A recente divulgação da carta que uma
comunidade indígena Guarani-Kaiowá de Dourados (MS) enviou à Justiça Federal
pedindo que, uma vez que não lhes é permitido viver da forma que consideram
digna, seja logo decretada a morte de toda a comunidade, por cruel que pareça,
não deveria causar espanto. Condenados à morte, sejamos sinceros, os índios
brasileiros já estão há mais de 500 anos, mas a execução da sentença é lenta,
torturante e cínica.
O que espanta, desta vez, é que os próprios Guarani-Kaiowá
tenham pedido ao seu inimigo mais ou menos declarado – esta coisa que
insistimos em tratar como “civilização” – que seja mais sincero. Sim, mais
sincero e diga claramente que o índio não interessa não se encaixa no modo de
vida a que todos, sem privilégios (ouçam o eco iluminista...), estamos
condenados. Aprendemos com Marx que o capital libertou o trabalhador da
escravidão à força, típica de formações econômicas pré-capitalistas, para
submetê-lo a uma forma diversa de escravidão: o trabalho assalariado, a compra
e venda da força de trabalho. (Sim, ainda há trabalho escravo – e ele não é
incompatível com o capitalismo.
Apenas não pode ser a regra, porque a
valorização do capital depende de sua circulação também na forma de salário, o
que não impede que um ou outro capitalista faça uso da extração violenta da
força de trabalho.) O trabalho como mercadoria é – em regra, insisto – o único
compatível com uma sociedade em que tudo é mercadoria, em que o acesso aos bens
indispensáveis à existência passa inescapavelmente pelo mercado: pagou, tem;
não pagou, não tem. Ponto final. É óbvio, neste esquema rigoroso de trocas, que
não se tolere qualquer exceção à lógica mercantil. Em outras palavras, o que o
capitalismo não tolera é a manutenção, em seu mundo, do que não é
mercadoria e, ainda por cima, impede o livre desenvolvimento de suas forças.
O
que são, afinal, os índios para a ordem capitalista? Um ônus, um entrave, uma
aberração, mas que, por não ser conveniente à “civilização” assim declará-los,
recebem da nossa Constituição instrumentos para sua proteção que são
constantemente “desmoralizados” (e é inevitável usar aqui esta palavra porque a
proteção aos índios assume exatamente uma feição moral na ordem jurídica, ao
mostrar como somos gratos e responsáveis com nossas, digamos, “origens”), como
na decisão da Justiça Federal que exterminou, por enquanto, a paciência dos
índios e sua esperança de viver no espaço que a “civilização” reservou àqueles
que a antecederam. E sobreviveram à sua afirmação.
A carta à Justiça Federal
não deixa dúvida: os Guarani-Kaiowá cansaram de reivindicar o direito de
sobreviver como índios e não aceitam viver senão como índios. Não
aceitam migrar para o regime do trabalho precário (prestado, no geral, a quem
tomou suas terras) ou da mendicância às margens do exuberante mundo das
mercadorias. O “bilhete suicida” que essa comunidade manda para nós, não o
tomem como chantagem, “drama” etc. É um “basta”, um “chega”, mas principalmente
uma prova de que os índios, com sua habitual sabedoria, entenderam melhor do
capitalismo e de sua “civilização” do que nós, que nele estamos afundados até o
pescoço – e um pouco mais. Não só sua própria existência, mas a forma como os
índios insistem em mantê-la é uma grande afronta ao capital e sua lógica.
Vejam
o que diz a carta: “Nós comunidades cultivamos o solo, produzimos a alimentação
aqui mesmo, plantamos mandioca, milho, batata-doce, banana, mamão, feijão e
criamos de animais domésticos, como galinhas e patos. Aqui agora não passamos
fome mais. As nossas crianças e adolescentes são bem alimentadas e felizes, não
estão pensando em prática de suicídio. Assim, há uma década, nesses 12 hectares
estamos tentando sobreviver de formas saudáveis e felizes, resgatando o nosso
modo de ser e viver Guarani-Kaiowá, toda a noite participando de nosso ritual
religioso jeroky e guachire”.
Como assim alimentadas, saudáveis e felizes? Sem
ter pago por isso? Este intercâmbio do homem com seus iguais e com a natureza
orientado apenas e tão-somente por suas necessidades – do espírito e do estômago
– é inadmissível para o capital. Mais ainda: é sobre sua negação que se
constituiu a forma como vivemos nos últimos 3 ou 4 séculos.
Os índios, neste
contexto, são não apenas supérfluos, mas uma espécie de mau exemplo a ser
apagado do horizonte de formas de “ser e viver” à venda – sim, à venda – em
nosso tempo. O que será de uma sociedade “sem alternativas” se tolerar uma
forma de vida que se nega à troca, ao dinheiro, à concentração da riqueza, ao
desperdício? Desta vez, a pedido dos próprios índios, a “civilização” terá
oportunidade de declarar o que pensa a este respeito.
A propósito, a
Constituição brasileira afirma que “São reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger
e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231).
Se nossas autoridades, que
têm sua função justificada por essa mesma Constituição, não se preocuparem em
respeitar tais palavras, será muito difícil evitar que se confirmem a tragédia
da carta dos índios e o pessimismo das linhas acima. Mas também será cada vez
mais difícil – creio e espero – manter os grupos oprimidos e suas
reivindicações dentro de comportados limites legais.
* Tarso de Melo (1976) é advogado, mestre e doutor em
Direito pela FDUSP, professor da FACAMP e coordenador de pós-graduação da
Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É um dos coordenadores da
coleção Direitos e Lutas Sociais (Dobra/Outras Expressões).
Fonte:
http://editora.expressaopopular.com.br/noticia/batalha-das-ideias-ser-%C3%ADndio-em-tempos-de-mercadoria
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