Em entrevista ao Brasil de Fato, Daiara Tukano
fala sobre a miséria e as ameaças sofridas dentro dos territórios em que os
Guarani-Kaiowás vivem e sobre a articulação dos proprietários de terra no
Congresso.
Por
Camilla Hoshino, De Curitiba (PR)
Um depoimento
gravado pela militante indígena Daiara Tukano ganhou repercussão nas redes
sociais, na última semana. O vídeo fazia um apelo aos movimentos sociais e
ativistas para que se unissem à luta contra o massacre do povo Guarani-Kaiowá,
vítima da disputa por terras no município de Antônio João, no Mato Grosso do
Sul (MS).
Daiara é indígena
do povo Tukano, formada em artes pela Universidade de Brasília, mestranda em
direitos humanos, educadora, artista e militante indígena e feminista.
Em entrevista ao Brasil
de Fato, ela fala sobre a miséria e as ameaças sofridas dentro dos
territórios em que os Guarani-Kaiowás vivem, sobre a articulação dos
proprietários de terra no Congresso e a dificuldade na mediação de conflitos
ligados à demarcação de terras indígenas.
Daiara Tukano | Fotos: Reprodução/Facebook |
“Nós somos as
vítimas do maior genocídio da humanidade”, denuncia a militante, relembrando as
práticas de ocupação e colonização no continente americano.
Brasil de Fato- Na semana
passada, um vídeo publicado por você nas redes sociais denunciando o ataque dos
fazendeiros aos Guarani-Kaiowás no Mato Grosso do Sul foi amplamente
compartilhado. Ele surtiu efeito?
Daiara Tukano - O vídeo que eu
fiz foi um desabafo e acredito que tenha incomodado. Não retiro a minha
opinião. Ali eu disse que ‘qualquer pessoa que acha que levanta uma bandeira
pedindo democracia e o fim da violência, precisa abraçar a causa indígena. Caso
contrário, ela estará marchando em cima do nosso sangue’. E de repente o vídeo
viralizou de uma forma muito louca e as respostas estão aparecendo. Temos
recebido o apoio de vários coletivos de mulheres, coletivos negros, LGBT, trans
e de trabalhadores. Precisamos nos reunir todos, não apenas em favor da causa
indígena, mas nos articular muito bem, pois estamos em um momento político onde
há ameaças de retrocesso. A movimentação que acontece hoje no Congresso é muito
bem articulada, principalmente pela bancada “BBB” [boi, bíblia e bala] que
consegue aprovar diversas propostas. A frente parlamentar que ainda defende a
democracia neste país está muito reduzida.
Brasil de Fato- Sobre o conflito
naquela região, qual é a situação do território reivindicado hoje pelos
Guarani-Kaiowás?
Daiara Tukano - Os Guarani-Kaiowás tiveram esta
terra homologada em 2005 pelo Presidente da República, na época o Luiz Inácio
Lula da Silva. No mesmo ano, uma articulação de proprietários de terra
pressionou o Supremo Tribunal Federal para que o então ministro Nelson Jobim retrocedesse
na decisão final. Isso gerou um conflito legal, pois segundo a Constituição o
único poder que tem autoridade para a demarcação o dos territórios indígenas é
o Executivo. O território homologado tinha mais ou menos 9.317 hectares e de
repente os indígenas foram colocados em 2 hectares somente, sem água, sem terra
fértil e sem possibilidade de plantio. Foi um golpe do Judiciário na decisão
presidencial. Vimos a ação do Ministério Público Federal retirar os indígenas
da terra que havia sido aprovada no mesmo ano- depois de anos de luta-, e
jogá-los abandonados na beira da estrada, em uma situação de miséria.
Brasil de Fato- Ouvimos a todo o
momento muitos relatos de que a retirada das terras dos indígenas acaba
afetando as tradições, a saúde e a própria vida desses povos. Você pode
descrever melhor esta situação de miséria em que vivem?
Daiara Tukano - Miséria é
miséria. Isso quer dizer que eles sofrem ameaça física constante, violência
psicológica, violência moral e violência patrimonial o tempo inteiro. Os
pistoleiros- pagos pelos fazendeiros-, são criminosos convictos. Eles andam
pelas terras e matam livremente. Enquanto isso os indígenas são obrigados a
morar em barracos de lona de plástico, passando frio, enfrentando geadas e sem
água para beber. Os fazendeiros fazem questão de envenenar as fontes de água
próximas, jogando detrito tóxico. Ou então passam com os aviões de agrotóxico
em cima dos barracos e das crianças.
Brasil de Fato- Índice de mortes
Daiara Tukano - Como não vão
existir problemas de saúde em uma situação dessas, onde existe um estado de
miséria que é provocado de maneira intencional e criminosa? O número de óbitos
de crianças e idosos, por exemplo, causado por intoxicação, é decorrente desse
tipo de ataque. Da mesma forma que temos um número de suicídios que é
decorrente dos ataques psicológicos, inclusive físicos. Há mulheres da região
que foram estupradas e após o estupro se suicidaram. Isto consta nos relatórios
do Conselho Indigenista Missionário, está nos relatórios da Comissão de
Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e do Sendo Federal e também consta nos
relatórios que foram parar no STF e na ONU. E mesmo assim o Estado continua sem
conseguir mediar o conflito, porque quem comanda o Brasil são os
latifundiários.
Brasil de Fato- Você acredita que
a saída para este conflito passe por qual tipo de mediação?
Daiara Tukano - É uma incógnita,
mas existem algumas tentativas que estão sendo feitas. Tenho muitas ressalvas,
mas agora conseguiram aprovar no Senado Federal a PEC 71, que determina o
pagamento de indenização aos proprietários de terra. E é claro que não é
possível unicamente demonizar estes pioneiros que foram colonizar a terra dos
estados de fronteira, pois lá existem famílias e trabalhadores. O problema são
as práticas que os acompanham. São gerações que sofrem incessantemente com a
violência. E sempre vemos vídeos dos netos de fazendeiros dizendo ‘meu avô
chegou aqui há 80 anos’, clamando seu direito a terra. Mas eu conheço avôs
indígenas de mais de 100 anos que viram seus pais serem expulsos das terras,
que foram expulsos quando crianças, que enterraram seus filhos e netos, que
tiveram suas filhas estupradas, que tiveram parte da família que se suicidou e
outra que adoeceu devido à violência e que nunca serão indenizados por isso.
Essas pessoas resistem orando, fazendo seus cantos sagrados para que seu povo
sobreviva. Desse modo, é impossível negar que hoje exista um genocídio indígena.
Brasil de Fato- E sobre o tema do
conflito cultural?
Daiara Tukano - O fazendeiro e o indígena têm
relações diferentes com a terra. Enquanto que para o fazendeiro a terra é
produção, dinheiro e pedaço de chão, para o indígena a terra é espírito,
cultura, família, raiz e identidade. Então, é necessário mediar o conflito
entre esses dois entendimentos de o que significa a terra. Enquanto um vê a
terra apenas como algo a ser explorado, a cultura indígena vê a terra como algo
a ser reverenciado, protegido, cultuado e preservado. E é complicado encontrar
pontes de diálogo entre duas culturas com valores diferentes. Vale a pena
reafirmar que quando há demarcação de um território, ele não se torna
propriedade de um povo indígena e sim da União. Ele é propriedade do Brasil, de
todos nós. E ali acontece a preservação dos recursos naturais conjugada com a
proteção de um patrimônio cultural enorme que são nossos povos indígenas.
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Brasil de Fato- Você mencionou a
PEC 71, mas também existe nesse momento uma pressão da bancada ruralista para
votar a PEC 215. Como esta proposta pode afetar ainda mais os direitos
indígenas?
Daiara Tukano - A PEC 215 é
totalmente anticonstitucional. Ela quer passar do Executivo para o Legislativo
o poder de determinação sobre as terras indígenas. Mas o Legislativo demonstra
diariamente não ter conhecimento do quão complexo é o relacionamento indígena
com a sua terra de origem, além de subjugar o jogo de poder dos grandes
proprietários, dos grandes industriais, das grandes mídias e das grandes
multinacionais. Ou seja, não são pessoas que estão em uma posição de autonomia
política para poder se dar o trabalho de estudar a vivência dos envolvidos em
uma situação de demarcação de terras. Essas pessoas têm um financiamento
declarado e vão trabalhar a favor do interesse de seus partidos e de seus
financiadores, justamente aqueles que não querem ver o indígena morando na sua
terra e que atualmente estão numa campanha escrachada de ódio contra os povos
originários. Tem até gente dizendo que queremos tomar Copacabana de volta. Isto
é uma completa alucinação coletiva. Além disso, a PEC 215 está se tornando um
amontoado de várias propostas que atravessam questões já garantidas pela
Constituição e por tratados internacionais, como o direito à consulta, o
direito à autodemarcação e o direito à auto identificação. Uma PEC adiciona
coisas e não anula aquilo que já está garantido.
Brasil de Fato- Marco temporal
Daiara Tukano - Outro ponto é que
estão tentando incluir o marco temporal nessa proposta de texto final que foi
apresentada na semana passada. O marco temporal foi uma artimanha criada pela
AGU [Advocacia-Geral da União] para fazer de conta que não existe genocídio e
que os únicos territórios a ser demarcados são aquele que têm ocupação
permanente desde, pelo menos, 1988. Mas as práticas de genocídio são constantes
desde a descoberta do Brasil e, obviamente, existe um êxodo indígena, que é o
êxodo pela sobrevivência. Se você está em sua casa e chega alguém que arromba a
sua porta, mata seu pai, estupra a sua mãe e diz que também vai te matar, o que
você faz? Você corre. E isso é a realidade da maioria das populações indígenas
do Brasil, principalmente daquelas que ainda não estão em território demarcado.
É o caso dos povos do sul, do sudeste e do centro-oeste, que são justamente os
povos que estão fora do território considerado Amazônia Legal.
Brasil de Fato- Como você avalia
as ações por parte do Estado? Ainda existe a perspectiva da tutela?
Daiara Tukano - Nossa
constituição democrática derrubou isso em 1988. O índio não é mais considerado
incapaz. Temos direito a votar, a casar, à cidadania, entre outras coisas. O
que temos hoje são atendimentos adequados às especificidades da diversidade
cultural dos povos originários. O indígena tem como língua materna sua língua
originária. Para preservar a sua cultura ele precisa de uma educação
diferenciada e para ter um atendimento médico de qualidade ele vai precisar de
atendimento diferenciado. Ele fala outra língua, mas não é um estrangeiro, pois
está em sua terra. Permitir que essa cultura morra é um crime enorme. Não
podemos achar que os povos originários devam adotar a cultura do colonizador
para sobreviver.
Brasil de Fato- Além dos
Guarani-Kaiowás, quais outras etnias estão ameaçadas no Brasil?
Daiara Tukano - O genocídio
indígena é generalizado. No Mato Grosso do Sul também há os Terena que sofrem o
mesmo tipo de perseguição e violência. No Brasil também é muito simbólica a
luta dos Mundurukus, que estão resistindo a Belo Monte. Os Kariri Xocós no
nordeste enfrentam um dos genocídios mais violentos que existem e eles resistem
até hoje. Tem os Maxakali que, apenas no ano passado, foram vítimas de 100
assassinatos. A gente está dando apoio nesse momento à luta Guarani-Kaiowá,
porque consideramos que ela é extremamente simbólica. Nos consideramos todos
uma família, por isso é importante que essa luta seja vencida para que todas as
outras também possam ser. Nós fazemos parte da construção do país, da
identidade nacional, do patrimônio cultural, do patrimônio humano vivo e se
quiserem nos matar, nós iremos enfrentá-los. Se retomarmos a história do nosso
continente veremos que nós somos as vítimas do maior genocídio da humanidade. E
essas práticas são incessantes, institucionais, categóricas e cotidianas.
Brasil de Fato- E o que pode ser
feito pela sociedade civil e movimentos solidários à causa indígena para ajudar
essas lutas?
Daiara Tukano - Nosso grande desafio há dezenas de
anos continua sendo a questão da visibilidade. Os movimentos sociais são
oprimidos quando são invisibilizados. As pessoas se comovem com as situações
fora do território nacional- e, realmente, não é uma coisa pequena, porque os
conflitos no Oriente Médio são realmente desastrosos e horríveis-, mas não
podemos fechar os olhos para situações semelhantes que acontecem no Brasil. O
que pode ser feito é dar visibilidade aos nossos problemas internos, pois ainda
existem coisas que estão ao alcance de nossas mãos e outras que não estão. Nós
devemos conhecer melhor a história da formação do nosso país, revisar a nossa
própria história e identidade para podermos nos orgulhar da nossa raiz
indígena.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/
14/09/2015
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