Débora Diniz |
“É
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e as suas liturgias” (Constituição brasileira 1988:15, art.5º,
VII). Iniciar esta reflexão com uma citação da Constituição Cidadã é uma forma
de chamar a atenção do leitor a respeito de um tema que, comumente ocupa um
lugar de destaque na vida dos seres humanos: a religião.
Essa reflexão que convido você leitor a fazer sobre
o fenômeno religião, ele transcende a perspectiva externa de uma fé especifica.
No Brasil, a questão religiosa aflora em todos os rincões. Dito isto,
conduzirei nosso enfoque para um espaço, onde percebemos que esse fenômeno é
mostrado na maioria das vezes, é por que não dizer ensinado de forma
proselitista: a escola.
Ao
nosso entender trabalhar o fenômeno religião em sala de aula, se faz necessário
levar em conta o multiculturalismo e o plurietnicismo, de forma a contemplar as
crenças e valores religiosos de todos os povos, sejam eles africanos,
indígenas, asiáticos, europeus, etc.
Não interessa a etnia. Pois, acreditamos
que, para viver democraticamente em uma sociedade plural e de uma variedade étnica
grandiosa como o Brasil é preciso respeitar e valorizar essas manifestações
culturais e religiosas de forma equitativa.
E deste modo, apagar essa concepção
nociva do “colonizador”, ou essas imagens sob moldes genéricos e esteriotipantes
que temos, por exemplo, quando nos referimos às culturas e práticas religiosas
dos índios e dos negros, como selvagem; imoral e maléfica. Inferiorizando-as e maculando-as
de forma gritante. Enquanto a cultura e a religião impostas pelo branco “colonizador”
são representadas em postos mais altos.
Contudo, essa nossa inquietação a respeito de
como este fenômeno religião é evidenciado nas escolas brasileiras se torna cada
vez mais esclarecedor através desta reportagem seguida de uma entrevista da jornalista
Solange Azevedo a antropóloga Débora Diniz que é enfática em fazer a seguinte
afirmação: “a
liberdade religiosa está ameaçada no país”. Publicada na Revista Isto é na edição nº2164 de abril de 2011. Eis abaixo
a transcrição da reportagem e da entrevista:
Antropóloga afirma que o Estado
está sendo questionado na Justiça por tentar privilegiar o ensino católico nas
escolas públicas e que livros didáticos associam os ateus aos nazistas.
O
trabalho da antropóloga e documentarista
carioca Débora Diniz tem sido amplamente reconhecido mundo afora. Aos 41 anos,
ela já recebeu 78 prêmios por sua atuação como pesquisadora e cineasta.
Professora da Universidade de Brasília, Débora é autora de oito livros. O
último deles – “Laicidade e Ensino Religioso no Brasil” – trata de uma discussão
que está emergindo no País e deverá ser motivo de debates acalorados no Supremo
Tribunal Federal.
“Além de a lei do Rio de Janeiro sobre o
ensino religioso nas escolas públicas estar sendo contestada no Supremo, há uma
ação da Procuradoria-Geral da República contra a concordata Brasil-Vaticano,
assinada pelo presidente Lula em 2008”, lembra Débora. “Um artigo da concordata
prevê que o ensino religioso no País seja, necessariamente, católico e
confessional. Isso é inconstitucional.” (Reportagem: Solange Azevedo).
Istoé - O ensino religioso nas escolas
públicas, num Estado laico como o Brasil, é legítimo?
Débora Diniz - Sim e não. Sim porque está
previsto pela Constituição. E não quando se trata da coerência com o pacto
político. Chamo de coerência a harmonia com os outros princípios
constitucionais: da liberdade e do pluralismo religiosos e da separação entre o
Estado e as igrejas. Falsamente, se pressupõe que religião seria um conteúdo
necessário para a formação da cidadania.
Istoé - O pluralismo religioso é
respeitado nas escolas públicas?
Débora Diniz - Não. A Lei de Diretrizes e
Bases delega aos Estados o poder sobre a definição dos conteúdos e quem são os
professores habilitados. Isso não acontece com nenhuma outra matriz disciplinar
no País. A LDB diz que o ensino religioso não pode ser proselitista. Apesar
disso, legislações de vários Estados – como a do Rio de Janeiro – afirmam que
tem de ser confessional. Determinam que seja católico, evangélico.
Istoé - As escolas viraram
igrejas?
Débora Diniz - As aulas de ensino religioso,
obrigatórias nas escolas públicas, se transformaram num espaço permeável ao
proselitismo. Não é possível a oferta do ensino religioso confessional sem ser
proselitista. Se formos para o sentido dicionarizado da palavra proselitismo, é
professar um ato de fé. É a catequização. O proselitismo é um direito das religiões.
Mas isso pode ocorrer na escola pública? A LDB diz que não.
Istoé - É possível haver ensino
religioso sem ser proselitista?
Débora Diniz - É. A resposta de São Paulo foi
defini-lo como a história, a filosofia e a sociologia das religiões.
Istoé - São Paulo seria o melhor
exemplo de ensino religioso no País?
Débora Diniz – No que diz respeito ao decreto
estadual, segundo o qual o ensino não deve ser confessional, sim. Mas se é o
melhor exemplo na sala de aula, não temos pesquisas no Brasil para afirmar
isso. A LDB diz que a matrícula é facultativa. Então, também devemos perguntar:
o que a criança faz quando não está na aula de religião?
Istoé - O ensino religioso, da forma
como está configurado, é uma ameaça à liberdade religiosa?
Débora Diniz - É. Quanto mais confessional
for à regulamentação dos Estados, quanto mais os concursos públicos forem como
o do Rio – em que o indivíduo tem de apresentar um atestado da comunidade
religiosa a que pertence e, caso mude de religião, perde o concurso –, maior é
a ameaça. A liberdade religiosa está ameaçada no País e a justiça religiosa
também.
Istoé - Há uma tentativa de
privilegiar uma ou outra religião?
Débora Diniz - Quase todos os Estados se
apropriam do que aconteceu no Rio, nominando as religiões dos professores. No
Ceará, por exemplo, o professor tem de ter formação em escolas teológicas. Mas
religiões afro-brasileiras não têm a composição de uma teologia formal. Essa
exigência privilegia os católicos e os protestantes.
Istoé - Por que o MEC não define o
conteúdo do ensino religioso?
Débora Diniz - Há uma falsa compreensão de
que o fenômeno religioso é um saber para iniciados, e não para especialistas
laicos. Também há um equívoco sobre o que define o pacto político num Estado
laico. O fenômeno religioso não é anterior ao fato político. Religião não pode
ter um status que não se subordine ao acordo constitucional e legislativo. Isso
é verdade em algumas coisas, tanto que o discurso do ódio não é autorizado. O
debate sobre a criminalização da homofobia causa tanto incômodo às comunidades
religiosas porque resultará em restrição de liberdade de expressão. Não se
poderá dizer que ser gay é grave perversão, como algumas fazem atualmente.
Istoé - Os livros didáticos
dizem...
Débora Diniz - Dizem porque há essa lacuna de
regulação e de fiscalização. Há uma subordinação do nosso pacto político ao
fato religioso. O que é um equívoco. Também há uma falsa presunção de que o
saber religioso não possa ser revisado. O MEC tem um painel em que todas as
controvérsias científicas são avaliadas por uma equipe que diz o que pode e o
que não pode entrar nos livros didáticos. A despeito de pequenas comunidades no
campo da biologia dizerem que criacionismo é uma teoria legítima sobre a origem
do mundo, o filtro do MEC diz que criacionismo não é ciência. Por que, então, o
MEC não define o que pode entrar nos livros de ensino religioso e os parâmetros
curriculares?
Istoé - O que os livros didáticos de
religião pregam?
Débora Diniz - Avaliamos 25 livros didáticos
de editoras religiosas e das que têm os maiores números de obras aprovadas pelo
MEC para outras disciplinas. Expressões e valores cristãos estão presentes em
65% deles. Expressões da diversidade cultural e religiosa brasileira, como
religiões indígenas ou afro-brasileiras, não alcançam 5%. Muitas tratam
questões como a homofobia e a discriminação contra crianças deficientes de uma
maneira que, se fossem submetidas ao crivo do MEC, seriam reprovadas. A
retórica sobre os deficientes é a pior possível. A representação simbólica é de
quem é curado, alguém que é objeto da piedade, que deixa de ser leproso e de
ser cego. É a do cadeirante dizendo obrigado, num lugar de
subalternidade.
Istoé - A submissão ao sagrado é
estimulada?
Débora Diniz - É uma submissão ao sagrado, à
confessionalidade. Mas a confessionalidade não se confunde com o sagrado. O
sentido do sagrado pode ser explicado. No caso do “Alcorão”, é possível
explicar que a escrita tem relação com a história do islamismo. Não precisamos
de livros que violem o sagrado, que digam que Maria não era virgem. Mas eles
não precisam se submeter à confessionalidade, dizer que há só uma
verdade.
Istoé - Há um estímulo ao preconceito
e à intolerância nos livros?
Débora Diniz - Sem dúvida. Há a expressão da
intolerância à diversidade – das pessoas com deficiência, da diversidade sexual
e religiosa, das minorias étnicas. Há, também, uma certa ironia com as religiões
neopentecostais.
Istoé - A ideia da supremacia moral dos
que têm religião é defendida?
Débora Diniz - É. Há equívocos históricos e
filosóficos, como a associação de Nietzsche ao nazismo. As pessoas sem Deus
são representadas como uma ameaça à própria ideia do humanismo. É muito grave a
representação dos ateus. Isso pode gerar desconforto entre as crianças cujas
famílias não professem nenhuma religião. Já que, nos livros, elas estão
representadas como aquelas que mataram Deus e associadas simbolicamente a
coisas terríveis, como o nazismo.
Istoé - As aulas facultativas podem se
tornar uma armadilha?
Débora Diniz - Sem dúvida. A criança terá de
explicar suas crenças, o que deveria ser matéria de ética privada. Pior: ao
sair da aula com um livro como esse, as crianças talvez tenham de explicar por
que não têm Deus.
Istoé - Não há reflexões históricas
sobre o significado das religiões?
Débora Diniz - Nenhuma. Há uma enorme
dificuldade de nominar as comunidades indígenas como possível religião. Elas
possuem tradições e práticas religiosas ou magia. No caso das afro-brasileiras,
também se fala em tradição.
Istoé - O que levou o Estado a
proteger o ensino religioso na Constituição?
Débora Diniz - Foi uma concessão a
comunidades religiosas numa disputa sobre o lugar de Deus e da religiosidade na
Constituição. A religião foi mantida no que caracterizaria a vida boa e a
formação da cidadania. Isso é um equívoco. A religião pode ser protegida pelo
Estado, mas não no espaço de promoção da cidadania que é a escola.
Istoé - O ensino religioso está
ganhando ou perdendo espaço no mundo?
Débora Diniz - Essa é uma controvérsia
permanente. Nos Estados Unidos, um país bastante religioso, não está na escola
pública. Na França, o país mais laico do mundo, também não. Exceto na região da
Alsácia-Mosele. Na Bélgica e no Reino Unido está. Esses países hoje enfrentam
com muita delicadeza a islamização de suas sociedades. Na Alemanha, grupos
islâmicos já começaram a exigir o ensino de sua religião nas escolas públicas.
Istoé - Mas na França também há o outro
lado, de proibirem vestimentas...
Débora Diniz - Esse é o paradoxo que a França
enfrenta neste momento, sobre como respeitar o modelo da neutralidade. A lei do
país proíbe símbolos religiosos ostensivos nas escolas públicas – cruz grande,
solidéu, véu. O que o outro lado vai dizer? Que isso viola um princípio
fundamental, que é a expressão das crenças individuais estar no próprio corpo.
Istoé - Quais são os desafios do ensino
religioso no Brasil?
Débora Diniz - São gigantescos e podem ser
divididos em três esferas. Uma é a esfera legal. O ensino religioso está sob
contestação nos foros formais do Estado: no Supremo, no MEC e no Ministério
Público Federal. Além de a lei do Rio de Janeiro estar sendo contestada no
Supremo, há uma ação da Procuradoria-Geral da República contra a concordata
Brasil-Vaticano, assinada pelo presidente Lula em 2008.
Istoé - E do que trata esta ação?
Débora Diniz - Um artigo da concordata prevê
que o ensino religioso na escola pública seja, necessariamente, católico e
confessional. Isso é inconstitucional. Estamos falando da estrutura da
democracia. Segundo o ministro Celso de Mello, em toda a história do Supremo,
só tínhamos tido uma ação que tocava na questão da laicidade do Estado. Isso
foi nos anos 40. Agora, temos pelo menos duas. A segunda esfera é como o ensino
religioso pode ou não pode ser implementado. O MEC precisa definir quem serão
os professores, como serão habilitados e quais conteúdos serão ensinados. A
terceira esfera é a sala de aula, a garantia de que vai ser um ensino
facultativo e de que o proselitismo religioso será proibido.
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