Para o ativista, o capital, representado pelas
mineradoras, não está interessado em mudar sua conduta para salvar vidas.
Indígena nascido à beira do rio Doce, o ativista e escritor Ailton Krenak acredita que a lama não contaminou apenas o Watu, o rio que assume a condição de “entidade”, de “avô” para os Krenak. Foi também a destruição de uma enorme rede de vida.
No
dia 5 de novembro de 2015, o
rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana (MG), espalhou
cerca de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração em toda a bacia
do rio Doce. Além das 19 vítimas e dos 860 hectares de Mata Atlântica
destruídos, a lama da Samarco/Vale/BHP atingiu quatro terras indígenas e
mais de 43 municípios
O rejeito da mineração contaminou os 675
quilômetros do Rio Doce e seus 113 afluentes. Pelo menos 11 toneladas de
peixes morreram.
Na
semana em que o crime de Mariana completa cinco anos, Ailton Krenak conversou
com o Brasil de Fato sobre a morte do rio
Doce e a impunidade de um crime sem reparação e justiça.
Para Krenak, não é coincidência que o crime
tenha tido muito impacto nas populações negras e indígenas da região. Ele
relembra a herança escravocrata das cidades minerárias históricas como
Mariana e Ouro Preto.
"A mineração não tem dignidade
nenhuma não, ela paga salário porque é obrigado, se ela pudesse, continuaria
escravizando as pessoas", ressalta.
O líder indígena ressalta que as
mineradoras investem muito mais em propaganda "pra fazer uma espécie
de lavagem da sua história suja" do que investir em tecnologia pra
diminuir o dano ambiental da atividade "que eles continuam fazendo como
querem", enfatiza.
“É
uma ofensa pras pessoas que perderam familiares, perderam a base de sua
subsistência, de sua vida, assistir uma propaganda dizendo que tudo está
voltando ao normal”, aponta Krenak sobre a publicidade da
Vale e da Fundação Renova e o discurso que estariam
“recuperando” a bacia do Rio Doce.
Quanto ao domínio das mineradoras nos
municípios mineiros, que se ampliou após o crime, Krenak entende que Minas
Gerais e o Brasil integram a plataforma extrativista presente em muitos
continentes, onde as corporações “deitam e rolam”.
“Não é falta de esclarecimento, é a
persistência de uma atividade extrativista econômica e que não tem coragem de
evoluir, porque se a mineração tivesse coragem de investir e evoluir ela não
fazia o dano que ela faz nos lugares onde ela se instala”, argumenta.
Ailton
Krenak é militante histórico da causa indígena e ambiental. Participou da
Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição de 1988 e da Aliança dos
Povos da Floresta, idealizada por Chico Mendes. É autor dos livros Ideias Para Adiar o Fim do Mundo, O Amanhã Não Está à Venda e A Vida Não é Útil.
LEIA A
ENTREVISTA COMPLETA:
BRASIL DE FATO: A partir do
crime da Samarco/Vale/BHP, há cinco anos, como se transformou a relação do povo
Krenak com o rio Doce, como a destruição impactou a cultura, os laços afetivos
e comunitários entre vocês?
AILTON KRENAK: Uma enorme rede de vida foi abalada pela lama que desceu da barragem de
Mariana numa extensão de mais de 600 quilômetros de lama em alta
pressão, com a velocidade do vento, matando e destruindo a paisagem
ribeirinha também. Não só a calha do rio, a beirada do rio.
Vocês
souberam que, um ano depois, os macacos estavam morrendo e, quando foram colher
os restos pra levar pra fazer biopsia, descobriram que eles estavam
morrendo porque a cadeia alimentar deles, a cadeia que eles integram tinha sido
destruída e eles estavam sendo atacados por uma febre, que chamaram de febre
amarela.
Espécies
de insetos, de pequenos organismos que viviam da atmosfera do rio, da
ecologia do rio, das beiradas do rio, morreram. Elas foram calcinadas pela
lama, o que sobrou foram vagas na cadeia ecológica daquela bacia do rio Doce e
algumas espécies que se alimentavam da produção do rio migraram ou
morreram. As capivaras, que são animais grandes, migraram. Elas deram no pé. Vai
completar cinco anos agora que esse evento aconteceu, a lista de espécies da
fauna, ictiofauna, que desapareceu e não voltou até agora é reconhecida
por universidades e os fóruns que ficaram instituídos como observatórios.
“É uma pouca-vergonha
a Vale insistir em dizer que está recuperando a bacia do rio Doce”
A pandemia favorece
muito o esquecimento do dano que esse crime ambiental causou na vida de
milhares de pessoas e que está sendo minimizado.
Recentemente,
a Vale passou a veicular uma campanha de mídia, na televisão, nos horários de
novela e tudo, dizendo pras pessoas que está recuperando, restaurando a
bacia do rio Doce. Mostra alguns canteiros de obras e mostra imagens de rios
com água limpa. Não sei onde eles arrumaram aquelas imagens, sugerindo que as
pessoas estão pescando e produzindo, criando peixe na bacia do rio Doce.
Eu não
conheço nenhum lugar onde estão com criatórios de peixe dentro da bacia do rio
Doce mas eles mostram isso nos filmes.
As pessoas
deveriam pegar o trem da Vale e descer até Vitória. Pode pegar o trem da Vale
mesmo pra ver a mentira que ela está fazendo com sua propaganda
enganosa. É uma pouca-vergonha a Vale insistir em dizer que está
recuperando a bacia do rio Doce. As famílias que estão às margens do rio
Doce, muitas delas, não têm nem canal de interlocução com a Renova, com a Vale.
É uma ofensa
pras pessoas que perderam familiares, perderam a base de sua subsistência, de
sua vida, assistir uma propaganda dizendo que tudo está voltando ao
normal. A opinião pública tem que saber que não tem nada voltando ao
normal. E nós estamos numa pandemia, e seria cínico dizer que durante esse
ano que tudo parou, a Renova, Vale, Samarco, a BHP, estão produzindo tanto
resultado assim.
BRASIL DE FATO: Em seu livro Ideias Para Adiar o Fim do Mundo você diz:
"O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô,
é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo que
alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo".
O que é e foi Watu para o povo Krenak?]
AILTON KRENAK: O Watu é uma transcendência do sentido físico material de um rio para uma
entidade que é nosso parente. Nós chamamos ele de avô. Então nós
conversamos com Watu como você conversa com algum familiar seu, com sua avô, com seu
avô, com seu irmão. Quando uma criança nasce, ela é apresentada para esse avô
que é o rio e, com trinta dias de vida, os pais dessa criança mergulham o
corpinho daquela criança nas águas do Watu pra vacinar ele.
É o
entendimento de que aquilo vai blindar a criança, vai proteger a criança contra
doenças. Mesmo antes da invenção das vacinas, os nossos antigos acreditavam que
tinha eficácia em botar nossas crianças dentro da água, falar com o rio e
pedir pra ele proteção para aquelas pessoinhas que estavam começando suas
vidas, pra poderem andar, serem fortes.
“Pessoas sem cultura, sem
identidade,- precisam imaginar uma ciência ambiental pra dar conta do estrago
que eles estão fazendo na Terra, na vida”
Depois essas
crianças que se tornavam pessoas saudáveis e fortes continuavam conversando com
o rio e pedindo pra ele – “me dá peixe” –, e conversando
com ele pra ele dar saúde, comida...
Essa reciprocidade das pessoas do povo Borum, que são os Krenak, com o rio que é Watu, com o território onde nós vivemos, com a
montanha, ela não é uma analogia sobre seres vivos e humanos. É uma
cosmogonia, é o jeito que esse povo pensa que é o mundo.
Não é só o
rio Doce, é assim que nós pensamos que é o mundo. Com a dissociação da ideia de
que o mundo é uma coisa e nós, os humanos, somos outra, nasceu essa
abstração que chamam de meio ambiente.
Meio ambiente
é uma invenção da cabeça das pessoas que não conseguem viver a experiência de
conversar com o rio, com a montanha, de se sentir afiliado ao território
onde vive. Então essas pessoas sem cultura, sem identidade precisam
imaginar uma ciência ambiental pra dar conta do estrago que eles estão fazendo
na Terra, na vida.
BRASIL DE FATO: Nos seus livros mais recentes, você desenvolve
ideias que contrapõem princípios do sistema capitalista, como o "tempo não
é dinheiro", "o amanhã não está à venda" e "a vida não
é útil". A compensação do crime cometido pela mineração está muito
associada a distribuir dinheiro a pessoas atingidas. Qual o impacto disso na
região?
AILTON KRENAK:A razão por que ela está resumida em dinheiro é exatamente porque não
foram capazes de confrontar a realidade ambiental, ecológica, a questão de
que a bacia do rio já vinha sendo dragada, danada, destruída ao longo dos
últimos 100 anos, desde que construíram a ferrovia acompanhando o corpo do rio
e passaram a incidir sobre a mata, sobre a vegetação, sobre a vida
selvagem e transformaram o rio em um corpo pelado, um corpo
desnudado, pegando sol e pegando tudo quanto é lixo e resíduo da
bacia, as cidades jogando seus resíduos lá dentro.
Todo esse
dano implicaria em um investimento muito maior, para recuperar
ambientalmente a bacia do rio Doce. Então, é moleza transformar isso em
compensação financeira. É o jeito fácil de fazer todo mundo esquecer o que
aconteceu e seguir a vida – continuar consumindo, continuar afetando cada vez
mais a qualidade de vida nos seus próprios territórios.
“É uma maneira muito
esperta de essas corporações largarem para trás de si um rastro de
destruição e dizerem que estão produzindo progresso.”
Eu não vejo
como um desvio o fato de a única coisa que a Renova esteja fazendo seja pagar
em dinheiro o dano que as pessoas sofreram, porque isso aí é o imediato e,
provavelmente, para as corporações que praticaram esse crime é uma mixaria o
que eles pagam pra essas pessoas.
A dualidade
de pensar que tem a empresa e os atingidos é um resumo, é uma maneira de você
resumir a conversa. Os atingidos, a gente dá dinheiro, uma compensação
financeira pra eles, faz uma vila nova, instala eles lá e está resolvido. É uma
maneira muito esperta de essas corporações largarem para trás de si um rastro
de destruição e dizerem que estão produzindo progresso.
Eu costumo
dizer que agora estamos vivento uma economia do desastre. Famílias
que viviam de subsistência, de uma hora pra outra, passaram a viver da
indenização. Essas pessoas deixam as suas vidas e passam a viver uma outra
vida, que é a vida de quem vai administrar o dinheiro da indenização. É
como se você se aposentasse antes do tempo, como se você tivesse sua vida
suspensa e uma vida substituta pra você ir pra fila todo mês pegar dinheiro
pagar conta e comprar coisa. É um confinamento.
Daria pra
gente fazer um paralelo. Se a gente não tivesse na bacia do rio Doce o risco de
contágio pela covid, as pessoas estariam confinadas da mesma
maneira: esperando um caminhão-pipa, esperando a cesta básica e esperando
o pagamento no dia certo do mês. Quer dizer, eles viraram dependentes de um
sistema financeiro que eles não conhecem, que eles não têm capacidade de
entender.
“Estão causando um dano ao
bem comum, a um patrimônio que é do país inteiro, que é do povo brasileiro”
É claro que
dinheiro vai circular ali. Isso tudo pode mascarar uma situação de uma economia
do desastre. Você cria um dano e depois põe dinheiro lá, isso não é
novidade. Está cheio de país por ai, fazendo guerra, primeiro joga a bomba
no lugar, depois vão lá reconstruir o país.
Agora estamos na fila, eles destroem a bacia do rio Doce, depois
destroem a bacia do Paraopeba, e assim vão arregaçando com os rios. O rio São
Francisco está sob ameaça de implantar mais uma barragem nele.
O rio São Francisco todo mundo sabe que ele está desmilinguindo. Ele está doente e você
faz mais uma barragem lá. Quando acontecer qualquer evento que colapse a
vida do rio São Francisco, quem vai indenizar as milhares de pessoas que vivem
na bacia do São Francisco?
É uma falta
de governança, é falta de saber que isso aqui é um país e que as bacias
hidrográficas constituem o território brasileiro. Elas não são propriedade
particular das mineradoras. Se elas estragarem essas terras, elas devem muito
mais do que indenização pra essas famílias. Elas estão causando um dano ao
bem comum, a um patrimônio que é do país inteiro, que é do povo brasileiro.
Agora, se o povo brasileiro ficou todo idiota e não sabe mais nem ver quando
está sendo roubado, então a gente vai ficar na mão dessas corporações.
BRASIL DE FATO: Passados cinco anos, a lógica do capital e da
mineração se fortaleceu com o crime de Mariana?
AILTON KRENAK: Olha, tudo que é produzido da terra, tudo que é extraído da terra, a
água, o minério, a floresta, a madeira, a produção agrícola, tudo isso sofreu
um "apertamento", sofreu um estrangulamento. A disputa no mundo
inteiro por terra, por água, por floresta, ela é no mundo inteiro, não é só
aqui em Minas Gerais não.
Minas Gerais
integra essa plataforma extrativista que está em muitos continentes, e que o
Brasil é uma delas, onde as corporações deitam e rolam. Aqui é a nossa
vez de sermos esmagados por esse tipo de capitalismo que destrói os
ambientes e vai pra outro país depois.
Quando não
der mais aqui eles vão pra outro lugar, vão para a Ásia, vão para a China. Então
assim nós estamos vivendo no mundo interior uma mudança climática que já
deveria ter proibido a atividade da mineração, assim como já deveria ter sido
proibida a extração de petróleo. Os combustíveis fosseis e a mineração são duas
atividades primitivas e já deveriam ter sidos encerradas no século 21.
Nós tínhamos
que pensar em outras economias pra gente resfriar o clima do planeta, se não
nos vamos fritar todo mundo. Quando a temperatura do país chegar ao ponto de
começar a matar gente no meio da rua, talvez assim as petroleiras e as
mineradoras vão finalmente entender que está na hora de elas mudarem de
negócio.
BRASIL DE FATO: “Comunidades de sacrifício”. Assim se refere aos
territórios atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão, em 2015, a
professora Dulce Maria Pereira, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop),
que organizou estudos sobre a contaminação das populações por metais pesados e
o racismo ambiental presente nas frentes de reparação da Fundação Renova.
A maioria dos distritos
destruídos pela lama é majoritariamente negra, indígena, e estava nos
territórios antes da exploração minerária e da construção da barragem. Você
concorda com a análise de Dulce? A exploração minerária e a construção de
barragens são escolhidas pelas mineradoras em áreas onde vivem populações que
podem ser “exterminadas”?
AILTON KRENAK:Não podemos esquecer que Mariana é um povoado histórico. Mariana e
Ouro Preto foram as primeiras capitais do Brasil. Elas foram sedes do governo
colonial tão importantes quanto Potosí, para implantar o colonialismo aqui.
Não é novo o
histórico de abuso e de violência contra as comunidades originárias, os
povos indígenas, e depois os afrodescendentes e mesmo os africanos que foram
trazidos como escravos pra cá. É bom não nos esquecermos que a matriz da
mineração no Brasil é escravocrata. Quem furou as lavras de ouro nos séculos
XVII e XVIII foram os negros escravos, foram os índios também quando eles
conseguiam manter os índios presos.
Essa piada de
que os índios não gostavam de trabalhar, ela nasceu da observação dos
capatazes, que viam que os índios escapavam ao controle deles, porque conheciam
o território e porque tinham relações com outros locais onde eles podiam se
refugiar. Os negros demoraram para poder constituir as rotas de quilombos, que
eram lugares de difícil acesso onde eles podiam fugir do controle dos
capatazes da mineração.
A
mineração não tem dignidade nenhuma não, ela paga salário porque é
obrigado, se ela pudesse, continuaria escravizando as pessoas.
“Nenhum deles veio a
publico pedir desculpa pelo que aconteceu”
Aqueles
corpos não importam, se a barragem passar em cima e matar todo mundo não tem
problema nenhum, porque historicamente esses corpos nunca existiram. Nunca
foi gente que morou naquelas vilas. Pros mineradores quem estavam lá eram os
escravos. E escravo só tem valor quando está com saúde e trabalhando. Na
história colonial do Brasil, um corpo não vale nada se ele não estiver
produzindo
Aqueles
patrimônios, aquelas vilas que foram destruídas e as pessoas foram assaltadas
dentro de casa de noite, morrendo debaixo de lama, aquele evento não tem
importância nenhuma do ponto de visto ético, do ponto de vista moral pros
gerentes, pros grandes financiadores dessa atividade e, finalmente, pros seus
chefes, CEO, diretores.
Tanto que
nenhum deles veio a publico pedir desculpa pelo que aconteceu. Pelo contrário,
quando houve audiência pública na assembleia aqui de Minas Gerais, o presidente
da Vale escarneceu das famílias dizendo: "Bom, pra que desenterrar esses
corpos se eles já morreram mesmo?"
Esse tipo de
declaração, gente, é um tipo de declaração que está bem constituída na
mentalidade dos administradores de garimpo e mineração desde a colônia. Vocês
acham que essas empresas mineradoras bonitinhas cheias de tecnologias modernas
mudaram de ideologia?
No final do
século XIX, tinha um sujeito que era muito escutado por todo mundo aqui em
Minas Gerais. Ele disse que a mineração só dá uma safra. Você tira, e aquilo
que você tirou não se repõe, acabou. Principalmente se você botar em cima de um
trem e mandar pro porto e botar em um navio. Aí acabou e foi pra longe –
fica um buraco no lugar.
O Drummond
passou a vida inteira dele dizendo que tinha um buraco onde ele vivia, que é
Itabira. Itabira é um buraco. Você pensa que as mineradoras têm vergonha
de ter transformado Itabira em um buraco? Não, pelo contrario, elas fazem
introjetar na mentalidade dos moradores desses lugares como se ela tivesse ali
pra favorecer as pessoas, proteger as pessoas, levar progresso pras pessoas.
Quem leu
Drummond, vê o Drummond falando há 60 anos, o que as mineradoras estavam
fazendo em Itabira e nas outras montanhas de minas gerais.
BRASIL DE FATO: Vocês acham que essas
empresas mineradoras bonitinhas cheias de tecnologias modernas mudaram de
ideologia?
AILTON KRENAK:Não é falta de esclarecimento, é a persistência de uma atividade
extrativista econômica e que não tem coragem de evoluir, porque se a mineração
tivesse coragem de investir e evoluir ela não faria o dano que ela faz nos
lugares onde ela se instala.
Mas se você pegar um diretor deles, um desses espertalhões, ele vai
dizer pra você que eles nunca investiram tanto, que tem tecnologia de última
geração e que a mineração que eles fazem é limpa, e eles botam outdoor para todos os lados dizendo que é
sustentável.
Eles investem
muito mais em propaganda pra fazer uma espécie de lavagem da sua história suja
do que investir em tecnologia pra diminuir o dano ambiental da atividade que
eles continuam fazendo como querem.
Todo mundo
sabe que as barragens são obsoletas, malfeitas e que têm duração. Só eles é que
não sabem, só os engenheiros é que não sabem. Qualquer morador da bacia do
rio Doce sabe que essas barragens têm uma hora que elas estouram e derramam em
cima de quem tá pra baixo. Os engenheiros precisavam voltar pra escola,
então, pra aprender isso.
BRASIL DE FATO: E, do ponto de vista dos indígenas, dos Krenak,
como resistir a esse cenário de ampliação da hegemonia das mineradoras nos
territórios?
AILTON KRENAK:Não tem só cinco anos que os Krenak enfrentam a mineração. Na década de
1920 do século passado, o governo da província de Minas Gerais separou uma
reserva pras famílias que ainda estavam circulando na floresta do rio Doce
pra ir pra dentro da reserva e liberar o entorno do nosso território para
passar estrada de ferro.
Essa estrada
de ferro aí, a Vitória-Minas, ela passou dentro do nosso território, ela
atropelou muitos índios que nem sabiam o que era um trem, quando estavam
abrindo a estrada. A manutenção daquela ferrovia sempre foi um ônus pro
território e pra vida do povo Krenak.
Quando nós
fechamos a estrada de ferro em 2005, não foi por causa da barragem. Nós
fechamos a estrada em 2005 por causa do licenciamento adulterado da
hidrelétrica de Aimorés. Essa barragem foi construída pra atender a demanda de
energia da Vale do Rio Doce, e nós sabíamos disso. O povo Krenak fechou a
ferrovia. Foi um escândalo. Isso foi dez anos antes da lama.
Não é de
hoje, não é de ontem não. Nós estamos denunciando e enfrentando a
arrogância das mineradoras desde que foi criada a reserva pra gente viver em um
lugar onde eles estão predando o entorno todo. Se você olhar o Mato
Grosso, lá onde está o Parque Nacional do Xingu, o Xingu é uma ilha de mata
cercada de terra pelada por todos os lados pelos parceiros da mineração que é o
agronegócio: hidroelétricas, mineração e agronegócio.
Estão
destruindo os rios, destruindo os aquíferos, acabando com a vida das pessoas
com uma atividade "vencedora", com uma atividade que acha que tem que
ganhar um prêmio por causa disso.
São
atividades de exportação, que não acrescentam nada a economia do
Brasil. Os municípios que cedem territórios pras mineradoras, eles ganham
uma mixaria. A sociedade tinha que botar em questão essas atividades
predatórias e insustentáveis e essa enganação que é a propaganda de que eles
estão promovendo o progresso.
Se a Vale
estivesse promovendo o progresso, Minas Gerais não seria um estado tão atrasado
socialmente, economicamente em relação aos outros estados brasileiros.
BRASIL DE FATO: A resistência da cultura indígena e dos povos
indígenas é de mais de 500 anos. Um momento marcante da tua trajetória pessoal
é ter participado do processo de elaboração da Constituição de 1988, um marco
importante para a luta pelos direitos indígenas.
Agora a luta do povo Xonkleng está no STF e vai definir a validade ou não
do chamado "marco temporal", que põe em xeque demarcações
de território no Brasil. O julgamento foi novamente adiado, o que, na avaliação das organizações
indígenas, pode ser uma manobra articulada por ruralistas para tentar manter o
"marco temporal" em vigor. Como você avalia esse momento de luta pela
pela permanência nos territórios?
AILTON KRENAK: Essa situação que vivemos nos últimos 30 anos, desde que temos a
Constituição de 1988, ela reflete uma disputa constante entre as
atividades da expansão econômica do capitalismo sobre territórios que deviam
ser protegidos pela União, independente de serem terras indígenas ou não.
Os índios não
têm terra. A terra que nós habitamos são terras da União, a
Constituição diz isso. É oportunismo e cínico quem disputa território com
os índios dizerem que estão em pé de igualdade. Eles não estão em pé de
igualdade. Eles são particulares que estão querendo se apropriar de bens
comuns, da terra publica.
“A historia do Brasil é
isso, os particulares se apropriando do que é comum e virando dono”
Quando eu
disse que o rio Doce ao ser destruído é um dano ao bem comum, um dano ao
patrimônio do Brasil, patrimônio do povo brasileiro, eu digo também que quem
disputa terra com povo indígena são criminosos que querem roubar patrimônio da
União. E dentro do estado brasileiro, eles têm cumplices que apoiam as suas
ações criminosas.
Mas você tem gente dentro do estado operando o sistema jurídico
brasileiro que dá sustentação pra esse tipo de contrabando. De você pegar bens
do estado, bens da União e transformar em propriedade privada. A historia do Brasil é isso, os particulares se apropriando
do que é comum e virando dono. Viram donos de ilhas, viram donos de beira
de rio, viram de dono de margem de rodovia, viram dono de terras devolutas na
Amazônia, dando golpe.
Quem deveria
estar protegendo esses territórios era a União? O Estado brasileiro. Mas o
Estado brasileiro está dominado pelo interesse privado que quer vender tudo,
quer vender a Petrobras, quer vender o pré-sal, quer vender o SUS [Sistema
Único de Saúde], quer vender a mãe deles. Então, o que a gente vai
fazer? O povo indígena continua resistindo do mesmo jeito, tem 500 anos,
não começou ontem não.
BRASIL DE FATO: De que forma a matriz de pensamento indígena pode
contribuir ou ser decisiva para salvar esse futuro?
AILTON KRENAK:Seria talvez um exagero imaginar que depois de uma história tão
predatória e a constituição, a formação de uma sociedade desigual, complexa e
desigual como a brasileira que o pensamento, que a perspectiva dessa
minoria que são os povos indígenas, pudesse criar mudança nesse mundo, onde a
infraestrutura e a governança da coisa é feita por não-indígenas.
Eles não
respeitam nem os seres humanos que são mais ou menos parecidos com
eles, imagina se vão respeitar um rio.
“As pessoas estão
interessadas em se dar bem, que é diferente de bem viver”
As coisas vão
de mal a pior não é por falta de conhecimento, as coisas vão de mal a pior é
por causa de uma ideologia, é uma ideologia individualista, que dá prêmio para
meritocracia, que estimula competição e que não está interessada em aprender a
viver bem. As pessoas estão interessadas em se dar bem, que é diferente de bem
viver.
O pensamento
indígena é o pensamento do bem viver e a sociedade estimula o se dar bem, então
está cheio de gente que só quer se dar bem. O empreiteiro quer se dar bem,
o diretor da mineração quer se dar bem, o cara que dá licença fajuta quer se
dar bem, o membro do conselho que deveria votar sim ou não quer se dar
bem.
Como toda
essa cadeia cooperativa entre si quer se dar bem, vai demorar muito pra eles
darem ouvido a um pensamento dos povos originários, de que a terra é nossa mãe
e que a gente precisa respeitar a vida para além do humano. Não é só gente,
homem, que vive. Eles não respeitam nem os seres humanos que são mais ou menos
parecidos com eles, imagina se vão respeitar um rio.
Então, meus
amigos, é necessário ver que o povo indígena é uma minoria ínfima e pretender
que o povo indígena vá influenciar essa maioria escandalosa predatória
seria querer muito, né? Tomara que a gente consiga, pelo menos, ficar vivo
– que já seria uma vitória.
Fonte: https://www.brasildefato.com.br/
Edição: Leandro Melito
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