“A dívida brasileira alcançou R$ 3,6 trilhões ou
82% do PIB”, destaca a auditora fiscal Maria Lúcia Fattorelli.
Do IHU-on line
O endividamento público de vários países gerou o
que a coordenadora da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida, Maria
Lúcia Fattorelli, denomina de “sistema da dívida”, ou seja, a “utilização do
endividamento público às avessas; em vez de servir para aportar recursos ao
Estado, o processo de endividamento tem sido um instrumento de contínua e
crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente
ao setor financeiro privado”.
Segundo ela, a dívida pública é, atualmente, “um
dos principais alimentos do capitalismo, especialmente na atual fase de
financeirização global, e favorece a concentração de renda no setor financeiro,
aumentando ainda mais o seu poder”. E dispara: “O Sistema da Dívida opera de
modo similar nos diversos continentes, fundamentado no enorme poder do setor
financeiro, em âmbito mundial, o que lhe possibilita exercer seu controle sobre
as estruturas legais, políticas, econômicas e de comunicação de países, gerando
diversos mecanismos que viabilizam esse esquema”.
Na entrevista a seguir, a auditora fiscal também
comenta a dívida dos estados brasileiros, a qual foi gerada de “forma espúria”
e “passou a crescer em escala exponencial.
Maria Lúcia Fattorelli |
IHU-on line
- O que é Sistema da Dívida? Como e
por que ele se reproduz em vários países do mundo?
Maria Lúcia Fattorelli – Escolhemos o tema “Sistema da
Dívida” para nortear todos os debates do seminário internacional que realizamos
na semana passada devido à importância da percepção da atuação desse esquema em
vários países.
O “Sistema da Dívida” corresponde à utilização do
endividamento público às avessas, ou seja, em vez de servir para aportar
recursos ao Estado, o processo de endividamento tem sido um instrumento de
contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados
principalmente ao setor financeiro privado.
Esse esquema funciona por meio de diversos
mecanismos que geram dívidas, na maioria das vezes sem qualquer contrapartida,
e promovem seu contínuo crescimento. Para operar, tal sistema conta privilégios
legais, políticos, econômicos e também com a grande mídia, além de contar com o
suporte dos organismos financeiros internacionais para impor medidas que
favorecem a atuação do “Sistema da Dívida”. O livro Auditoria Cidadã da
Dívida: Experiências e Métodos, que lançamos durante o seminário
internacional, detalha tais mecanismos, cabendo ressaltar os esquemas de
“salvamento de bancos”, a transformação de dívidas privadas em dívidas públicas
e a aplicação de “Planos de Ajuste Fiscal”, que se fundamentam em cortes
orçamentários, privatizações e demais reformas liberais para destinar os
recursos ao “Sistema da Dívida”
IHU-on line
- Como o Sistema da Dívida funciona
internacionalmente? Todos os países são afetados por esse sistema?
Maria Lúcia Fattorelli - As experiências de auditoria já realizadas têm
demonstrado que o “Sistema da Dívida” segue um modus operandi semelhante
em diversos países, passando por fases permeadas de fatos graves, tais como:
geração de dívidas sem contrapartida alguma ao país ou à sociedade; aplicação
de mecanismos meramente financeiros (taxas de juros abusivas, atualização
monetária automática, cobrança de comissões e taxas etc.), que fazem a dívida
crescer continuamente, também sem qualquer contrapartida real; refinanciamentos
que empacotam dívidas privadas e outros custos que não correspondem à entrega
de recursos ao estado, provocando elevação ainda maior no volume do
endividamento e beneficiando unicamente o setor financeiro privado nacional e
internacional; utilização do endividamento gerado dessa maneira como justificativa para a implementação de medidas macroeconômicas determinadas pelos
organismos internacionais (principalmente FMI e Banco Mundial) contrárias aos
interesses coletivos e que mais uma vez beneficiam unicamente o mesmo setor
financeiro, tais como privatizações, reforma da previdência, reforma
trabalhista, reforma tributária, medidas de controle inflacionário, liberdade
de movimentação de capitais etc.
A dívida pública é um dos principais alimentos do
capitalismo, especialmente na atual fase de financeirização global, e favorece
a concentração de renda no setor financeiro, aumentando ainda mais o seu poder.
Por isso, o endividamento é um problema presente em quase todos os países
capitalistas.
Além de atentar para o volume da dívida, é preciso observar o
valor dos juros que dirão o peso dessa dívida para cada país. Nesse sentido, o
endividamento brasileiro é o mais oneroso do mundo, devido às elevadíssimas
taxas de juros.
IHU-on line
- Qual a situação da dívida pública
brasileira? Que percentual do orçamento federal é destinado ao pagamento da
dívida?
Maria Lúcia Fattorelli - Os números da dívida pública brasileira indicam que
já estamos em situação de crise da dívida. Em 31/12/2012, a Dívida Externa
alcançou 442 bilhões de dólares (R$ 884 bilhões a R$ 2,00). É verdade que a
maior parte dessa dívida é privada, porém, possui a garantia do governo
brasileiro e, dessa forma, constitui uma obrigação que deve ser computada em
sua integralidade.
Por sua vez, a chamada Dívida Interna atingiu o
patamar de R$ 2,8 trilhões em 31/12/2012. A maior parte dessa dívida está nas
mãos de bancos nacionais e internacionais. Dessa forma, a dívida brasileira
alcançou R$ 3,6 trilhões ou 82% do PIB.
IHU-on line
- Como essa dinâmica ocorre
internamente entre os estados brasileiros e a União? Qual é o estado brasileiro
mais endividado?
Maria Lúcia Fattorelli - O Sistema da Dívida se reproduz também
internamente, tendo em vista que, no caso dos estados, quase toda a dívida não
possui contrapartida real e cresce a partir de mecanismos meramente
financeiros.
A maior parcela da dívida dos estados corresponde
ao refinanciamento feito pelo governo federal a partir do final da década de
1990 (com base na Lei nº 9.496/97). Esse refinanciamento englobou passivos de
bancos estaduais que seriam privatizados (PROES), ou seja, transformou parcelas
de diversas naturezas em dívida pública dos estados. Tal fato evidencia a
ausência de contrapartida de tais “dívidas” que foram geradas em processo não
transparente e questionável sob todos os aspectos e comprova a atuação do
“Sistema da Dívida”.
Além disso, existem vários questionamentos acerca
da origem da dívida refinanciada, conforme detalhamos no livro Auditoria
Cidadã da Dívida dos Estados, que lançamos em maio deste ano. Além de
gerada de forma espúria, essa dívida passou a crescer em escala exponencial
devido à extorsiva remuneração nominal cobrada pelo governo federal,
correspondente à incidência de atualização monetária mensal automática
calculada com base na variação do IGP-DI, cumulativa com a incidência de juros
de 6 a 9% ao ano.
Essa remuneração nominal tem sido tão abusiva que
diversos entes federados estão contraindo empréstimos junto ao Banco Mundial e
bancos privados internacionais para pagar ao governo federal. Uma verdadeira
aberração e ofensa ao Federalismo, além do risco de transferir a crise
financeira para o interior do país. Isso porque tais bancos internacionais
exigem, entre outras condicionalidades, a transformação do sistema
previdenciário estadual para a modalidade de fundos de pensão de natureza
privada, que investem fortemente em derivativos – papéis podres que provocaram
a crise financeira nos Estados Unidos e Europa. O estado brasileiro mais
endividado é São Paulo.
IHU-on line
- Quais são os impactos sociais e
econômicos do Sistema da Dívida?
Maria Lúcia Fattorelli - Como antes mencionado, o Sistema da Dívida opera de
modo similar nos diversos continentes, fundamentado no enorme poder do setor
financeiro, em âmbito mundial, o que lhe possibilita exercer seu controle sobre
as estruturas legais, políticas, econômicas e de comunicação de países, gerando
diversos mecanismos que viabilizam esse esquema.
Ao final, o custo da dívida pública é transferido
diretamente para a sociedade, em particular para os mais pobres, tanto por meio
do pagamento de elevados tributos incidentes sobre tudo o que consomem, quanto
pela ausência ou insuficiência de serviços públicos a que têm direito – saúde,
educação, assistência social, previdência – e, ainda, entregando patrimônio
público mediante as privatizações e a exploração ilimitada de riquezas
naturais, com irreparáveis danos ambientais, ecológicos e sociais. O custo
social é imenso.
O gráfico do orçamento federal evidencia que, na
medida em que absorve quase a metade dos recursos, todas as áreas sociais ficam
prejudicadas, o que explica o paradoxo inaceitável que existe em nosso país:
sétima economia mundial e um dos países mais injustos do mundo, desrespeitando
direitos humanos fundamentais, como denuncia a inaceitável classificação em 85º
lugar segundo o IDH medido pela ONU.
É necessário conhecer que dívidas os povos estão
pagando. A auditoria é a ferramenta que nos permite conhecer e documentar este
processo. O papel da cidadania é de suma relevância, pois além de conhecer o
processo, deve procurar incidir nessa realidade. Não pode estar passiva diante
do contínuo e crescente escoamento de recursos públicos orçamentários,
acompanhado da entrega de riquezas nacionais de forma infame.
É necessário fundamentar – com documentos e provas
– as denúncias desse vergonhoso esquema que tem submetido países e povos a uma
escravidão incompatível com a situação econômica real, suficiente para garantir
vida digna e abundante para todas as pessoas. Assim, a auditoria cidadã se
converte em uma ferramenta de luta social. Convido a todos a divulgar nossas
publicações e participar dos Núcleos da Auditoria Cidadã.
Maria Lúcia Fattorelli é auditora fiscal e coordenadora
da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida. Foi membro da Comissão de
Auditoria Integral da Dívida Pública –CAIC- no Equador em 2007-2008. É autora
de Auditoria da dívida externa. Questão de Soberania (Contraponto Editora,
2003).
http://www.brasildefato.com.br/node/26715
26/11/2013
Foto:
Agência Senado
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