Maria
Firmina dos Reis publicou anonimamente 'Úrsula' em 1859 e influenciou toda a
produção literária do País
Bruna Meneguetti*
Busto de Maria Firmina dos Reis foi inaugurado em 1975 em São Luis, no Maranhão Foto: Diego Emir |
Em 2017 completa-se o centenário da morte da primeira escritora negra do
Brasil e primeira autora de romance abolicionista em toda a língua portuguesa.
Maria Firmina dos Reis publicou Úrsula em 1859, livro que
estava fora de catálogo, mas em setembro desse ano ganha nova edição pela PUC
Minas. Eduardo de Assis Duarte, pesquisador da literatura afro-brasileira,
autor de livros sobre o tema e doutor em letras, assina o posfácio e escreve
sobre a contextualização histórica da obra no conjunto de escritos de
escravizados no Ocidente.
Filha de mãe branca e pai negro,
provavelmente escravo, Firmina adquiriu, dentro das possibilidades, referências
culturais e o domínio da norma culta através da família da mãe, composta de
músicos e um primo estudioso. É possível que tal fato proporcionou que
escrevesse músicas, sendo a primeira mulher aprovada num concurso público para
o magistério em sua terra natal, o Maranhão, e também para que fundasse, mais
tarde, a primeira escola mista – com alunos brancos e negros – e gratuita do
estado, algo inovador naquele tempo.
Ainda que muito importante Firmina é pouco citada e conhecida. De acordo
com Duarte, no posfácio de uma edição de Úrsula de 2004, os
elementos determinantes para o silenciamento foram à ausência de assinatura, a
indicação de autoria feminina, a distante localização geográfica e o tratamento
inovador dado ao tema da escravidão. Ao contar a história de Úrsula,
protagonista branca; Túlio, escravo que se torna livre; Tancredo, que se
apaixona por Úrsula; Fernando, o grande vilão; e Susana, que narra suas
vivências antes de ter sido trazida como escrava, Firmina busca humanizar o
negro através da valorização da memória, algo pouco comum na época. Diferente
dela, “os autores defendiam a abolição por que a escravidão corrompia a família
branca brasileira, como acontece em As Vítimas-Algozes (1869),
de Joaquim Manuel de Macedo e A Escrava Isaura (1875), de
Bernardo Guimarães”, explica Duarte.
Apesar da excelente escrita, Firmina
omitiu seu nome assinando as obras como “Uma Maranhense”. No prólogo, ainda
diz: “Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento leitor”, falando logo
em seguida que o mesmo não tem valor por ser de uma mulher. Antigamente, era comum
esse “recato literário”, pois a escrita não costumava ser feita por mulheres.
“Evidências confirmam que escritoras do século 19 e primeiras décadas do século
20, na produção hispano-americana, apresentaram-se com uma escrita ‘menor’ como
estratégia de veiculação e aceitação de suas obras”, explica Luciana Martins
Diogo, mestra em Culturas e Identidades Brasileiras pela USP.
Embora existisse o “recato”, Firmina
não só publicou como antecedeu diversas questões atuais. Para o professor
Duarte, “a autora maranhense, pela primeira vez, constrói a crítica do
patriarcado escravista do duplo ponto de vista da vítima, mulher e negra”. Para
Luciana, um dos grandes legados da obra firminiana foram “seus questionamentos
em relação ao lugar e ao papel da mulher na sociedade”, algo que se percebe,
por exemplo, quando a protagonista diz: “Nunca pude dedicar a meu pai amor
filial que rivalizasse com aquele que sentia por minha mãe, e sabeis por quê? É
que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era
o tirano de sua mulher, e ela, triste vítima, chorava em silêncio”.
'Semeadura' (1954), de Clóvis Graciano |
Em questão histórica, Firmina, no entanto, não foi quem inaugurou a
literatura afro-brasileira. Segundo Luciana, essa literatura pode ser entendida
como uma interação dinâmica de cinco componentes: temática, autoria, ponto de
vista, linguagem e público. Já para Oswaldo de Camargo, jornalista, estudioso
da literatura negra e autor dos livros O Negro Escrito, A Descoberta do
Frio (ficção) e Carro do Êxito (contos), é
fundamental que “o escritor negro se veja como negro tire as consequências e
escreva seu texto. Por isso que um branco não pode fazer literatura negra.”
Maria Nilda de Carvalho Mota, a Dinha, poeta e doutoranda de estudos comparados
nas letras, que atua nos campos de literatura afro-brasileira e africana, no
entanto, acha que é possível, teoricamente, escrever da perspectiva de um
negro, mas diz que não tem encontrado. “Noto que as pessoas que não vivem na
pele tendem a ser sensacionalistas porque passou pelo estômago, que é a
indignação, mas tem que passar pelo coração e pela cabeça.”
Assim, para entender como a história da literatura negra se desenvolveu,
é preciso voltar antes mesmo de Firmina. O negro apareceu primeiramente nos poemas
(que antecedem os romances na maior parte das literaturas). Oswaldo explica que
o primeiro escritor mulato que vai dar “relances de uma literatura voltada para
a questão racial” é Domingos Caldas Barbosa, com o livro Viola de
Lereno. Oswaldo cita o verso em que se lê: "Ai Céu! / Ela é minha iaiá
/ O seu moleque sou eu.”
“Manuel Bandeira fala que nossa poesia vai começar com Domingos Barbosa,
porque sua linguagem usa pela primeira vez palavras brasileiras. Quando ele
fala moleque, isso tem uma conotação, porque moleque era sempre preto. Muito
tenuamente, está insinuando também uma condição racial.” Mas, segundo Oswaldo,
o primeiro autor que usa o eu negro para escrever foi Luiz Gama, com o
livro Primeiras Trovas de Getulino, de 1859. Um dos poemas, conhecido
como Bodarrada, diz: “Se negro sou, ou sou bode, / pouco importa. O
que isso pode? / Bodes há de toda a casta, / pois que a espécie é muito
vasta...”
Ou seja, no mesmo ano em que Gama
torna-se o primeiro negro a se dizer como tal em São Paulo, Maria Firmina,
anonimamente, torna-se a primeira mulher a fazer literatura negra no Maranhão.
“Bode quer dizer mulato. Então é um passo grande entre Caldas Barbosa e Luiz
Gama, que vai responder à sociedade da Pauliceia mostrando que nossa sociedade
está cheia de bodes, mas todos tentando esconder a sua parte negra. Alguns
conseguiram”, explica Oswaldo.
Para o escritor e estudioso, não é à
toa que o negro não costumava ser visto ou citado sequer pelos mulatos. “A
primeira coisa que um pardo ou mulato fazia era passar a linha de cor porque
ser negro era sinônimo de escravo. A partir daí há um embranquecimento social
muito sério. Então, o próprio branco, quando uma pessoa escura ascendia, queria
tirá-lo do rol de pessoas negras.” Não é à toa que até hoje o rosto verdadeiro
de Maria Firmina é desconhecido. O branqueamento da imagem foi sendo construído
ao longo desses anos com base em um equívoco. Um retrato existente na Câmara
dos Vereadores de Guimarães foi inspirado na imagem de uma escritora branca
gaúcha, que acreditava-se ser Firmina. O busto que está no Museu Histórico do
Maranhão também reproduz a imagem de uma branca.
Apesar das tentativas de se ocultar o negro da história, muitos outros
nomes surgiram, como o mulato Francisco de Paula Brito, o primeiro editor do
Brasil. Considerado um dos precursores do conto, além disso, editou O
Filho do Pescador (1843), primeiro romance do País, escrito pelo
mulato Antônio Gonçalves Teixeira e Souza. Outros nomes são Cruz e Souza, filho
de ex-escravos e que fez literatura negra; Lima Barreto, que se assume como
mulato e é o homenageado da Flip em 2017; Lino Guedes, que é o primeiro autor
negro a escrever mirando o público da mesma cor; isso sem citar Machado de
Assis e Mário de Andrade. Paralelamente a eles, outros escritores surgem
colocando o negro em suas obras, nem sempre de modo positivo.
Segundo estudos da pesquisadora Maria Nazareth Soares Fonseca (2011), os
negros na literatura, quando vistos como objeto, podem ser agrupados do
seguinte modo: escravos e ex-escravos, como em Gregório de Matos (século 17);
branqueamento, como em O Mulato (1881), de Aluísio de Azevedo;
vítima, como em O Navio Negreiro (1869), de Castro Alves;
negro ruim, como em Bom-Crioulo (1895), de Adolfo Caminha;
negro como depravado, em A Carne (1888), de Júlio Ribeiro;
negro como inferioridade, como em O Demônio Familiar (1857),
de José de Alencar.
A partir de 1870, o negro é tema constante na pena de quase todos os
poetas do Brasil e, desde o início da década de 1980, há um aumento da produção
de escritores que “vinculam a noção de sujeito à de etnia afrodescendente”,
como explica Duarte. Com a primeira edição de Cadernos Negros, em
25 de novembro de 1978, pelo grupo Quilombhoje, que proporcionou a autores
negros a possibilidade de terem textos publicados, de preferência com a
temática negra, as mulheres finalmente voltam a aparecer. “Os escritores e
escritoras negras existiam, mas não tinham meios de publicar”, informa Maria
Nilda. A iniciativa ainda existe e já revelou diversos autores e autoras consagradas,
como Conceição Evaristo, que publicou seu primeiro poema em uma edição
dos Cadernos e hoje é uma das principais expoentes da
literatura afro-brasileira.
Outros nomes atuais ou recentes na nossa literatura são Carolina Maria
de Jesus, que publicou Quarto de Despejo (1960), um diário em
que registrava o dia a dia como catadora de latas na favela do Canindé, em São
Paulo; Joel Rufino dos Santos, vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura; Ana
Maria Gonçalves, com Um Defeito de Cor, Prêmio Casa de las Américas
de 2007; e Cuti (Luiz Silva), com mais de 20 títulos publicados abrangendo
poesia, contos, dramaturgia e crítica. Para Maria Nilda, que também escreve “a
gente é mais comercializável do que no passado. Mas ainda falta muito,
né?”
Para termos uma dimensão melhor dos tempos atuais, há a pesquisa de
Regina Dalcastagnè, presente no livro Literatura Brasileira
Contemporânea: Um Território Contestado (2012), que analisou 258
romances publicados no período de 1990 a 2004 pelas editoras Companhia das Letras,
Record e Rocco. De acordo com os dados, no romance brasileiro atual, apenas
7,9% das personagens são negras. Desse pequeno universo, 20,4% são bandidos,
12,2% empregados e 9,2% são escravos. Entre as causas de morte, 61,1% das
personagens negras são assassinadas pelos escritores em seus romances, enquanto
apenas 28,1% das personagens brancas são vítimas de assassinatos.
Para Oswaldo, a dificuldade do autor
negro hoje em dia é apostar em uma temática que não é conhecida. “O importante
não é, de fato, ser lembrado como um grande autor. Não são citados tanto agora?
Não importa. O benefício que estão fazendo com seus textos, não dá para
mensurar. A literatura não é feita só com grandes autores, é feita com arroz e
feijão também.” Já para Maria Nilda, a literatura atual vive um momento
“revolucionário”, que está mudando as formas, linguagens, conteúdos e sujeitos.
“Escritoras novas são impulsionadas pelas mais velhas, mas a gente também as
promove. É dialético esse movimento. Elas nos dão referência e a gente lhes dá
sustentabilidade.”
Assim, cem anos depois da morte de
Firmina, a situação mudou, mas a voz da escritora e de tantos outros que vieram
depois ainda ecoa em um país que pouco conhece a história e a cor de seus
escritores e escritoras do passado e presente. Como diria Firmina em seu livro:
“Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como
a ti mesmo – e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu
semelhante!... Aquele que também era livre no seu país... Aquele que é seu
irmão?”
*Bruna Meneguetti é jornalista e escritora, autora do livro 'O Céu de
Clarice'
Fonte: http://alias.estadao.com.br
29
Julho 2017
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