Beatriz Vargas, professora da UNB
afirma que nova lei é vaga e oportuniza interpretações voltadas à opressão da
esquerda.
Cristiane Sampaio Brasília
(DF)
A operação da Polícia Federal que
resultou, nessa quinta-feira (21), na prisão de 10 pessoas supostamente ligadas
ao Estado Islâmico reacendeu o debate sobre a Lei Antiterrorismo (Lei nº 13.260). Sancionada em março deste ano
pela presidenta afastada Dilma Rousseff, a legislação é criticada por
movimentos sociais e pesquisadores que interpretam a medida como uma ferramenta
de opressão dos grupos tradicionalmente alinhados à esquerda.
É o que pensa a jurista Beatriz Vargas,
professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e membro
da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB. Ela conversou com o Brasil de Fato sobre a nova legislação,
abordando ainda o contexto de perseguição política dos movimentos sociais na
atual conjuntura brasileira e o papel da academia jurídica diante do processo
que levou ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff.
Beatriz Vargas |
Confira abaixo a entrevista.
Brasil de Fato -
Qual a sua opinião sobre a Lei Antiterrorismo? Você acha que o Brasil precisava
de uma legislação como essa?
Beatriz Vargas - Não. Primeiro, porque nós não
temos terrorismo. Segundo, porque o ordenamento penal vigente dá conta de repressão,
violência à pessoa e violência ao patrimônio. Terceiro, porque acho que essa
Lei Antiterrorismo acabou sendo concebida pra reprimir os movimentos sociais. O
texto dela não tem nem clareza suficiente, então, acaba que, na prática, a
legislação pode ser usada pra que se cometam arbitrariedades contra os
movimentos.
Brasil de Fato - Tem
alguns pontos da lei que poderiam interferir mais nas ações dos movimentos de
rua durante um evento como as Olimpíadas, por exemplo?
Beatriz Vargas - De modo geral, o que posso
falar é que existem umas previsões na legislação que são muito fluidas,
ambíguas e, portanto, abertas, podendo abrigar qualquer coisa. Principalmente
porque, no meu modo de ver, uma ação terrorista visa necessariamente algum tipo
de mudança de poder. Não deixa de ser um crime de natureza política, e a lei
não garante isso. Veja, por exemplo, que um black bloc pode ser enquadrado numa
legislação dessa, o que é uma coisa absurda porque não existe na atuação dele
nenhum tipo de motivação de mudança de poder, de regime, nada disso. É uma
manifestação que não tem essa dimensão.
Brasil de Fato - Em
se tratando da perseguição política aos movimentos, o que está por trás da
tentativa de criminalização desses grupos?
Beatriz Vargas - Estamos vivendo atualmente um
contexto de virada à direita e há uma intenção de criminalização de qualquer
ato, como se o direito penal fosse o grande moderador social. Se a gente
ameaçar com um castigo, a gente consegue a adesão das pessoas à legalidade. O
que leva a isso é uma série de coisas.
Temos uma sociedade conservadora,
racista, punitivista. No geral, a gente tem uma opinião pública que aceita
tortura contra preso comum, que não se sensibiliza com o genocídio de jovens
negros que ocorre todo dia, etc. E, mais que isso, temos hoje o contexto do
golpe, que, quando vai se consolidando, acaba criando uma espécie de anomia (ausência de lei).
Ele quebra a regra e libera as
pessoas pra determinados atos que numa situação institucional estável não
aconteceriam. Acho que há uma instabilidade no contexto do golpe que acaba
propiciando este tipo de resposta: mais violência policial e perseguição aos
movimentos sociais, que são geralmente associados à esquerda.
Até pouco tempo atrás, era impensável
imaginar, por exemplo, um chamado pra uma CPI da UNE, como a gente viu aí no
Congresso. Outra coisa também inimaginável era utilizar contra o MST a
legislação da organização criminosa, a Lei 12.850/2013, para enquadrar o
movimento nesse conceito. No meu entender, isso ocorre dentro de um contexto de
instabilidade política provocada pelo processo do golpe.
Brasil de Fato - Como
se dá esse embate político-ideológico do ponto de vista jurídico? É possível
afirmar, por exemplo, que a doutrina está mais alinhada à direita?
Beatriz Vargas - Não sei se seria possível
afirmar exatamente isso, mas o que se pode dizer é que o instrumento do
direito, o instrumento jurídico existe para ser usado de todos os modos. Outra
coisa é a aplicação dele, a interpretação que as instituições fazem dele. Nós
chegamos num ponto em que o nosso ordenamento jurídico começou contemplando uma
série de avanços do ponto de vista de legislação social, dos direitos e das
liberdades individuais.
Nós podemos dizer que temos um
ordenamento relativamente avançado quanto a isso, pelo menos compatibilizado
com todo um instrumental internacional de direitos humanos. Na prática, a aplicação
desse instrumental pelas instituições é que tem sido insatisfatória,
deficitária, e acho que essa é uma tendência da Justiça, que é sim uma
instituição mais conservadora. Podemos dizer que a cúpula da Justiça é mais
conservadora.
Brasil de Fato - Qual
seria o papel da academia numa conjuntura como esta atual?
Beatriz Vargas - O professor José Geraldo
[ex-reitor da UnB] me convidou recentemente pra uma série de seminários sobre
como fazer tese em tempos de golpe. A gente discutiu como pesquisar no direito
hoje dentro deste contexto e nós chegamos à conclusão de que devemos utilizar a
nossa pesquisa pra fazer uma verdadeira resistência ao desmonte desse edifício
de direitos que a gente tem.
Não posso afirmar que já chegamos a
um patamar satisfatório, claro, mas estávamos construindo esse arcabouço de
regras protetivas de direitos individuais e coletivos, e a sensação que temos
agora é de que isso está sob ameaça, no sentido de uma reversão. Então, temos
que ter uma postura de resistência e denunciar esses cortes, esses regressos,
pra gente não chegar numa segunda fase de ter que voltar à posição de conquista
de direitos, porque nós já havíamos conquistados muitos direitos de minorias,
mulheres, negros, índios, como as cotas, a união homoafetiva, a utilização de
nome social pelos transgêneros e uma série de outras coisas.
O que a gente tem visto agora é um
discurso conservador que tem avançado e conquistado apoio de uma camada
expressiva da sociedade brasileira. Num primeiro momento, nosso papel é de
fazer a denúncia disso, resistir. Isso significa fazer pressão e fornecer aos
quadros políticos e legislativos os elementos, dados e informações reais pra
que se possa compor a politica de resistência.
O que não podemos é voltar ao patamar
pré-Constituição de 88, que era o de conquistas de direitos, porque nós já
estávamos na fase de avanço desses direitos. Não podemos voltar à trincheira de
reconquista de direitos perdidos. Então, o papel da universidade é muito este
de suprir o campo político de dados empíricos sobre o mundo real, sobre o
funcionamento das instâncias decisórias dos três poderes e de fazer um discurso
de resistência.
Brasil de Fato - Por
fim, que caminho a senhora acha que os movimentos devem traçar diante deste
contexto de criminalização e turbulência política?
Penso que eles devem tentar manter
uma pauta de articulação política e tentar unificar as suas bandeiras com
outros movimentos, trabalhar em comunhão de interesses com o movimento
sindical, por exemplo, naquilo que for possível em termos de pontos comuns, e
levantar bandeiras relacionadas à condução econômica do país e à reforma
política.
Acho que essas são as duas bases que
têm sido mais atacadas pelo governo provisório. Estamos vendo uma política
econômica voltada à manutenção de altos juros, com prioridades para os
rentistas, e na linha de destroçar a previdência pública e incentivar a
previdência privada, além da desvinculação de receitas.
A gente precisa pensar nisso e os
movimentos sociais devem tentar se juntar aos demais movimentos pra lutar pela
tributação do capital, que é uma coisa que, infelizmente, nenhum dos dois
governos do PT chegou a fazer, e tentar produzir uma reforma política
consistente. O país precisa disso.
Fonte: www.brasildefato.com.br/
22 de Julho de 2016
Edição: Camila Rodrigues
da Silva
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