Petrina foi
líder da rádio Mega FM, que ficou no ar por 10 anos, até ser fechada pela
Anatel em 2007.
Larissa Costa
A “militância
por necessidade” começou na associação de bairro e chegou na luta pela
democratização da comunicação. Adenilde foi uma das responsáveis pela rádio
comunitária Mega FM, fundada em 1997, que ficou no ar por 10 anos, até ser
fechada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Com inspiração em
iniciativas como a da Rádio Favela, de Belo Horizonte, a Rádio Mega chegou a
70% da cidade com uma programação diversa e plural, do rock pesado aos
programas religiosos.
Hoje, a rádio
é tema de tese, dissertação, monografia e artigos de revista. Mas antes disso,
é uma experiência esperançosa de organização social, de comunicação popular na
periferia, de formação e luta do povo negro. Confira a entrevista com Adenilde,
que é Doutora Honoris Causa da Universidade Federal de Juiz de Fora, título
recebido em nome da comunidade.
BRASIL DE FATO MG – A senhora começou sua militância política ainda na
década de 1970. Como que isso aconteceu?
ADENILDE PETRINA – Comecei
com 18 pra 19 anos, aqui no bairro Santa Cândida. Na época, aqui não tinha
água, luz, esgoto, calçamento, nem casas direito. A gente tinha que buscar água
muito longe, e andava muito. A maioria da população trabalhava e quando chegava
à noite ia buscar água e tinha que subir um morro danado.
A dona
Aparecida começou um movimento para pedir as autoridades melhorias para o
bairro e assim eu resolvi participar. Fui secretária da Sociedade Pró
Melhoramento do bairro Santa Cândida (SPM).
A militância
começou por necessidade, de todas nós daqui bairro. A maioria das pessoas que
estavam no movimento eram mulheres. E foi muita luta para conseguir o que a
gente queria. Primeiro conseguimos a luz em uma parte do bairro, tivemos que
lutar para ter luz na outra parte.
Conseguimos
água e calçamento e aí ficou faltando a escola, porque todo ano era uma
dificuldade para matricular as crianças. As mulheres dormiam nas filas quando
chegava a vez delas, não tinha mais vaga.
A gente lutou
bastante e conseguimos um terreno e a escola foi construída em 1985, depois que
já tinha acabado a Ditadura Militar, quando teve o primeiro governo eleito
democraticamente, entre aspas, porque a democracia não chegou nas periferias.
Ganhamos o terreno e a prefeitura construiu, inicialmente, duas salas e na
medida da necessidade foi aumentando.
Hoje a escola
do nosso bairro é nosso orgulho porque, é uma escola muito respeitada pelos
projetos que desenvolve junto com a Universidade Federal de Juiz de Fora.
Depois o pessoal quis a igreja para poder fazer catecismo, reuniões e assistir
as missas. Conseguimos o terreno e também a construção foi feita.
BRASIL DE FATO MG – Por que a senhora afirma que a democracia não chegou
até as periferias?
ADENILDE
PETRINA – A periferia na época
era invisibilizada, tanto é que Carolina Maria de Jesus, que é uma escritora
que a gente valoriza muito, escreveu nos anos 1960, um livro em que ela fala
que a periferia é o quarto de despejo da cidade. É uma comunidade que não
existe, só existe como um lugar em que você vai, pega o que precisa e depois
não dá importância.
E mais para
frente, estudando o Frantz Fanon, “Os condenados da terra”, a gente percebeu
que existem duas cidades, a cidade negra, que são os bairros e as periferias, e
a cidade branca, que é o centro e os bairros de luxo.
“Rádio é igual as capitanias hereditárias, pertencem a poucos da elite”
Aí a gente
questiona que democracia é essa. A periferia é procurada de quatro em quatro
anos, e durante os quatro anos seguintes, vive de qualquer maneira. A cultura
hip hop, nos anos 1980, nos tirou da invisibilidade.
Passamos a
existir, mas os problemas continuaram os mesmos: o racismo, a violência, o
descaso das autoridades, a ausência de políticas públicas, falta de saúde e
educação de qualidade. Como o Fanon falou, nós continuamos colonizados e tudo o
que a gente recebe é de segunda classe.
BRASIL DE FATO MG – E no Santa Cândida vocês criaram a Rádio Mega.
ADENILDE
PETRINA – Aqui no bairro tinha
o DJ Nonô que possuía uma equipe de som chamada Space Lab. Ele fazia baile
black nas periferias de Juiz de Fora e durante a semana, junto com o grêmio
estudantil da escola Cândido Motta Filho, ele fazia uma programação de rádio
escola no recreio dos alunos na parte da noite.
Conversando
com ele, surgiu a ideia de montar uma rádio comunitária para tocar as músicas
dos artistas da periferia e as que eles gostavam. Assim começou a movimentação
para criar a Rádio Mega.
O povo da
comunidade, no principio, ficou meio reticente, mas aderiu à ideia e assim a
gente conseguiu um abaixo assinado que autorizava a rádio comunitária no nosso
bairro, que entrou no ar no dia 19 de julho de 1997.
A população
apareceu na assembleia para decidir a programação e, como era muita gente, o
horário foi fatiado de uma em uma hora para que todo mundo pudesse participar e
fazer o seu programa.
BRASIL DE FATO MG – E como era a programação da rádio?
ADENILDE
PETRINA – Na assembleia, ficou
definido que a rádio era pra levar informação, conhecimento, consciência,
educação e ser uma ponte para a fraternidade dentro da comunidade e em outras
comunidades que ela conseguisse chegar.
Para a
programação, cada um escolheu o que queria e apareceram vários tipos de gostos,
como samba, sertanejo raiz, pagode, rock n’roll nas suas várias tendências.
Tinha também programas da igreja, mas era tudo plural, tinha a linha da
teologia da libertação, renovação carismática, programa espírita, de umbanda,
candomblé, de esoterismo também.
Tinha
programa dos movimentos sociais da cidade, do movimento negro. Tinha um muito
importante que foi o Voz D’África, que falava sobre África, porque ninguém
conhecia. A gente fez uma pesquisa no bairro para saber o que o pessoal sabia
sobre a África e a maioria só sabia que lá tinha zebra, leão e que tinha muita
fome.
“Os poderosos não querem que a gente se informe para não lutar pelos
nossos direitos”
O programa, a
partir dessa pesquisa, falava que a África era um continente, como o europeu, o
americano e o asiático; que tinha 54 países, línguas diferentes, culturas
diferentes, música, arte, culinária. O programa tratava da história da África e
dos negros no Brasil. A gente também tinha um programa indígena que chamava
Potirõ, que era produzido pelo Conselho Indigenista Missionário.
Tinha um
programa de mulher, que foi super importante, porque despertou na mulherada
aqui do Santa Cândida a consciência de que a mulher tinha um lugar na história
e direitos que a gente não conhecia. E foi muito bom a tomada de consciência
que não éramos objeto, não tínhamos que sofrer violência.
A gente foi
tomando consciência que não era propriedade de um homem da casa. 10:37 O
programa do movimento gay chamado Diversidade tratava da questão LGBT e isso
também foi bom pra Santa Cândida porque acabou com o preconceito e uniu todo
mundo na mesma luta, descobrimos que estamos todos no mesmo barco.
Outro
programa interessante, que a gente chamava de assombração, o Pega Fenômeno,
falava do extraordinário, de fantasmas, ufologia. A gente pesquisava no bairro
os causos de assombração e transformava essas histórias em novelas. E toda
sexta-feira, à meia-noite passava na rádio. O pessoal gostava bastante.
BRASIL DE FATO MG – E o hip hop?
ADENILDE
PETRINA – A cultura hip hop
ocupava uma boa parte da programação da rádio e era feita por jovens, que
tomavam conta da rádio durante a semana. E no fim de semana eram os mais
velhos. Dos programas de rap na Mega, o movimento hip hop começou a se
rearticular na cidade, porque já existia, mas tinha saído de cena.
Com a rádio,
foram criadas várias posses, a primeira foi a posse de cultura hip hop Antônio
Conselheiro. Aí essas posses tinham pessoas de várias comunidades, de onde a
rádio chegava. O pessoal se ligava no hip hop e vinha na rádio para conhecer
quem fazia os programas. Depois, veio a posse Zumbi dos Palmares e aí a gente
tinha um trabalho de levar a cultura hip hop nas escolas.
E a partir
daí, dentro da rádio, foi criada o evento Agosto Negro, em 2003. Nesse evento,
a gente discute assuntos interessantes para cultura negra e para a raça negra.
A gente estuda por uns dois meses e depois sai durante o mês de agosto nas
escolas levando aquilo que a gente estudou.
O primeiro
Agosto Negro teve como tema a informação como o quinto elemento da cultura hip
hop. Nesse tema, a gente falou sobre saúde, racismo, preconceito contra os
homossexuais, contra as mulheres. E aí não parou mais. O último Agosto Negro,
por causa da pandemia, foi feito online.
BRASIL DE FATO MG – E como foi tocar uma rádio comunitária sem recurso
por tanto tempo?
ADENILDE
PETRINA – A gente tocou essa
rádio no braço mesmo, era nós por nós, praticamente sem nenhum recurso. A rádio
funcionava em um cômodo aqui em casa, então a gente não cobrava luz nem água
nem nada, porque a família toda participava de movimento social.
E aí cada um
trazia seus CDs, seu material de trabalho, porque a rádio não tinha. E os
equipamentos eram emprestados e todo mundo contribuía com a vontade. A gente
fazia reunião de dois em dois meses, cada um chegava com o lanche, que era
comunitário, e assim a gente foi vivendo. Quando tinha problema no transmissor,
era de forma comunitária que a gente resolvia.
BRASIL DE FATO MG – E rádio foi fechada em 2003.
ADENILDE
PETRINA – A Anatel teve aqui,
levou nosso transmissor, mas nós conseguimos outro e funcionamos até 2007,
quando a gente sofreu mais ameaças. Foi quando a gente resolveu encerrar as
atividades da rádio, mas continuamos com a cultura hip hop, com o Agosto Negro.
Até chegar em 2013 quando a gente criou o coletivo Vozes da Rua,
para cumprir com os mesmos objetivos da Rádio Mega, que era levar informação,
conhecimento, cultura hip hop e ser uma ponte para fraternidade entre as
comunidades e os jovens da nossa periferia.
BRASIL DE FATO MG – Imagino que vocês devem ter sofrido muito quando a
rádio foi fechada.
ADENILDE PETRINA – Sofremos
sim, ficamos indignados, porque a gente foi processado, condenado, mas o
advogado que nos defendeu de graça mostrou que a gente não tinha interesse de
ficar rico ou de ganhar dinheiro com a rádio. Nosso interesse era dar voz aos movimentos sociais e às pessoas das
comunidades.
Nós pagamos
serviços comunitários, pagamos cestas básicas durante um tempo, a gente não
podia sair da cidade, mas a rádio não saiu do ar, porque nós conseguimos o
outro transmissor. Depois é que não deu mais. Foi uma barra muito grande.
Só que nas
nossas reuniões, a gente discutia sobre conseguir uma concessão, a gente até
tentou em 2001, mas não conseguiu e continuamos a funcionar assim mesmo. E nas
reuniões a gente falava que a qualquer hora a rádio poderia ser fechada, e que
a gente tinha que fazer nosso trabalho de uma maneira que depois da rádio
fechada, a gente não ficasse com remorso de não ter feito o que deveria.
“O que leva ao fechamento de uma rádio comunitária é a força que tem
dentro das comunidades”
Então a gente
sentava a pua mesmo, sentava o cacete nas autoridades, falava tudo o que a
gente queria, denunciava o que tinha de denunciar, falava dos problemas da
comunidade, dos problemas do país, metia o cacete na televisão que não nos
representava.
A gente sente sim muita falta da rádio, mas temos a sensação de dever
cumprido. Fizemos tudo que uma rádio, em nossa opinião, deveria fazer, que era ser voz da comunidade, da periferia, levar
informações, formar e alfabetizar o olhar das pessoas para mídia hegemônica.
BRASIL DE FATO MG – E por que não conseguiram a concessão?
ADENILDE
PETRINA – A gente fez tudo
direitinho, de acordo com o manual para conseguir a concessão. A dona Maria e a
Taís foram para Belo Horizonte levar o material que a gente reuniu, daí o moço
que recebeu a gente, que eu não me lembro do nome, mas era ele quem ia fazer a
inscrição da rádio, perguntou se a gente tinha padrinho político.
A gente
respondeu que não, porque nossa rádio era plural e política, mas não no sentido
de partido político. Ele respondeu que por isso a gente já tinha perdido a
concessão. E perdemos mesmo. Isso foi por volta de 2002.
Em 2007 a
gente nem tentou mais, porque quando a Anatel fechou a rádio, ela cobrou uma
multa imensa. E a gente não tinha dinheiro e nem condição de pagar, nem se todo
mundo juntasse tudo o que ganhava não ia dar. O encarregado de fazer o arresto
dos bens da rádio chegou, mas não tinha nada mais, porque a gente tinha
devolvido tudo.
Ele disse na
época, que ia cobrar da diretoria. Nós ficamos apavorados, fomos na ouvidoria,
e o ouvidor explicou que o Lula tinha assinado uma lei que parcelava a dívida
das rádios comunitárias e até perdoava uma parte. E nós esperamos três meses
para essa lei sair no Diário Oficial, aí pagamos 20 prestações de R$ 140.
Fechamos tudo e guardamos os documentos para história.
BRASIL DE FATO MG – A perseguição às rádios comunitárias acontece até
hoje. Como a senhora vê isso?
ADENILDE
PETRINA – A gente estudava
muito isso dentro da rádio, porque tem uma professora da universidade que dá
aula de comunicação comunitária e participava da rádio com um programa de
mulher. Ela discutia muito com a gente a questão da comunicação no Brasil.
Então a gente
ficou sabendo que a rádio é igual as capitanias hereditárias, que pertenciam a
poucos donos, que são da elite. A elite tem a voz e a gente não tem. As rádios
hegemônicas não têm preocupação em levar informação para o povo, pelo
contrário, elas desinformam as pessoas.
E a Rádio
Mega surgiu para isso mesmo, para levar informação. Acredito que por a gente
viver em uma sociedade de classes, os poderosos não querem que a gente se
informe para não lutar pelos nossos direitos.
O que levou
ao fechamento da nossa rádio, e de outras tantas no Brasil, foi por causa da
força que tem uma rádio dentro das comunidades, da força de organização. E
posso atestar essa força porque todo mundo que escutava a nossa rádio sabia
muito bem discernir uma informação que era dada pela mídia hegemônica daquela
que era dada pelos moradores da comunidade.
Que são os
intelectuais orgânicos que participavam da rádio e levavam as informações do
ponto de vista deles. A rádio era a voz das pessoas que não tinham direito à
fala e nem de mostrar sua arte, sua inteligência e capacidade para a sociedade.
A rádio comunitária é um aglutinador de pessoas e disseminadora de ideias.
BRASIL DE FATO MG – A senhora fala sobre essa relação entre a rádio e
informação com movimentos populares. Infelizmente, muitos movimentos ainda não
valorizam a comunicação como estratégica na disputa de poder. Como a senhora
avalia isso?
ADENILDE
PETRINA – Acredito que os
movimentos sociais não perceberam ainda que a democracia não chegou nas classes
populares, nos morros e nas periferias do Brasil. Os movimentos não se deram
conta da importância da informação e não refletiram que a sociedade só será
democratizada quando houver a democratização da informação.
Só vai haver
democracia no país quando houver a democratização dos meios de comunicação. E a
própria mídia domina, é igual o Mano Brown falou, a mídia é pior que uma droga,
todo dia está nas casas alienando as pessoas.
BRASIL DE FATO MG – E para melhorar a comunicação com as periferias, o
que é mais urgente?
ADENILDE
PETRINA – A gente tem que
discutir com as pessoas. Seja por meio do teatro, da conversa, a criação de
jornaizinhos, fanzines pra distribuir na comunidade. Igual a gente fazia o “Se
liga” que era distribuído pela cultura hip hop, com notícias que tinham no
máximo quinze linhas, em uma linguagem bem fácil que o pessoal podia ler no
ônibus, se inteirar e depois buscar mais informação.
Acredito que
além de esclarecer a população sobre a importância do conhecimento, a gente
deve criar veículos para poder levar a informação pra toda comunidade.
A internet eu
acho super importante mas, como a maioria dos moradores das periferias ainda
não tem internet, pelo menos aqui no nosso bairro, para nós é meio difícil. E
só uma minoria que vai aproveitar. Então a gente tem que buscar outras maneiras
de levar informação.
Agosto Negro
é uma. A gente vai para a rua, vai paras as praças, para as escolas, levando
uma pauta sobre racismo, história dos negros, da África. A gente sabe que
acabar com o racismo é difícil, porque para isso tem que acabar com o
capitalismo. Para a gente chegar lá temos que ver que o racismo é um problema
para toda a sociedade, não só para nós negros.
Fonte https://www.brasildefato.com.br/
Belo Horizonte
Brasil de Fato MG
23 de Novembro de 2020
Fonte: BdF Minas
Gerais
Edição: Elis Almeida