Autor de romances marcados na história da
literatura brasileira completou 181 anos de nascimento no último domingo (21)
Cláudio
Soares*
MACHADO DE ASSIS |
Escritor e autor de obras como "Dom Casmurro", "Memórias
póstumas de Brás Cubas", entre romances, peças, contos e poemas -
Reprodução
Não era o
triunfo acachapante que fascinava o escritor Joaquim Maria Machado de Assis.
Cético até a espinha, o autor de "Dom Casmurro" soube exercitar como
poucos “a arte das conveniências e das meias palavras”. Para muitos dos seus
contemporâneos, Machado foi um homem estranho, singular, misterioso e
perturbador. Sua figura retraída e tensa tinha alguma coisa de paradoxal, de
desconcertante, de aparente contraste entre a pessoa e o artista.
Como aquelas
“pessoas que parecem nascer errado, em clima diverso ou contrário ao de que
precisam” (a frase é do próprio autor, um grande frasista), pessoas que lhes
sendo possível sair de um clima adverso para outro que lhes seja mais adequado,
parece que foram restituídas a si próprias, ao seu próprio destino, Machado de
Assis teve quase tudo contra si, em uma sociedade desigual e cruelmente
injusta.
“Negro, pobre, gago,
epilético, ainda assim, o escritor conseguiu se transformar no nome de maior peso
na literatura brasileira, sendo o mais completo e complexo dos nossos artistas.”
Talvez o
único de nossa desgarrada literatura, a ter características de verdadeiro
clássico universal. Ainda que seja praticamente impossível “extraí-lo” dos
nossos antecedentes naturais. Filho dos trópicos, Machado se sentia aborrecido
pelo excesso e pela opulência da nossa paisagem. Acabou por fixar o seu objeto
de estudo na alma humana: má, infiel, mentirosa, canalha, de uma canalhice
atroz, expressão autêntica da natureza humana.
Machado de
Assis foi um homem que, segundo Rui Barbosa (que também tinha o dom da
palavra), “prosava como o Frei Luiz de Souza e cantava como Luiz de Camões”.
Certamente, nenhum outro escritor brasileiro foi tão estudado e por ângulos tão
diversos como esse carioca nascido no Morro do Livramento, na Gamboa, Zona
Portuária da cidade do Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839.
Foi homem de
muitos amigos, mas apenas no sentido da discreta amizade que lhes permitiu: sem
dedicação ou intimidade maiores que a dos comentários “não polêmicos”. João
Ribeiro, escritor e folclorista sergipano, membro da Academia Brasileira de
Letras, acreditava que para Machado de Assis, “os amigos não passavam de
necessidades de diálogo, alguma coisa melhor do que falar sozinho”.
Vale
registrar que Machado detestava os elogios (“insuportáveis”) de homens “derramados”.
Ainda assim, não são poucos os relatos de quem o conheceu pessoalmente
enfatizando a sua “quase inverossímil doçura social”, contrastando fortemente
com um autor que, como poucos, soube manusear a pena da amargura e da
dissimulação.
A grande
verdade é que o "bruxo" foi um analista impiedoso, “sádico” até, que
soube expor cruelmente um niilismo central nas coisas humanas, além de cultivar
cuidadosamente, na vida, formas amáveis e requintadas de sociabilidade, como a
indulgência, a discrição e a cortesia.
“Soube ser graciosamente
pessimista e triste. O entusiasmo, aliás, era para ele algo repugnante.”
Machado de
Assis fez bem quase tudo que empreendeu em literatura. Soube, como o italiano
Dante Alighieri, atravessar o seu inferno, com um ceticismo cáustico,
“suportando com paciência, a dor do próximo” e, com estoicismo, a sua própria
dor. Mas, pagou um preço caro por sua “serenidade” impositiva.
Pela
enfermidade e pelo pensamento, penetrou no mundo subterrâneo da alma humana,
atravessando as sombras frias, encarando o desespero mudo, a solidão severa, a
revolta sem ilusão. Soube extrair das páginas de sua própria vida e obra o
sorriso melancólico, a tristeza patética e a dúvida pusilânime.
Sem raízes
O poeta Jorge
de Lima, autor de Invenção de Orfeu (1952) lembrou em um artigo que quando
Machado de Assis morreu, Joaquim Nabuco, seu amigo, escreveu uma reprimenda a
José Veríssimo, famoso crítico literário da época:
“Seu artigo no Jornal do Commercio está belo, mas esta frase causou-me arrepio:
mulato. Eu pelo menos só vi em Machado de Assis, o grego. Não teria chamado
Machado de mulato e penso que nada lhe doeria mais do que essa síntese.
Rogo-lhe que tire isso, quando reduzir os artigos a páginas permanentes”.
Para Nabuco,
Machado era um cidadão “branco” em vida e “alvíssimo” depois de morto. Essa
visão “esquizofrênica”, pode ter sido reforçada pelo próprio autor das Memórias
Póstumas de forma conscientemente ou inconscientemente (mais difícil de
acreditar).
Enquanto
pode, Machado evitou toda e qualquer tentativa de devassa de sua história
familiar, inclusive a humildade de sua filiação, que poderiam, talvez, ter lhe
proporcionado as melhores páginas da sua literatura. Não deixa de ser um
incômodo, ainda, que Machado tenha escrito tão pouco sobre os negros.
O seu
passado, Machado de Assis matou no esquecimento. Pouco ou nada falou de Maria
Leopoldina, sua mãe, nem de Francisco de Assis, seu pai, ou de sua irmã (morta
precocemente, aos 4 anos de idade). Afastou-se por completo de Maria Inês da Silva,
sua madrasta, que após a morte de Francisco, terminou de criá-lo. Machado se
aristocratizou como um intelectual do seu tempo, um homem amargo, desencantado,
fatigado, enjoado do seu século.
Para Jorge de
Lima, “o ambiente morno, a calmaria podre, o desinteresse pelo coletivo e pelo
universal” que foram o “câncer” do tempo de Machado de Assis, não permitiram
que a obra deste “homem excepcional” (uma expressão de José Veríssimo) fosse
ainda maior.
Por sua vez,
João Ribeiro constatou em Machado de Assis uma insensibilidade “absoluta” pela
dor humana, um egoísmo “sem limites”, uma “esquiva vivacidade” nas suas
“inconstâncias de espírito”. Todos os heróis machadianos possuem uma “pequenez”
de alma, temperada com “pequenas canalhices da desforra”.
Para o
escritor José Lins do Rego, Machado foi um “escritor sem raízes” e jamais
serviria de modelo se dele quiséssemos tirar um retrato do seu povo, mesmo que
fosse da elite brasileira. Segundo Zé Lins, Machado foi um homem de imaginação,
mas de uma imaginação aristocrática, sendo por isso, um homem à parte em nossas
letras: “uma força viva e imaginativa, num país onde se procura descobrir
imaginação na opulência verbal de José de Alencar”.
O poeta
carioca Ronald de Carvalho, ao contrário, considerava Machado um escritor sem
transbordamentos de imaginação, sendo a sua riqueza “toda interior”, muito mais
intensa que extensa, de um “colorido sóbrio e preciso”. Para a escritora Lúcia
Miguel Pereira, a vida de Machado de Assis, toda processada sob o signo do
espírito modesto, digno e desinteressado, completa a sua obra, fazendo do
autor, além de um valor intelectual, um precioso valor moral.
Alfredo
Pujol, crítico literário, um dos primeiros a se dedicar ao estudo da obra de
Machado de Assis, o chamou de:
“alma recolhida e
solitária, nutrida das suas tristezas íntimas, envolta em sombras da dúvida. Um
poeta da vida interior, enclausurado no seu sonho, estranho à agitação que o
rodeava.”
Há também
aqueles (“homens derramados”) que lhe chamaram (ainda em vida) de “o chefe da
literatura nacional” ou ainda de “clássico verdadeiro”, pela forma, pelo
minucioso estudo da língua e pelo escrupuloso cuidado com que se apartava de
tudo que lhe parecesse dissonância.
Nascido, há
181 anos, na cidade do Rio de Janeiro, de onde pouco se afastou por toda a
vida, ali cresceu em condições precárias, como tantos e tantos brasileiros.
Pobre, sem recursos, sem família, Machado de Assis foi um “self-made man”,
formou-se por sua própria educação, com a mais vasta leitura, tudo pelo esforço
próprio. Sua experiência de vida, certamente, o moldou.
Não por
acaso, o mesmo João Ribeiro (aqui, já citado), certa vez, ao concluir que “não
há na nossa literatura, páginas mais profundamente imorais e perigosas que as
de alguns contos de Machado de Assis”, o comparou, de forma “oblíqua e
dissimulada”, ao poeta alemão Heinrich Heine (“o último dos românticos”).
Assim,
escreveu João Ribeiro:
“Ludwig
Boerne (escritor alemão) disse que Heine era como um ratinho que havia cavado
galerias subterrâneas inumeráveis; acossado num ponto, ele escorregava por
outro. Era impossível apanhá-lo. Só se a crítica fosse um gato, dizia Boerne.
Mas, nesse caso, o sr. Heine é muito mais rato do que poderá ser gato a mais
acelerada crítica”. Concluiria, então, Ribeiro: “Não sei que imagem se possa
aplicar com mais adequada justeza a Machado de Assis, pelos sorvedouros que
cava de subentendidos”.
*Escritor, jornalista e editor dos Clássicos
Hiperliteratura
Fonte: BdF Rio de Janeiro
Edição: Rodrigo Durão Coelho e Eduardo Miranda
Brasil de
Fato | Rio de Janeiro (RJ) 26 de Junho de 2020.
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