A ausência negra na prática da advocacia diz muito
sobre a institucionalidade branca
Vera Lúcia Santana Araújo*
As considerações aqui tecidas buscam estreitar as
trocas com as forças negras da sociedade brasileira e abrir interlocuções com
organizações pan-africanas - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
“Uma história de vozes
torturadas, línguas rompidas, idiomas impostos, discursos impedidos e dos
muitos lugares que não podíamos entrar, tampouco permanecer para falar com
nossas vozes”.
A
provocação trazida é da Introdução de Grada Kilomba, psicanalista, escritora,
artista interdisciplinar portuguesa, em sua obra Memórias da Plantação – episódios
de racismo cotidiano, e, em curtíssima síntese, podemos asseverar
que bem expressa a sólida base do racismo estrutural, processo sistêmico,
construído e retroalimentado para conferir privilégios a certos e determinados
estratos das gentes, promovendo artificial divisão humana.
É histórica a construção de hierarquias
sociais através da instituição de critérios que atribuem distintas ocupações de
lugares, espaços de falas e silêncios, sendo certo que os referenciais de raça
e de gênero constituem pilares de desigualdades que perpassam séculos, povos, e
aqui destacaremos a identidade racial para iniciar debate que se pretende
profundo, fraterno e construtivo sobre o racismo estrutural no Brasil, e suas
interfaces notadamente com o mundo jurídico.
É fato inconteste que a escravização negra,
raiz da formação brasileira, dá o mote para a persistente desigualdade racial
que orienta e conduz o conjunto das relações econômicas, sociais, culturais e
institucionais do país.
O sistema jurídico tem papel fundamental nessa
engrenagem por incidir de forma determinante nas modelagens, desde a estrutura
escravista até os dias de hoje, de modo que o Direito figura também como
instrumento de preservação das segmentações que afetam brutalmente o maior
contingente populacional negro fora das terras ancestrais do Continente
Africano.
Ante as bases escravagistas que tiveram a
proteção legal até maio de 1888, a reorganização formal do trabalho no Brasil
deveria ter contado com uma nova ordem jurídica efetiva, capaz de erguer as
pilastras sobre as quais seriam constituídas relações econômicas a partir do
trabalho “livre”, eufemismo para a exploração capitalista da força de trabalho
e, para tanto, o Brasil teria que ter promovido um amplo leque de políticas de
reparação econômica, de promoção da educação, dentre todas as medidas
destinadas a prover a digna sustentação das famílias negras, em especial para
acolhimento na rede pública de educação, que seguiu privativa de brancos e
brancas.
Em um corte cronológico radical, chegamos a
1988, ano que marca a consolidação do rompimento de uma cruel ditadura militar,
regime que colocou na clandestinidade as várias entidades e articulações
negras, cujos eixos de mobilização expunham o racismo como cerne das
desigualdades estruturais do Brasil.
No período, o artista, intelectual e ativista
Abdias do Nascimento era pessoa representativa das insurgências negras da
época, e Carlos Marighella o nome mais expressivo do campo de resistência.
A ordem constitucional do Estado Democrático
de Direito erigido com a Carta Política de 88 trouxe acenos para nossa gente
negra, diante da constitucionalização do direito à ancestralidade, com o
tombamento cultural de documentos e sítios históricos, e mais, o reconhecimento
das terras quilombolas como território coletivo das comunidades detentoras da
posse e história negra libertária.
Do mesmo modo, a criminalização do preconceito
racial manifesto em racismo está entre os sinais de que a cidadania nacional
poderia ser extensiva, para todas e todos. E esta seria a função maior do
Estado como gestor democrático da República Federativa do Brasil.
Ledo engano! O decantado princípio republicano
segue sendo termo retórico das elites brancas em zigue-zague direita-esquerda.
A República brasileira é impenetrável e as histórias individuais, de exceções,
reafirmam a consistência do racismo estrutural que cerceia a população negra do
acesso à cidadania e, no extremo, promove o genocídio reconhecido pelo Estado
brasileiro, por meio de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) do Senado
Federal e da Câmara dos Deputados.
Fica claro que o Estado inconstitucional não é
acusação de forças periféricas, mas conclusão de acuradas investigações promovidas
pelo Poder Legislativo. Os relatórios das CPIs expõem sem disfarces a
necropolítica estatal, que angaria ampla legitimação social fomentada pelas
grandes mídias.
Na esfera do Poder Judiciário importa destacar
que o fazer cotidiano da magistratura nacional opera rigorosamente em desacordo
com as letras da Constituição Federal, por meio de julgamentos seletivos em
face das identidades raciais para absolver ou condenar, a menor ou a maior.
O racismo institucional é, assim, elevado à
condição de braço forte na mantença da espessa estrutura racialmente desigual
que permite ao país praticar políticas vexatórias de concentração de rendas e
de violência estatal. É esse cotidiano que segrega, oprime, humilha, vilipendia
o homem negro e violenta a mulher negra.
Sim, o distanciamento entre os preceitos
consagrados na CF de 1988, em convenções, em tratados e outros ajustes
internacionais abrigados pelo ordenamento jurídico brasileiro e a efetividade
da atuação cotidiana do Sistema Nacional de Justiça, ancorado no aparato do
Sistema de Segurança Pública, desnuda especialmente no âmbito das políticas de
segurança e execução do direito penal o olhar único e dirigido para reafirmar
modelos segmentados, excludentes e punitivos, com indisfarçado recorte de tom
colonialista, de negação da existência individual e coletiva dos corpos negros
desalojados da intrínseca humanidade que o racismo ofende, agride!
Aqui, por honestidade histórica, deve ser
pontuado que o Supremo Tribunal Federal se notabilizou em julgados significativos,
relevantes, em especial no tocante à declarada constitucionalidade da política
de ações afirmativas de cotas raciais para ingresso em universidades e
concursos públicos do país, como instrumentos indutores de promoção da inclusão
racial na busca da igualdade; na garantia de ritos religiosos dos povos de
santo, tema da maior importância para o combate à intolerância religiosa que
chega a matar praticantes de religiões de matriz africana.
Noutra ponta de suporte à estratificação
racial, as relações de trabalho no Brasil ainda ostentam as marcas das
múltiplas torturas das senzalas e dos pelourinhos, quer pela indecente
desigualdade da remuneração da força de trabalho, quer pela pura e simples
barreira imposta ao ingresso de negros e negras em certos nichos. Nesse ponto,
a exemplificação se volta à advocacia privada nacional.
O exercício da advocacia é atividade privativa
de profissionais regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil. Por
força de dispositivo constitucional, o advogado e a advogada são indispensáveis
à administração da justiça.
No entanto, a ausência negra na prática da
advocacia e na direção da entidade representativa da categoria dizem muito
sobre a institucionalidade branca que rejeita a presença negra, como revelou
mapeamento realizado pelo Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e
Desigualdades) em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, formada
por escritórios com apoio do próprio Ceert e da FGV (Fundação Getúlio Vargas),
demonstrando que a participação de negros e negras nos grandes escritórios de
São Paulo não chega sequer a 1%.
A OAB Nacional, por sua vez, sequer identifica
racialmente seus inscritos e inscritas, dificultando sobremaneira a formulação
de medidas reparadoras e de inclusão.
As considerações aqui tecidas buscam estreitar
as trocas com as forças negras da sociedade brasileira e abrir interlocuções
com organizações pan-africanas. Esses podem ser passos firmes e decisivos sobre
trilhas nunca dantes percorridas por setores sociais hegemônicos, brancos,
inovando em experiências aptas a desmantelar muralhas inviabilizadoras da
coexistência humana.
Debruçar sobre as disfunções operacionais do
entrelaçamento do direito com a funcionalidade do racismo estrutural é tarefa
inadiável das forças democráticas comprometidas com a redemocratização do
Brasil, que em perspectiva não pode mais se servir do racismo para robustecer
as iniquidades incompatíveis com marcos civilizatórios que até o capitalismo
comporta.
*Vera Lúcia Santana Araújo,
advogada, integrante fundadora da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela
Democracia), e ativista da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno
FONTE: https://www.brasildefato.com.br/
20 de Fevereiro de 2020
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