Céu azul, visibilidade boa, ondas que vão e vem e o
sol partindo e deixando esse lindo arrebol que serpenteia imagens transcendentais
para nós, pobres mortais. Eu aqui nesta paradisíaca praia a balançar-me numa
rede de varanda desta rústica choupana perco-me na imensidão destas pinturas vespertinas.
Ora, além, deste momento mágico vivido por este humilde poeta, acrescentaria
ainda mais, esse belíssimo texto enviado pela acadêmica do IFRN do Campus de
Ipanguaçu a sempre atuante e intelectual Jailma Lopes, aluna do curso de Informática,
do escritor Mia Couto, considerado um dos mais importantes de Moçambique; e,
diga-se de passagem, é o escritor moçambicano mais traduzido. Pois, de acordo
com ela este texto fora lido por Mia Couto na Conferência de Estoril. Conferência
que discute a questão da segurança. Eis aí, leiam e distribuam com seus pares
boa semana a todos... Ou se preferir ver e ouvir o próprio escritor lendo o texto,
veja o vídeo no final desta postagem.
Mudar o medo - Mia Couto
O medo foi um dos meus primeiros
mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer
monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era para me
guardarem, os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada
das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento
e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os
desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças
sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.
Os fantasmas que serviam na minha
infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes
que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que
eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da
minha língua, da minha cultura, do meu território. O medo foi, afinal, o mestre
que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível
mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte
vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o
seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más
propriamente ditas. No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa
do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam
crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um
ateu barbudo com um nome alemão.
Esses fantasmas tiveram o fim de
todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram
restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes
respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou
descendência. O preço dessa narrativa de terror foi, no entanto, trágico para o
continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais
indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e
conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história.
A mais grave herança dessa longa
intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a
culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A Guerra-Fria esfriou mas o
maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras
geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. Para responder às novas entidades
demoníacas não bastam os seculares meios de governação. Precisamos de
investimento divino, precisamos de intervenção de poderes que estão para além
da força humana. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política
tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder. Para
fabricar armas é preciso fabricar inimigos.
Para produzir inimigos é
imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um
dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam
decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças
domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e
menos privacidade.
Para enfrentarmos as ameaças
globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão
temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que
ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de
conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de
“eles”.
Aos adversários políticos e
militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento
que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a
humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em
permanente limiar de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as
liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a
racionalidade deve ser suspensa.
Todas estas restrições servem
para que não sejam feitas perguntas incomodas como estas: porque motivo
a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se
gastou, apenas o ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento
militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia, são
exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque
motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça? Se
queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos
que enfrentar ameaças bem reais e urgentes.
Há uma arma de destruição massiva
que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o
pretexto da guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada
seis seres humanos passa fome.
O custo para superar a fome
mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome
será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo. Mencionarei
ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres
foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É
verdade que sobre uma grande parte de nosso planeta pesa uma condenação
antecipada pelo fato simples de serem mulheres.
A nossa indignação, porém, é bem
menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um
exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos
de fazer perguntas e de discutir razões.
As questões de ética são
esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em
guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética e nem de
legalidade. É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do
espaço seja uma muralha.
A chamada Grande Muralha foi
erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou
conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses
construindo a Muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram.
Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua
própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora
de quanto o medo nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que
dividem pobres e ricos.
Mas não há hoje no mundo, muro
que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas
vivemos todos nós do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Eduardo Galeano
escreveu sobre o medo global: "Os que trabalham têm medo de perder o
trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não
têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os
militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras".
E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.
Vídeo: Conferências do Estoril 2011 - Mia Couto
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=jACccaTogxE
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