Quilombolas interagiam com comunidades locais e criaram núcleos locais
que sobrevivem até hoje
v Flávio Gomes e Antonio Liberac C. S. Pires
Já sabemos bastante sobre os
quilombos e os mocambos no Brasil durante a escravidão, graças aos avanços da
pesquisa histórica nas últimas décadas. Assim como na Jamaica, no México e nas
Guianas coloniais, aqui proliferaram grandes comunidades de fugitivos,
especialmente Palmares e nas Minas Gerais setecentista. Porém, uma
característica mais acentuada nos assemelha à experiência dos quilombos da
Venezuela e Colômbia, denominados cumbes e palenques: o surgimento de inúmeras
pequenas e médias comunidades rurais em várias regiões. Elas se disseminaram
nas últimas décadas da escravidão e avançaram após a emancipação (1888).
Em várias partes das Américas,
libertos, escravos e principalmente fugitivos desenvolveram micro-sociedades
camponesas, com roças e extrativismo, em diversas estruturas. Nesta espécie de
campesinato negro, sempre houve articulação entre os quilombos e os setores
sociais envolventes, o que incluiu a miscigenação com grupos indígenas. Em
função do não-isolamento e ao mesmo tempo da estratégia de migração, muitos
quilombos sequer foram identificados e reprimidos por fazendeiros e autoridades
durante a escravidão. Outros foram reconhecidos como vilas de roceiros negros,
efetuando trocas mercantis e interagindo com a economia local. Destaca-se ainda
a formação de comunidades de senzalas — com cativos e libertos de um mesmo
proprietário, ou de um conjunto de proprietários, organizadas por grupos de
trabalho, famílias, compadrio e base religiosa. Em comum, estas inúmeras
comunidades compartilhavam a identidade étnica e as noções de territórios na
sua base econômica agrária.
Essas diferentes tipologias são
necessárias para entender a complexidade das formações quilombolas em várias
épocas e contextos. Os quilombos que procuravam constituir micro-sociedades
camponesas integradas à economia local coexistiram com aqueles caracterizados
pelo protesto reivindicatório, com ocupação de terras e invasões de fazendas, e
com pequenos grupos de quilombolas em migração permanente.
Aqueles mais estáveis – como Palmares
no século XVII, os quilombos de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso no século
XVIII, e vários outros na Bahia, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Rio de
Janeiro, Maranhão e Pará no século XIX — apesar das expedições reescravizadoras
tinham se reproduzido ao longo do tempo, possuindo uma economia estável. Já os
pequenos grupos de quilombolas itinerantes não tinham acampamentos fixos e suas
economias se carecterizavam, de maneira geral, por um caráter extrativo e
predatório. Desapareciam e reapareciam de forma contínua.
Também surgiriam – principalmente no
último quarto do século XIX — aquilombamentos constituídos por escravos de uma
mesma fazenda, refugiados no interior das terras do próprio senhor. Em
protestos – que podiam durar alguns meses ou mesmo anos – reivindicavam mais
autonomia e não raras vezes aceitavam voltar à situação de cativos, com a
condição de verem suas exigências atendidas. Foi o que aconteceu no final do
ano de 1870, na fazenda da Marambaia, pertencente ao Comendador Souza Breves,
localizada em Mangaratiba, no Rio de Janeiro. Um grupo de escravos tinha se
aquilombado, negando-se a ser transferido para outras fazendas. Os quilombolas
encontravam solidariedade e “auxílio nos parceiros da fazenda e seus parentes
consentindo que eles pernoitem nas mesmas senzalas, embrenhando-se durante o
dia pelas matas”. Quatro anos mais tarde, se aquilombaram alguns escravos em
uma fazenda de Barra de São João, também na província do Rio de Janeiro.
Segundo seu proprietário, o Comendador Costa Cabral, apesar da “abundância em
que viviam”, pois até mesmo fumo e aguardente lhes fornecia, “por mais de uma
vez tem-lhe fugidos os escravos, ainda que [se] conservam nas proximidades da
fazenda”. E assim esses escravos “permaneciam aquilombados”, construindo seus
ranchos nas matas da fazenda e praticando “pequenos furtos, como é costume em
tais casos para subsistirem”.
Existiam também lavradores
espertalhões, que se aproveitavam da mão-de-obra de cativos refugiados. Em
Macaé, em 1864, cerca de 26 escravos de um mesmo senhor, dados como fugidos,
foram encontrados trabalhando na fazenda do Deitado, de propriedade de Bernardo
Lopes da Cruz, logo denunciado como acoutador (aquele que oculta criminosos) e
ladrão. Os recapturados confirmaram a denúncia e revelaram que tinham sido vendidos
há pouco tempo e que o acoutador negociou com eles “o prazo de um mês pouco
mais ou menos para venderem as suas roças e criação, e dispusessem-se para a
viagem”. Um episódio original de aquilombamento. Escravos insatisfeitos com a
troca de senhor, e portanto de cativeiro, acabaram fugindo coletivamente e
foram trabalhar para outro fazendeiro, com a promessa de que seriam comprados.
Colhiam café, ora dormiam nas senzalas da fazenda para onde tinha fugido, ora
nos matos, ora em ranchos.
Casos como estes demonstram que
assenzalados e aquilombados viviam situações mais próximas do que até bem pouco
tempo sugeriu a bibliografia sobre o tema. O que está em xeque é a polarização
entre os conceitos de quilombo, idealizado como local de rebeldia, e senzala,
suposto espaço de irremediável acomodação. Um episódio ocorrido em 1882, no
município de Paraíba do Sul, no Vale do Paraíba Fluminense, ajuda a questionar
tal oposição. Os escravos da fazenda Três Barras estavam trabalhando
“tranqüilamente” na lavoura, quando reagiram contra uma diligência que
retornava de um ataque a um quilombo próximo, libertando o “chefe do quilombo”
que ia preso e tentando justiçar um “preto capataz”, responsabilizando-o pela
denúncia e prisão de alguns quilombolas.
Depois de 1888, as diversas
experiências de aquilombamento passaram a interagir ainda mais com as formações
camponesas predominantemente negras, feitas de lavradores pobres, roceiros ou
libertos. Pode ter existido um movimento migratório de famílias de libertos —
alguns dos quais também quilombolas — à procura de terras férteis e trabalho em
outras regiões e fazendas. Este parece ter sido o caso da ocupação na Baixada
Fluminense. E em diversos lugares, os libertos – como está bem documentado para
o Vale do Paraíba e Campos dos Goitacazes — permaneceram nas antigas fazendas
onde moravam. Ao mesmo tempo, grupos de quilombolas migraram para onde havia
vilas e feiras, locais em que realizavam trocas com taberneiros.
Havia também grupos formados por antigos fugitivos, desertores e mesmo soldados
que retornaram da Guerra do Paraguai. É o caso da comunidade da Barra da
Aroeira, no município de Santa Tereza, a cerca de 90 km de Palmas, capital do
Tocantins. Ela surgiu a partir de doações de terras aos ex-combatentes. Ao
voltar da Guerra, o soldado negro Felix José Rodrigues recebeu terras do
Imperador Dom Pedro II. Com outros roceiros – talvez alguns antigos quilombolas
— teria iniciado a ocupação em um lugar denominado São Domingos. Plantando
arroz, feijão, mandioca, milho e hortaliças, mas com dificuldade de comprovar
com documentos a ocupação histórica da terra, esta comunidade hoje vive
ameaçada por fazendeiros e grileiros locais.
Cada vez mais evidente, a diversidade
na formação desses grupos negros torna imprescindível uma ampliação da
definição de quilombo. É o que vêm fazendo pesquisadores que investigam
experiências de quilombos e mocambos nos séculos XVII, XVIII e XIX, e realizam
etnografias, laudos e levantamentos antropológicos. Graças a esta revisão,
faz-se enfim possível o reconhecimento da origem histórica e identitária de
comunidades, povoados e bairros negros rurais (alguns limítrofes a áreas
urbanas), como remanescentes de quilombos. Um processo que ainda tem muito o
que avançar.
v
Flávio
Gomes é professor de história da UFRJ e autor
do livro Histórias de Quilombolas. Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio de
Janeiro -- séc. XIX . São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
v
Antonio
Liberac Cardoso Simões Pires é professor da Universidade Federal do
Recôncavo Baiano e autor do livro As Associações de Homens de Cor e a Imprensa
Negra Paulista. Belo Horizonte: Daliana - MEC/SESU/Secad- Neab-UFT, 2006.
Saiba Mais - Bibliografia:
ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth
(1993) Negros do Trombetas. Guardiões de matas e rios. Belém, UFPA
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de.
(Org.) (1996) Frechal, terra de preto: quilombo reconhecido como reserva
extrativista. São Luís, SMDDH/CCN-PVN.
FRAGA FILHO, Walter Silva. (2006)
Encruzilhadas da Liberdade: Histórias e Trajetórias de Escravos e Libertos na
Bahia, 1870-1910. Campinas, Cecult, Editora da Unicamp.
PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões
e OLIVEIRA, Rosy. (2006) Sociabilidades Negras. Comunidades Remanescentes,
Escravidão e Cultura. Belo Horizonte, MEC/UFT/Daliana.
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/
14/6/2008