“O Brasil não conhece o Brasil”, trecho de Querelas do Brasil, samba de Adir Blanc e Maurício Tapajós. É interessante essa afirmação destes compositores; ora, o que se tem observado nos compêndios da história oficial é isto mesmo. Uma história conservadora, elitista, preconceituosa, tendenciosa, e, sobretudo distorcida da realidade. Um exemplo é a luta dos trabalhadores, que sempre fora negada, caluniada, vilipendiada. Mas, mesmo assim continuou resistindo. Como professor e cidadão atento aos anseios sociais, temos o dever de levantar a bandeira que defende a ideia de que todos nós, como agentes de transformação social, somos, portanto responsável, por embasar em nosso discurso e prática uma direção que tenha um caráter formativo e não meramente informativo. Acreditamos, esforçamo-nos e pretendemos que o nosso trabalho tenha esse objetivo, reconstruindo dessa forma, o nosso passado com um olhar nas lutas e batalhas desempenhadas pelos “marginalizados” da história. Pois, só assim estaremos contribuindo para construção de uma sociedade mais justa, humana, democrática, soberana e solidária. Deste modo, imbuído deste espírito libertário e mensageiro do resgate, das lutas, das discussões e participação popular na história do Brasil, disponibilizaremos um documento gerado em Brasília no dia 22 de agosto de 2012 no Encontro Nacional Unitário de Trabalhadores e Trabalhadoras, Povos do Campo, das Águas e das Florestas. Documento esse, que fora entregue por uma comissão a Presidente da República Dilma Rousseff, que tem como objetivo centralizar a luta de classes em torno da terra, atualmente expressada na sonhada Reforma Agrária; Terra; Território e Dignidade, como forma de fazermos uma reflexão a respeito da construção de um Brasil onde os excluídos também tenham voz e vez. Vejam o documento abaixo:
Manifestação dos Trabalahadores Rurais em Defesa da Reforma Agrária |
Declaração do Encontro de Trabalhadores e Trabalhadoras do Campo, das Águas e das Florestas.
“Nós estamos construindo a unidade em resposta aos desafios da desigualdade na distribuição da terra”.“Por Terra, Território e Dignidade”!
Após séculos de opressão e resistência, “as massas camponesas oprimidas e exploradas”, numa demonstração de capacidade de articulação, unidade política e construção de uma proposta nacional, se reuniram no “I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas sobre o caráter da reforma agrária”, no ano de 1961, em Belo Horizonte. Já nesse I Congresso os povos do campo, assumindo um papel de sujeitos políticos, apontavam a centralidade da terra como espaço de vida, de produção e identidade sociocultural.
Essa unidade e força política levaram o governo de João Goulart a incorporar a reforma agrária como parte de suas reformas de base, contrariando os interesses das elites e transformando-se num dos elementos que levou ao golpe de 1964. Os governos golpistas perseguiram, torturaram, aprisionaram e assassinaram lideranças, mas não destruíram o sonho, nem as lutas camponesas por um pedaço de chão.
Após décadas de resistência e denuncias da opressão, as mobilizações e lutas sociais criaram condições para a retomada e ampliação da organização camponesa, fazendo emergir uma diversidade de sujeitos e pautas. Junto com a luta pela reforma agrária, a luta pela terra e por território vem afirmando sujeitos como sem terra, quilombolas, indígenas, extrativistas, pescadores artesanais, quebradeiras, comunidades tradicionais, agricultores familiares, camponeses, trabalhadores e trabalhadoras rurais e demais povos do campo, das águas e das florestas. Neste processo de constituição de sujeitos políticos, afirmam-se as mulheres e a juventude na luta contra a cultura patriarcal, pela visibilidade e igualdade de direitos e dignidade no campo.
Ritual das Mulheres Indigenas em Defesa da Floresta |
Em nova demonstração de capacidade de articulação e
unidade política, nós homens e mulheres de todas as idades, nos reunimos 51
anos depois, em Brasília, no Encontro Nacional Unitário de Trabalhadores e
Trabalhadoras, Povos do Campo, das Águas e das Florestas, tendo como
centralidade a luta de classes em torno da terra, atualmente expressa na luta
por Reforma Agrária, Terra, Território e Dignidade.
Nós estamos construindo a unidade em resposta aos desafios da desigualdade na distribuição da terra. Como nos anos 60, esta desigualdade se mantém inalterada, havendo um aprofundamento dos riscos econômicos, sociais, culturais e ambientais, em consequência da especialização primária da economia.
A primeira década do Século XXI revela um projeto de remontagem da modernização conservadora da agricultura, iniciada pelos militares, interrompida nos anos noventa e retomada como projeto de expansão primária para o setor externo nos últimos doze anos, sob a denominação de agronegócio, que se configura como nosso inimigo comum.
Este projeto, na sua essência, produz desigualdades nas relações fundiárias e sociais no meio rural, aprofunda a dependência externa e realiza uma exploração ultrapredatória da natureza. Seus protagonistas são o capital financeiro, as grandes cadeias de produção e comercialização de commodities de escala mundial, o latifúndio e o Estado brasileiro nas suas funções financiadora – inclusive destinando recursos públicos para grandes projetos e obras de infraestrutura – e (des) reguladora da terra.
O projeto capitalista em curso no Brasil persegue a acumulação de capital especializado no setor primário, promovendo super-exploração agropecuária, hidroelétrica, mineral e petroleira. Esta super-exploração, em nome da necessidade de equilibrar as transações externas, serve aos interesses e domínio do capital estrangeiro no campo através das transnacionais do agro e hidronegócio.
Protestos de Trabalhadores Contra a Construção da Usina Hidrelética de Belo Monte (PA) |
Este projeto provoca o esmagamento e a
desterritorialização dos trabalhadores e trabalhadoras dos povos do campo, das
águas e das florestas. Suas consequências sociais e ambientais são a não
realização da reforma agrária, a não demarcação e reconhecimento de territórios
indígenas e quilombolas, o aumento da violência, a violação dos territórios dos
pescadores e povos da floresta, a fragilização da agricultura familiar e
camponesa, a sujeição dos trabalhadores e consumidores a alimentos contaminados
e ao convívio com a degradação ambiental. Há ainda consequências socioculturais
como a masculinização e o envelhecimento do campo pela ausência de
oportunidades para a juventude e as mulheres, resultando na não reprodução
social do campesinato.
Estas consequências foram agravadas pela ausência, falta de adequação ou caráter assistencialista e emergencial das políticas públicas. Estas políticas contribuíram para o processo de desigualdade social entre o campo e a cidade, o esvaziamento do meio rural e o aumento da vulnerabilidade dos sujeitos do campo, das águas e das florestas. Em vez de promover a igualdade e a dignidade, as políticas e ações do Estado, muitas vezes, retiram direitos e promovem a violência no campo.
Manifestação dos Trabalhadores Contra o Desmatamento |
Mesmo gerando conflitos e sendo inimigo dos povos, o
Estado brasileiro nas suas esferas do Executivo, Judiciário e Legislativo,
historicamente vem investindo no fortalecimento do modelo de desenvolvimento
concentrador, excludente e degradador. Apesar de todos os problemas gerados, os
sucessivos governos – inclusive o atual – mantêm a opção pelo agro e
hidronegócio.
O Brasil, como um país rico em terra, água, bens naturais e biodiversidade, atrai o capital especulativo e agroexportador, acirrando os impactos negativos sobre os territórios e populações indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e camponesas. Externamente, o Brasil vem se tornando alavanca do projeto neocolonizador, expandindo este modelo para outros países, especialmente na América Latina e África.
Torna-se indispensável um projeto de vida e trabalho para a produção de alimentos saudáveis em escala suficiente para atender as necessidades da sociedade, que respeite a natureza e gere dignidade no campo. Ao mesmo tempo, o resgate e fortalecimento dos campesinatos, a defesa e recuperação das suas culturas e saberes se faz necessário para projetos alternativos de desenvolvimento e sociedade.
Marcha de Trabalahadores Rurais |
Diante
disto, afirmamos:
1) a reforma agrária como política essencial de desenvolvimento
justo, popular, solidário e sustentável, pressupondo mudança na estrutura
fundiária, democratização do acesso à terra, respeito aos territórios e
garantia da reprodução social dos povos do campo, das águas e das florestas.
2) a soberania territorial, que compreende o poder e a autonomia dos povos em proteger e defender livremente os bens comuns e o espaço social e de luta que ocupam e estabelecem suas relações e modos de vida, desenvolvendo diferentes culturas e formas de produção e reprodução, que marcam e dão identidade ao território.
3) a soberania alimentar como o direito dos povos a definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à alimentação adequada a toda a população, respeitando suas culturas e a diversidade dos jeitos de produzir, comercializar e gerir estes processos.
4) a agroecologia como base para a sustentabilidade e organização social e produtiva da agricultura familiar e camponesa, em oposição ao modelo do agronegócio. A agroecologia é um modo de produzir e se relacionar na agricultura, que preserva a biodiversidade, os ecossistemas e o patrimônio genético, que produz alimentos saudáveis, livre de transgênicos e agrotóxicos, que valoriza saberes e culturas dos povos do campo, das águas e das florestas e defende a vida.
5) a centralidade da agricultura familiar e camponesa e de formas tradicionais de produção e o seu fortalecimento por meio de políticas públicas estruturantes, como fomento e crédito subsidiado e adequado as realidades; assistência técnica baseada nos princípios agroecológicos; pesquisa que reconheça e incorpore os saberes tradicionais; formação, especialmente da juventude; incentivo à cooperação, agroindustrialização e comercialização.
6) a necessidade de relações igualitárias, de reconhecimento e respeito mútuo, especialmente em relação às mulheres, superando a divisão sexual do trabalho e o poder patriarcal e combatendo todos os tipos de violência.
7) a soberania energética como um direito dos povos, o que demanda o controle social sobre as fontes, produção e distribuição de energia, alterando o atual modelo energético brasileiro.
8) a educação do campo, indígena e quilombola como ferramentas estratégicas para a emancipação dos sujeitos, que surgem das experiências de luta pelo direito à educação e por um projeto político-pedagógico vinculado aos interesses da classe trabalhadora. Elas se contrapõem à educação rural, que tem como objetivo auxiliar um projeto de agricultura e sociedade subordinada aos interesses do capital, que submete a educação escolar à preparação de mão-de-obra minimamente qualificada e barata e que escraviza trabalhadores e trabalhadoras no sistema de produção de monocultura.
9) a necessidade de democratização dos meios de comunicação, hoje concentrados em poucas famílias e a serviço do projeto capitalista concentrador, que criminalizam os movimentos e organizações sociais do campo, das águas e das florestas.
10) a necessidade do reconhecimento pelo Estado dos direitos das populações atingidas por grandes projetos, assegurando a consulta livre, prévia e informada e a reparação nos casos de violação de direitos.
Nos
comprometemos:
1. A fortalecer as organizações sociais e a
intensificar o processo de unidade entre os trabalhadores e trabalhadoras,
povos do campo, das águas e das florestas, colocando como centro a luta de
classes e o enfrentamento ao inimigo comum, o capital e sua expressão
atual no campo, o agro e hidronegócio.
2. A ampliar a unidade nos próximos períodos, construindo pautas comuns e processos unitários de luta pela realização da reforma agrária, pelo reconhecimento, titulação, demarcação e desintrusão das terras indígena, dos territórios quilombolas e de comunidades tradicionais, garantindo direitos territoriais, dignidade e autonomia.
3. A fortalecer a luta pela reforma agrária como bandeira unitária dos trabalhadores e trabalhadoras e povos do campo, das águas e das florestas.
4. A construir e fortalecer alianças entre sujeitos do campo e da cidade, em nível nacional e internacional, em estratégias de classe contra o capital e em defesa de uma sociedade justa, igualitária, solidária e sustentável.
5. A lutar pela transição agroecológica massiva, contra os agrotóxicos, pela produção de alimentos saudáveis, pela soberania alimentar, em defesa da biodiversidade e das sementes.
6. A construir uma agenda comum para rediscutir os critérios de construção, acesso, abrangência, caráter e controle social sobre as políticas públicas, a exemplo do PRONAF, PNAE, PAA, PRONERA, PRONACAMPO, pesquisa e extensão, dentre outras, voltadas para os povos do campo, das águas e das florestas.
7. A fortalecer a luta das mulheres por direitos, pela igualdade e pelo fim da violência.
8. A ampliar o reconhecimento da importância estratégica da juventude na dinâmica do desenvolvimento e na reprodução social dos povos do campo, das águas e das florestas.
9. A lutar por mudanças no atual modelo de produção pautado nos petro-dependentes, de alto consumo energético.
10. A combater e denunciar a violência e a impunidade no campo e a criminalização das lideranças e movimentos sociais, promovidas pelos agentes públicos e privados.
11. A lutar pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado sobre a morte e desaparecimento forçado de camponeses, bem como os direitos de reparação aos seus familiares, com a criação de uma comissão camponesa pela anistia, memória, verdade e justiça para incidir nos trabalhos da Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos, visando à inclusão de todos afetados pela repressão.
Nós, trabalhadores e trabalhadoras, povos do campo, das águas e das florestas exigimos o redirecionamento das políticas e ações do Estado brasileiro, pois o campo não suporta mais. Seguiremos em marcha, mobilizados em unidade e luta e, no combate ao nosso inimigo comum, construiremos um País e uma sociedade justa, solidária e sustentável.
Entidades que assinaram a Declaração do Encontro de Trabalhadores e Trabalhadoras do Campo, das Águas e das Florestas.
Associação das Casas Familiares Rurais (ARCAFAR)
Associação das Mulheres do Brasil (AMB)
Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA)
Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia
Florestal (ABEEF)
Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
CARITAS
Brasileira
Coordenação Nacional dos Quilombolas (CONAQ)
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(CONTAG)
Comissão Pastoral da Pesca (CPP)
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB)
Central Única dos Trabalhadores (CUT)
Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB)
Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar
(FETRAF)
FASE
Greenpeace
INESC Marcha Mundial das Mulheres
(MMM)
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
Movimento Camponês Popular (MCP)
Movimento das Mulheres Camponesas (MMC)
Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais do
Nordeste (MMTR-NE)
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Movimento Interestadual das Mulheres Quebradeiras de
Coco Babaçu (MIQCB)
Oxfam Brasil
Pastoral da Juventude Rural (PJR)
Plataforma Dhesca
Rede Cefas
Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Pesquisa e
Desenvolvimento Agropecuário (SINPAF)
SINPRO DF
Terra de Direitos
Unicafes
VIA CAMPESINA BRASIL
Centro de Estudos da Cultura e História
Afro-Indigenista do Brasil (CECHAIB)
Brasília, 22 de agosto de 2012.
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