Encontro das Religiões |
Uma tarefa complexa envolve o cotidiano da maioria
da população brasileira é o fato dela não ter compreendido ainda que, a
religião afro através de seus rituais, símbolos, festas e crenças estabelece
uma ligação muito forte da vida cotidiana com os deuses.
Assim entendido,
pode-se afirmar que, as religiões africanas são tão diversas quanto suas
culturas; além do mais, elas tiveram
influências unificadoras, principalmente do cristianismo e do islamismo. Na última
década do século XX, a configuração religiosa da África incluía mais de
trezentos milhões de cristãos e pouco menos de trezentos milhões de mulçumanos,
existem cerca de 70 milhões de seguidores de religiões tradicionais africanas e
cerca de um milhão de hindus.
Porém, estima-se que de 30% a 40% dos africanos
praticavam as religiões nativas ou que os historiadores geralmente chamam de
religiões tradicionais africanas. As crenças nativas sobreviveram ao se
misturarem com o cristianismo e o islamismo. Essa mistura ou combinação é
chamado de sincretismo, um fenômeno comum na história das religiões e das
culturas.
As religiões tradicionais africanas continuam presentes entre as
sociedades étnicas que os historiadores chamam de povos tradicionais. Essas
sociedades se concentram nas regiões subsaarianas próxima ou abaixo do Equador.
As religiões tradicionais africanas tendem se estruturar mais em performance
dramáticas do que em discursos filosóficos.
As performance dramática tendem a
ser sensuais: visão; audição; olfato; paladar e tato, todos empenhados em unir
o mundo espiritual dos deuses e espíritos ancestrais ao mundo social dos
devotos tradicionais. Máscaras e roupas especiais; ervas e comidas; danças e
sacrifícios; gritos; cantos e discursos emocionados, tudo isso é empregado nas
tradicionais religiões africanas.
Neste sentido, assim como qualquer outra
religião, ela também têm os seus sacerdotes que desempenham de forma plausível suas funções
de orientador espiritual, vivenciando intensamente esse trabalho finíssimo no
âmbito terreal.
Então, por que não aceitamos e respeitamos a religião afro, da
mesma forma que religiões como o budismo; o cristianismo; o hinduísmo; o
islamismo e o judaísmo? Qual o papel que cada uma desempenhou e desempenha na
história da humanidade diferente da religião afro? O papel de quaisquer que seja
a religião não é confortar a alma humana ?
Estas e outras questões que
levantamos a respeito da religião afro, poderá ser esclarecida através da
entrevista concedida pelo mestre em ciência da religião Vicente Galvão Parizi
ao repórter Cristiano Navarro do Jornal Brasil de Fato no dia 02 do corrente
mês. Vamos acompanhar o que o cientista da religião falou:
Vicente Galvão Parizi |
“Tudo o que é diferente de mim me causa no
mínimo estranheza” (Parizi)
Para o psicólogo e ebome (que em Ketu significa: “meu
irmão mais velho”) do Ilê Axé Kalamu FunFun, Vicente Galvão Parizi, a
ignorância dá origem ao medo das religiões de matriz africana.
Parizi, que é mestre em ciências
da religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entende que boa
parte deste medo foi alimentado pelos preconceitos social e racial. “Não
podemos esquecer que houve uma Bula Papal que dizia, em nome de Deus, que os
negros não possuíam alma e por isso podiam ser escravizados”.
Brasil de Fato – Por que as pessoas têm medo das
religiões de matriz africana?
Vicente Galvão Parizi – Acho que fundamentalmente o medo
vem da ignorância e de ideias pré-concebidas. Mas há vários aspectos a serem
observados. Vou relacionar alguns. Em seu livro Notas sobre a religião dos
Orixás e Voduns, Pierre Verger apresenta documentos sobre o encontro dos
brancos colonizadores e os africanos e como os brancos, em especial os padres,
não podiam entender uma cultura – e uma religião – tão diversa. Por exemplo:
Exu era cultuado ao ar livre, portanto havia assentamentos aos pés de árvores.
Ao ver adeptos dando dobale [saudações a orixás] nesses assentamentos,
os brancos concluíram que se tratava de culto a árvores.
E nos documentos
compilados por Verger encontramos isso: trata-se de pagãos que têm árvores por
deuses. Entretanto, nada mais longe da realidade! Outra confusão é que Exu
é representado com chifres. Para os padres cristãos, chifre é privilegio de
Satanás, portanto Exu é o demônio. E concluíram que os africanos eram
adoradores de Satã.
E por aí vai: a ignorância e o desconhecimento gerando
interpretações falsas que, muitas delas, até hoje continuam assombrando
corações e mentes. Outro aspecto desconhecido pela maioria é que as religiões
africanas são monoteístas. Há um deus único – olorum, olodumare, qualquer que
seja o nome – e suas manifestações – os orixás.
Ou seja, os Orixás não são
deuses, são manifestações de deus, são as forças criadoras de Olorum, as forças
da natureza. Mas para a maioria das pessoas que desconhecem a religião,
trata-se de uma religião com muitos deuses. Nesse sentido, o monoteísmo cristão
se enxerga como superior, e as religiões africanas passam por “primitivas e
politeístas”.
Mas o aspecto crucial, creio eu, é a questão do
sacrifício de animais. As religiões cristãs passaram a abordar o sacrifício a
partir apenas do aspecto simbólico: na consagração o sacerdote invoca o corpo e
o sangue de Cristo e os fiéis ingerem a hóstia se alimentando desse corpo e desse
sangue. Nas religiões de matriz africana, o sangue é efetivamente derramado.
Mais uma razão para que se diga que são religiões primitivas, que o
desenvolvimento do cristianismo as superou.
Brasil de Fato – Como se dá a construção deste medo?
Vicente Galvão Parizi – Tudo o que é diferente de mim me causa no mínimo
estranheza. Foi assim com os colonizadores brancos na China, no Japão, na
América e na África. Para poder entender o diferente de mim, não posso apenas
observar, apenas ver e não perguntar. Não questionar impede que se compreenda o
que realmente acontece.
Não adianta ver pessoas tomando café, ou ler livros
sobre o café: apenas tomando café poderei entender o que realmente é tomar
café. O medo, a meu ver, é causado pela ignorância, pelo desconhecimento,
pela falta de diálogo da maioria cristã com os adeptos de religiões
africanas.
Brasil de Fato – O preconceito contra as religiões de matriz
africana se dá em conjunto com as questões racial e social?
Vicente Galvão Parizi – Certamente. Não podemos esquecer que houve uma Bula
Papal que dizia, em nome de Deus, que os negros não possuíam alma e por isso
podiam ser escravizados. No Novo Mundo, as religiões de matriz africana eram
privilégio de negros, escravos e pobres.
Portanto, praticadas pelos brancos
apenas às escondidas. Nesse sentido, o papel de Joãozinho da Goméia [adepto do
candomblé] foi crucial, e sua ida para o Rio de Janeiro, sua entrada no meio
político, seus shows em teatros, a feitura de brancos etc, tudo serviu
para divulgar a religião no meio de brancos e de pessoas de estrato social
superior.
Brasil de Fato – Como você vê o crescimento das religiões
neopetencostais detentoras de poder em diversas esferas institucionais
(político, judiciário, econômico, de comunicação) que pregam contra as
religiões de matriz africana?
Vicente Galvão Parizi – Com muito temor. Na sua maioria, são cristãos
fundamentalistas, atendo-se à forma da lei e não ao seu sentido. Em tese, Jesus
pregava o amor a todos, mas na prática o que o cristianismo gerou foram
religiões absolutamente intransigentes com o diferente. A Inquisição com suas
fogueiras é a melhor demonstração disso.
Mas no Brasil de hoje a Inquisição
continua acontecendo nos rituais de exorcismo contra gays e lésbicas,
baseadas na ideia de que Exu é a personificação do demônio; está presente nos
ritos de renúncia a Satanás, em que adeptos quebram seus ibás de feitura e renunciam
em voz alta aos orixás.
Muitos desses sacerdotes estimulam ações concretas,
como ataques a terreiros e adeptos nas ruas fazendo despacho, assim como
ataques a gays e lésbicas nas ruas. Nesse momento, estamos assistindo
pela primeira vez a uma eleição em que o candidato apoiado pelos
neopentecostais – Celso Russomanno – tem chance real de ser escolhido como
prefeito de São Paulo. Fato inédito e que demonstra a união dessas
forças.
Em última instância, a realidade nos mostra que respeitar as diferenças –
sejam elas étnicas, religiosas, sexuais ou ideológicas – é condição sine qua
non para a boa convivência em sociedade. Porém, como bem salientou Vicente
Galvão Parizi, infelizmente muitos neopentecostais são cristãos
fundamentalistas que não toleram outras formas de crença.
“Em tese, Jesus
pregava o amor a todos, mas na prática o que o cristianismo gerou foram
religiões absolutamente intransigentes com o diferente”, conclui o psicólogo.
Não obstante, ainda há um famoso apresentador que diz que os ateus (pessoas que
“não têm Deus no coração”) são extremamente perniciosos à humanidade. Nada mais
falacioso e hipócrita.
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