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segunda-feira, 23 de março de 2015

O UIRAPURU CANTA DE DOR



A história do Uirapuru é uma história de amor, como seu canto é um canto de amor. Amor não correspondido, que é o que dói mais.



O jovem guerreiro era um bravo, um herói do seu povo. Não bastasse a fama conquistada na guerra, era um homem de grande beleza e arte.

Tinha uma flauta de osso de onça que trazia amarrada à cintura. Tocava flauta como ninguém, e até os bichos da floresta, embevecidos, silenciavam para ouvir sua música.

Era abertamente desejado por todas as moças solteiras da aldeia, e desejado às escondidas pelas que eram casadas.


Apenas uma mulher parecia não se interessar por ele justamente aquela por quem ele loucamente se apaixonou. Era a mulher do cacique, que a trouxera de longe, roubada de outro povo.

Quando ela chegou à aldeia, o jovem guerreiro sabia que seu destino tinha acabado de mudar. A partir daquele dia, tocaria sua flauta somente para ela. E tocava cada vez melhor, cada vez mais alto, cada vez mais perto.

Ela não dava sinais de ouvi-lo. Até parecia que a moça era surda.

A mulher do cacique ouvia muito bem, mas não falava a língua do guerreiro e não podia conversar com ninguém, nem mesmo com o marido.

Também não compreendia os gestos e sinais daquela  gente e tinha medo de entender tudo errado e sofrer castigos e humilhações.

Passava a maior parte do dia na maloca, entretida com as tarefas destinadas às mulheres casadas. Não ia com as outras ao rio para se divertir na água. Não se interessava pelas fofocas dos mais velhos nem se distraia com as trapalhadas das crianças.

Tudo que ela entendia era música da flauta do guerreiro. Amava a música da flauta e amava o flautista. Mas não dava sinais de seus sentimentos, tinha medo de ser mal interpretada.

O cerco do flautista a sua amada acabou por levantar suspeitas, e o cacique, sentindo-se ultrajado, expulsou o guerreiro para a floresta. Na floresta, ele continuou a tocar, e o vento se encarregava de levar sua música para a aldeia.

O cacique passou a ter um ciúme doentio da mulher estrangeira e a prendeu em casa. A música da flauta entrava na casa.

A mulher nada dizia, não reagia, nem quando o marido batia nela. Mesmo assim, ele tinha certeza de que era o flautista que sua mulher amava.


Não suportando mais a situação, o cacique saiu em busca do guerreiro na floresta para flechar seu coração. Encontrou o jovem apaixonado sentado num tronco caído tocando seu instrumento. Estirou o arco, mirou o coração do rival e lançou a flecha.

Algum deus que a tudo observava, admirador sincero da música da flauta, transformou o guerreiro num pássaro que voou no exato instante em que a flecha se aproximava de seu coração.

A flecha encontrou o vazio onde antes estava o moço e se cravou no tronco.

Na volta à aldeia o cacique foi atacado por uma fera e morreu.

Sua mulher foi devolvida à aldeia de seus pais e nunca mais se soube dela.

O pássaro, que foi chamado Uirapuru, canta hoje aquela mesma música. Quem já teve um amor não correspondido sente que seu canto é de dor. Não há na floresta canto mais bonito.

As notas soam claras e metálicas, como se moduladas por  um instrumento musical.

Quando o Uirapuru canta, os outros pássaros ficam mudos.E os humanos sentem o amor palpitar no coração.

Ter em casa um Uirapuru empalhado é garantia de sorte no amor. E também de bons negócios.

Talvez fosse melhor tê-lo vivo, mas quem é que consegue pegar um Uirapuru, a não ser que o mate? Aliás, quem quiser comprar um Uirapuru morto que tome cuidado.

O que se encontra à venda por aí, por preços nada baratos, é pura falsificação: Uirapuru de verdade não morre nunca, apenas canta.   




Fonte: PRANDI, Reginaldo. Contos e Lendas da Amazônia. Curitiba: A Página, 2012.Pag.105

23/03/2015

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