Carta do Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa,
revela empenho de rei africano em reunir escravos para vender à Coroa
Portuguesa.
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Imagem: Fundação Biblioteca Nacional |
Em uma caixa em que são reunidas
comunicações entre São Tomé e Portugal, no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU),
em Lisboa, uma correspondência chama atenção para o comércio de escravos entre
um reino africano e a Coroa Portuguesa. Trata-se da carta do rei do Daomé (hoje
República do Benin), para o príncipe regente Dom João, escrita em 20 de
novembro de 1804.
Fundado no século XVII, o reino do
Daomé se dedicava a captura e venda de escravos para os europeus, o que também
colaborava para influenciar sua estrutura política e social. O local era
conhecido pelos portugueses como Costa da Mina, localizado na África Ocidental.
Nesta época, o rei do Daomé era Adandozan, que não é de todo desconhecido na
historiografia. O próprio etnólogo Pierre Verger (1902-1996) o mencionara em
alguns de seus textos, como o livro Fluxo e refluxo do tráfico de
escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de todos os Santos, dos séculos XVII
a XIX.
As comunicações do rei africano com reinos europeus, principalmente o
português, são conhecidas também por outros autores, como Luís Nicolau Parês
que, em texto publicado na Revista Afro-Asia, chega
a montar uma tabela com 14 cartas remetidas do Daomé à autoridades da
governança portuguesa.
Uma vez no governo, Adandozan se
apresentava nesta carta a Dom João como um parceiro comercial interessado em
enviar emissários a Portugal, mas conta que carecia de pessoas capazes de
fazê-lo. Contudo, no dia 7 de setembro sua sorte mudou, Adandozan mantinha um
exército cuja estratégia era fazer pilhagens aos inimigos da região em terra e
aos estrangeiros que não se colocassem sob sua tutela ao mar. Naquele dia,
ordenou que se fizesse guerra em Porto Novo, próximo de onde os portugueses
haviam erguido a fortaleza de São João Baptista de Ajudá. Na carta, o rei conta
que colocou dez mil homens no butim, tomou um navio e prendeu vários
portugueses que estavam a bordo. Após serem capturados, os portugueses foram
levados por trezentos soldados armados para Abomei (Verger leu três mil
soldados nesta mesma carta, o que não se confirma), capital do Daomé, onde
foram presos e interrogados por Adandozan.
Não foram os primeiros, o português
João Tathe econtrava-se cativo no Daomé desde 1781 e servia como escrivão ao
rei africano - daí esta carta ter sido escrita contando todo o evento acima.
Mas ia além: apresentava boas possibilidades em um vasto comércio, inclusive
com a abertura aos portugueses de “secretas minas de ouro” (que jamais foram
encontradas), algo que o escrivão não teve condições de desmentir por temer por
sua vida. A carta fora enviada por outro português, Inocêncio Marques Santana.
Tathe continuo cativo de Adandozan.
Chamando carinhosamente o príncipe
Regente Dom João de “meu mano”, Adandozan pedia alguns presentes como sinal de
que os reis concluíam um pacto: “peças, espingardas, pólvora e o mais que
consta os preparos” de guerra, além de “obuses para metralha”, arma capaz de
disparar explosivos. Requeria também, ajuda material para que, com essa aliança,
tornasse seu reino mais próspero e angariasse mais poder para si e para os
seus. Além disso, o rei também se oferecia “para tudo quanto (...) determinar,
e assim tudo quanto me falta nesta que mandei fazer pelo meu escrivão [João
Tathe] adverti ao seu bom vassalo [Inocêncio Marques Santana]”.
Para selar as negociações Adandozan
pedia também alguns mimos, que, como ensinou John Thornton, não seriam portados
apenas como meros objetos de luxo, mas como símbolos de prestígio que
diferenciaria seus portadores do restante da própria nobreza e da sociedade.
Artigos como “oito espingardas de prata para caçar” e “30 chapéus finos,
grandes, de várias cores, com suas plumas grandes”; assim como “20 peças de
seda das antigas.”
Adandozan envia então alguns panos de
linho de presente a Dom João, se desculpa dizendo que não o fazia mais, pois
estava em guerra e, por isso, “não consta comigo senão apetrechos de guerras,
porém, em sinal de um bom irmão que tem lhe mando um dos meus linhos para
firmeza de nossa amizade”.
No final do documento, uma surpresa.
O escrivão português, que se encontrava preso havia 23 anos naquele reino, se
arrisca e faz um suplício ao Príncipe Regente:
Vossa
Real majestade me queira perdoar o meu grande atrevimento, como me mandam
escrever esta à força, a fiz por não ter outro remédio, pois quem poderá
expressar o que viu é este que vai por nome Innocencio. Como eu há 23 anos
ainda não achei outro cristão como este, ele fará aviso do que viu e o que
padeceu e como tratam os pobres portugueses nesta terra. Eu faço este pequeno
aviso porque todos quantos assistem na vista desta não sabem ler, e não me
estendo mais por não causar desconfiança. Meu senhor Jesus Cristo queira se
lembrar de todos quantos aqui estão penando [...] Deus dê todas as felicidades
a Vossa Majestade como quem deseja que sou humilde vassalo João Tathe,
português.
A história do tráfico uniu
diversas sociedades e etnias e representou a transformação de muitas culturas
na América, na Europa e na África. Muitos homens sobreviveram a ele ao longo
dos séculos. Nem sempre o africano encontrou-se em situação desvantajosa em
relação aos europeus. Estes, certamente, utilizaram seu poder bélico e a posse
de mercadorias valiosas para conseguir acesso a governante em regiões da África
que por sua vez converteram esses bens em mais poder e prestígio para sua
linhagem dentro da sociedade africana, em suma, em riquezas materiais e
imateriais que colaborava para sua manutenção no poder. A carta de Adandozan é
importante para que se superem versões equivocadas sobre a história da África,
do tráfico Atlântico de escravos e dos africanos.
1/10/2014
Rodrigo Amaral é Professor da
Universidade Cândido Mendes; Coordenador Geral dos Cursos de História, Letras e
Pedagogia da Universidade Cândido Mendes; Coordenador de Pesquisa da Faculdade
Simonsen; Autor da Tese: Concessão ou Conquista?,
UFRJ, 2010.
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