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terça-feira, 6 de outubro de 2015

OS CATIVOS DO DAOMÉ

Carta do Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa, revela empenho de rei africano em reunir escravos para vender à Coroa Portuguesa.

Imagem: Fundação Biblioteca Nacional

Em uma caixa em que são reunidas comunicações entre São Tomé e Portugal, no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), em Lisboa, uma correspondência chama atenção para o comércio de escravos entre um reino africano e a Coroa Portuguesa. Trata-se da carta do rei do Daomé (hoje República do Benin), para o príncipe regente Dom João, escrita em 20 de novembro de 1804.
Fundado no século XVII, o reino do Daomé se dedicava a captura e venda de escravos para os europeus, o que também colaborava para influenciar sua estrutura política e social. O local era conhecido pelos portugueses como Costa da Mina, localizado na África Ocidental. Nesta época, o rei do Daomé era Adandozan, que não é de todo desconhecido na historiografia. O próprio etnólogo Pierre Verger (1902-1996) o mencionara em alguns de seus textos, como o livro Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de todos os Santos, dos séculos XVII a XIX.
As comunicações do rei africano com reinos europeus, principalmente o português, são conhecidas também por outros autores, como Luís Nicolau Parês que, em texto publicado na Revista Afro-Asia, chega a montar uma tabela com 14 cartas remetidas do Daomé à autoridades da governança portuguesa.
Uma vez no governo, Adandozan se apresentava nesta carta a Dom João como um parceiro comercial interessado em enviar emissários a Portugal, mas conta que carecia de pessoas capazes de fazê-lo. Contudo, no dia 7 de setembro sua sorte mudou, Adandozan mantinha um exército cuja estratégia era fazer pilhagens aos inimigos da região em terra e aos estrangeiros que não se colocassem sob sua tutela ao mar. Naquele dia, ordenou que se fizesse guerra em Porto Novo, próximo de onde os portugueses haviam erguido a fortaleza de São João Baptista de Ajudá. Na carta, o rei conta que colocou dez mil homens no butim, tomou um navio e prendeu vários portugueses que estavam a bordo. Após serem capturados, os portugueses foram levados por trezentos soldados armados para Abomei (Verger leu três mil soldados nesta mesma carta, o que não se confirma), capital do Daomé, onde foram presos e interrogados por Adandozan.
Não foram os primeiros, o português João Tathe econtrava-se cativo no Daomé desde 1781 e servia como escrivão ao rei africano - daí esta carta ter sido escrita contando todo o evento acima. Mas ia além: apresentava boas possibilidades em um vasto comércio, inclusive com a abertura aos portugueses de “secretas minas de ouro” (que jamais foram encontradas), algo que o escrivão não teve condições de desmentir por temer por sua vida. A carta fora enviada por outro português, Inocêncio Marques Santana. Tathe continuo cativo de Adandozan.
Chamando carinhosamente o príncipe Regente Dom João de “meu mano”, Adandozan pedia alguns presentes como sinal de que os reis concluíam um pacto: “peças, espingardas, pólvora e o mais que consta os preparos” de guerra, além de “obuses para metralha”, arma capaz de disparar explosivos. Requeria também, ajuda material para que, com essa aliança, tornasse seu reino mais próspero e angariasse mais poder para si e para os seus. Além disso, o rei também se oferecia “para tudo quanto (...) determinar, e assim tudo quanto me falta nesta que mandei fazer pelo meu escrivão [João Tathe] adverti ao seu bom vassalo [Inocêncio Marques Santana]”.
Para selar as negociações Adandozan pedia também alguns mimos, que, como ensinou John Thornton, não seriam portados apenas como meros objetos de luxo, mas como símbolos de prestígio que diferenciaria seus portadores do restante da própria nobreza e da sociedade. Artigos como “oito espingardas de prata para caçar” e “30 chapéus finos, grandes, de várias cores, com suas plumas grandes”; assim como “20 peças de seda das antigas.”
Adandozan envia então alguns panos de linho de presente a Dom João, se desculpa dizendo que não o fazia mais, pois estava em guerra e, por isso, “não consta comigo senão apetrechos de guerras, porém, em sinal de um bom irmão que tem lhe mando um dos meus linhos para firmeza de nossa amizade”.
No final do documento, uma surpresa. O escrivão português, que se encontrava preso havia 23 anos naquele reino, se arrisca e faz um suplício ao Príncipe Regente:
Vossa Real majestade me queira perdoar o meu grande atrevimento, como me mandam escrever esta à força, a fiz por não ter outro remédio, pois quem poderá expressar o que viu é este que vai por nome Innocencio. Como eu há 23 anos ainda não achei outro cristão como este, ele fará aviso do que viu e o que padeceu e como tratam os pobres portugueses nesta terra. Eu faço este pequeno aviso porque todos quantos assistem na vista desta não sabem ler, e não me estendo mais por não causar desconfiança. Meu senhor Jesus Cristo queira se lembrar de todos quantos aqui estão penando [...] Deus dê todas as felicidades a Vossa Majestade como quem deseja que sou humilde vassalo João Tathe, português.
 A história do tráfico uniu diversas sociedades e etnias e representou a transformação de muitas culturas na América, na Europa e na África. Muitos homens sobreviveram a ele ao longo dos séculos. Nem sempre o africano encontrou-se em situação desvantajosa em relação aos europeus. Estes, certamente, utilizaram seu poder bélico e a posse de mercadorias valiosas para conseguir acesso a governante em regiões da África que por sua vez converteram esses bens em mais poder e prestígio para sua linhagem dentro da sociedade africana, em suma, em riquezas materiais e imateriais que colaborava para sua manutenção no poder. A carta de Adandozan é importante para que se superem versões equivocadas sobre a história da África, do tráfico Atlântico de escravos e dos africanos.


1/10/2014
Rodrigo Amaral é Professor da Universidade Cândido Mendes; Coordenador Geral dos Cursos de História, Letras e Pedagogia da Universidade Cândido Mendes; Coordenador de Pesquisa da Faculdade Simonsen; Autor da Tese: Concessão ou Conquista?, UFRJ, 2010.


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