelo romantismo, mas em direção a algo novo?
Michael Löwy – O Benjamin fala que o capitalismo nos leva à casa
do desespero – e é muito justo. Mas acho que o que está acontecendo agora, não
para todos, mas para uma parte da população, sobretudo a juventude – e não só
no Brasil, isso é internacional –, o desespero está se transformando em raiva.
E Benjamin tem uma frase nas Teses sobre o
conceito de história em que ele diz “sem raiva não há luta de classe” –
isso é muito verdadeiro. Então, o desespero se transforma em raiva e em
indignação, isso é muito importante. Então, temos o movimento dos Indignados
que atravessa toda Europa, vai pelos Estados Unidos, Occupy e aqui chega
no Brasil.
O que acho de interessante nesse movimento,
sobretudo nos jovens se mobilizarem, essa raiva, essa indignação contra a
injustiça, que para alguns é uma compreensão já bastante avançada do que a
injustiça tem a ver com o sistema, com o capitalismo, e outro uma visão mais
difusa. Agora, concretamente, nas jornadas de junho no Brasil, eu acho que há
esse fenômeno da indignação, da raiva. Acho que, no primeiro momento, esse
movimento com o pessoal do Passe Livre teve uma inspiração radical,
utópicorevolucionária, eu diria, libertária, extremamente positiva.
Positivo porque é negativo. Nesse primeiro momento,
quando a inspiração vinha da turma do Passe Livre, do MPL, eu acho que foi
extraordinário. Tinha um objetivo muito justo, que era protestar contra esse
absurdo que era aumentar o preço das passagens, colocar uma reivindicação muito
importante, que é a do passe livre, da gratuidade, do serviço público gratuito,
além de ter um aspecto ecológico muito importante, que é favorecer o transporte
público para reduzir a circulação de automóveis, então, acho que foi realmente
formidável.
Depois, houve a repressão e as pessoas saíram às
ruas indignadas com a repressão, muito importante, mas o negócio foi crescendo,
crescendo e acabou se diluindo. Essa é a minha impressão. Acabou virando um
grande movimento em que já não se sabia quem era o inimigo.
Aí vinha o negócio da construção dos estádios da
FIFA, da corrupção e isso e aquilo, e depois apareceu uma turma de direita
batendo em militante de esquerda porque vinham com bandeiras vermelhas. Acho
que aí se diluiu a coisa, se perdeu um pouco aquele pique que tinha no
começo. Mas francamente, não posso avançar muito porque acompanhei de longe,
ouço opinião de pessoas, mais variadas. Mas meu sentimento é este: um movimento
que começou com uma orientação claramente radical, libertária, anticapitalista,
nas suas expressões mais politizadas.
Brasil de Fato – Ele iria nessa chave romântica
revolucionária do Benjamin?
Michael Löwy – É difícil dizer. Talvez em algumas manifestações.
Teríamos que estudar mais alguns documentos que saíram, talvez com o pessoal do
Passe Livre... Não sei.
Brasil de Fato – Para encerrar, gostaria que o
senhor falasse da imagem mais conhecida de Benjamin, do “puxar o freio de mão”.
Michael Löwy – O Benjamin, nas Teses, não faz críticas a
Marx, salvo uma ou duas. Uma delas é a seguinte, ele diz que Marx achava que as
revoluções são as locomotivas da história, mas talvez a coisa seja um pouco
diferente. Talvez a revolução seja a humanidade puxando os freios para parar o
trem.
Acho que Benjamin estava pensando na história que
ele está vivendo que era a história de uma corrida para a catástrofe e a
catástrofe era a Segunda Guerra mundial e ele diz: “Precisamos puxar o freio
porque se não vai ser um desastre”. E o desastre veio: Auschwitz e Hiroshima.
Benjamin dizia que o progresso até agora é uma sucessão de catástrofes, só que
as duas maiores catástrofes da humanidade foram acontecer logo depois. Mas ele
estava prevendo.
Hoje em dia a ameaça é a catástrofe ecológica, quer
dizer, o trem da civilização capitalista está correndo com uma rapidez
crescente para um abismo que se chama catástrofe ecológica. É o aquecimento
global, é a mudança climática, que é um desastre de proporções inéditas na
história da humanidade e, se deixarmos as coisas continuar, “business as
usual”, não daqui a um século, mas de algumas dezenas de anos, vamos estar em
uma situação terrível. Daí a atualidade da chamada de Benjamin: precisamos
parar o trem suicida da civilização capitalista ocidental antes que seja tarde
demais. (Colaborou Aldo Gama)
http://www.brasildefato.com.br/node/26512
07/11/2013
Foto:
João Peschanski