Eis aí mais uma homenagem a esse africano chamado
Eric Hobsbawm, desta vez uma entrevista concedida por ele em 2009 a repórter Verena
Glass da Revista Sem Terra e reproduzida pelo Jornal Brasil de Fato em 01 de outubro
de 2012, dia em que o historiador marxista partiu para o outro plano. Releia a seguir a reportagem.
Em entrevista exclusiva à Revista Sem Terra, o historiador Eric
Hobsbawm apresenta ao leitor sua avaliação das origens, efeitos e
desdobramentos da crise mundial. Desde que sua magnitude se fez sentir, com
seus capítulos ambiental, climático, energético, alimentar e, por fim,
econômico, acadêmicos, sociólogos, economistas, políticos e lideranças sociais
procuram entender e explicar suas causas, e analisar e prever suas consequências.
Muitos têm buscado respostas e soluções apenas no próprio universo econômico.
Outros concluíram que vivemos uma crise civilizatória, e que o capitalismo implodiu por seus próprios desmandos. Mas ninguém parece ter respostas definitivas sobre o que nos prepara o futuro. Assim também Hobsbawm, o maior historiador marxista da atualidade.
Outros concluíram que vivemos uma crise civilizatória, e que o capitalismo implodiu por seus próprios desmandos. Mas ninguém parece ter respostas definitivas sobre o que nos prepara o futuro. Assim também Hobsbawm, o maior historiador marxista da atualidade.
Aos 92 anos, o autor de algumas
das mais importantes obras acerca da história recente da humanidade, como “A
Era das Revoluções” (sobre o período de 1789 a 1848), “A Era do Capital”
(1848-1875), “A Era dos Impérios” (1875-1914) e “A Era dos Extremos – O Breve
Século 20”, lançado em 1994, não arrisca previsões sobre como será o mundo
pós-crise.
Nesta entrevista, concedida por e-mail de Paris, porém, Hobsbawm apresenta suas opiniões como contribuição ao debate. De certezas, apenas a de que, se a humanidade não mudar os rumos da sua convivência mútua e com o planeta, o futuro nos preserva maus agouros.
Cético e ao mesmo tempo esperançoso, não acredita que uma nova ordem mundial surgirá das cinzas do pós-crise, mas acha que ainda existem forças capazes de propor novas formas de organização e cultura políticas e sociais, como o MST.
Nesta entrevista, concedida por e-mail de Paris, porém, Hobsbawm apresenta suas opiniões como contribuição ao debate. De certezas, apenas a de que, se a humanidade não mudar os rumos da sua convivência mútua e com o planeta, o futuro nos preserva maus agouros.
Cético e ao mesmo tempo esperançoso, não acredita que uma nova ordem mundial surgirá das cinzas do pós-crise, mas acha que ainda existem forças capazes de propor novas formas de organização e cultura políticas e sociais, como o MST.
Revista Sem Terra - O planeta
vive hoje uma crise que abalou as estruturas do capitalismo mundial, atinge
indiscriminadamente atores em nada responsáveis pela sua eclosão, e que talvez
seja um dos mais importantes “feitos” da moderna globalização. Na sua
avaliação, quais foram os fatores e mecanismos que levaram a esta situação?
Eric Hobsbawm – Nos últimos quarenta anos, a globalização, viabilizada pela
extraordinária revolução nos transportes e, sobretudo, nas comunicações, esteve
combinada com a hegemonia de políticas de Estado neoliberais, favorecendo um
mercado global irrestrito para o capital em busca de lucros. No setor
financeiro, isto ocorreu de forma absoluta, o que explica porque a crise do
desenvolvimento capitalista ocorreu ali. Apesar do fato de que o capitalismo
sempre — e por natureza — opera por meio de uma sucessão de expansões geradoras
de crises, isto criou uma crise maior e potencialmente ameaçadora
para o sistema, comparável à Grande Depressão que se seguiu a 1929, mesmo que
seja cedo para avaliarmos todo o seu impacto. Um problema maior tem sido que a
tendência de declínio das margens de lucro, típico do capitalismo, tem sido
particularmente dramática porque os operadores financeiros, acostumados a
enormes ganhos com investimentos especulativos em épocas de crescimento
econômico, têm buscado mantê-los a níveis insustentáveis, atirando-se em
investimentos inseguros e de alto risco, a exemplo dos financiamentos
imobiliários subprime” nos EUA. Uma enorme dívida, pelo menos quarenta vezes
maior do que a sua base econômica atual foi assim criada, e o destino disso era
mesmo o colapso.
Revista Sem Terra - Como resposta à crise econômica,
governos e instituições financeiras estão concentrados em salvar os sistemas
bancário e financeiro, opção que tem sido considerada uma tentativa de cura do
próprio vetor causador do mal. No que deve resultar este movimento?
Eric Hobsbawm - Um
sistema de crédito operante é essencial para qualquer país desenvolvido, e a
crise atual demonstra que isso não é possível se o sistema bancário deixa de
funcionar. Nesse sentido, as medidas nacionais para restaurá-lo são
necessárias. Mas o que é preciso também é uma reestruturação do Estado por
exemplo, através das nacionalizações, a “desfinanceirização” do sistema e a
restauração de uma relação realista entre ativos e passivos econômicos. Isso
não pode ser feito simplesmente combinando vastos subsídios para os bancos com
uma regulação futura mais restrita. De toda forma, a depressão econômica não
pode ser resolvida apenas via restauração do crédito. São essenciais medidas
concretas para gerar emprego e renda para a população, de quem depende, em
última instância, a prosperidade da economia global.
Revista Sem Terra - Antes de se agudizar o caos
econômico, o mundo começou a sofrer uma sucessão de abalos sociais e
ambientais, como a falta global de alimentos, as mudanças climáticas, a crise
energética, as crises humanitárias decorrentes das guerras, entre outros. Como
você avalia estes fatores na perspectiva do paradigma civilizatório e de
desenvolvimento do capitalismo moderno?
Eric Hobsbawm - Vivemos meio século de um crescimento exponencial da população global, e
os impactos da tecnologia e do crescimento econômico no ambiente planetário
estão colocando em risco o futuro da humanidade, assim como ela existe hoje.
Este é o desafio central que enfrentamos no século 21. Vamos ter que abandonar
a velha crença — imposta não apenas pelos capitalistas — em um futuro de
crescimento econômico ilimitado na base da exaustão dos recursos do planeta.
Isto significa que a fórmula da organização econômica mundial não pode ser
determinada pelo capitalismo de mercado que, repito, é um sistema impulsionado
pelo crescimento ilimitado. Como esta transição ocorrerá ainda não está claro,
mas se não ocorrer, haverá uma catástrofe.
Revista Sem Terra - O capitalismo tem adquirido, cada
vez mais, uma força hegemônica na agricultura com o crescimento do agronegócio.
Muitos defendem que a Reforma Agrária não cabe mais na agenda mundial. Como vê
este debate e a luta pela terra de movimentos sociais como o MST e a Via
Campesina?
Eric Hobsbawm - A produção agrícola necessária para alimentar os seis bilhões de seres humanos
do planeta pode ser fornecida por uma pequena fração da população mundial, se
compararmos com o que era no passado. Isso levou tanto a um declínio dramático
das populações rurais desde 1950, quanto a uma vasta migração do campo para as
cidades. Também levou a um crescente domínio da agricultura por parte não tanto
do grande agronegócio, mas principalmente de empreendimentos capitalistas que
hoje controlam o mercado desta produção. Da mesma forma, têm aumentado os
conflitos entre agricultores e iniciativas empresariais na disputa pela terra
para propósitos não agrícolas (indústrias, mineração, especulação imobiliária,
transporte etc.), bem como pela sua posse e pela exploração dos recursos
naturais. A Reforma Agrária sem duvida não é mais tão importante para a
política como foi há 40 anos, pelo menosna América Latina, mas claramente
permanece uma questão central em muitos outros países. Na minha opinião, a
crise atual reforça a importância da luta de movimentos como o MST, que é mais
social do que econômica. Em tempos de vacas gordas é muito mais fácil ganhar a
vida na cidade. Em tempos de depressão, a terra, a propriedade familiar e a
comunidade garantem a segurança social e a solidariedade que o capitalismo
neoliberal de mercado tão claramente nega aos migrantes rurais desempregados.
Revista Sem Terra - Na virada do século, um novo
movimento global de resistência social tomou corpo através do que ficou
conhecido como altermundialismo. Surgiu o Fórum Social Mundial, e grandes
manifestações contra a guerra e instituições multilaterais, como a OMC, o G8 e
a ALCA, na América Latina, ganharam as ruas. Na sua avaliação, o que resultou
destes movimentos? E hoje, como vê estas iniciativas?
Eric Hobsbawm - O movimento global de resistência altermundialista merece o crédito de
duas grandes conquistas: na política, ressuscitou a rejeição sistemática e a
crítica ao capitalismo que os velhos partidos de esquerda deixaram atrofiar.
Também foi pioneiro na criação de um modo de ação política global sem
precedentes, que superou fronteiras nacionais nas manifestações de Seattle e
nas que se seguiram. Grosso modo, logrou formular e mobilizar uma poderosa
opinião pública que seriamente pôs em cheque a ordem mundial neoliberal, mesmo
antes da implosão econômica. Seu programa propositivo, porém, tem sido menos
efetivo, em função, talvez, do grande número de componentes ideologicamente e
emocionalmente diversos dos movimentos, unificados apenas em aspirações muito
generalistas ou ações pontuais em ocasiões específicas.
Revista Sem Terra - Principalmente na América Latina,
os anos 2000 trouxeram uma série de mudanças políticas para a região com a
eleição de governadores mais progressistas. A sociedade civil organizada ganhou
espaço nos debates políticos, mas os avanços na garantia dos direitos sociais
ainda esperam por uma maior concretização. Como analisa este fenômeno?
Eric Hobsbawm - O fator mais positivo para a América Latina é a diminuição efetiva da
influência política e ideológica — e, na América do Sul, também econômica — dos
EUA. Um segundo fator muito importante é o surgimento de governos progressistas
— novamente mais fortes na América do Sul — , inspirados pela grande tradição
da igualdade, fraternidade e liberdade, que comprovadamente está mais viva aí
do que em outras regiões do mundo neste momento. Estes novos regimes têm se
beneficiado de um período de altos preços de seus bens de exportação. Quão
profundamente serão afetados pela crise econômica, principalmente o Brasil e a
Venezuela,ainda não está claro. Suas políticas têm logrado algumas melhorias
sociais genuínas, mas até agora não reduziram significativamente as enormes
desigualdades econômicas e sociais de seus países. Esta redução deve permanecer
a maior prioridade de governos e movimentos progressistas.
Revista Sem Terra - Diante da crise civilizatória, do
fracasso do capitalismo e da inoperância dos sistemas multilaterais, que não
foram aptos a enfrentar as grandes questões mundiais, as esquerdas têm se
debatido na busca de alternativas; mas nem consensos nem respostas parecem
despontar no horizonte. Haveria, em sua opinião, a possibilidade real da
construção de um novo socialismo, uma nova forma de lidar com o planeta e sua
gente, capaz de enfrentar a hegemonia bélica, econômica e política do
neoliberalismo?
Eric Hobsbawm - Eu não acredito que exista uma oposição binária simples entre “um novo
socialismo” e a “hegemonia do capitalismo”. Não existe apenas uma forma de
capitalismo. A tentativa de aplicar um modelo único, o “fundamentalismo de
mercado” global anglo-americano, é uma aberração histórica, que potencialmente
colapsou agora e não pode ser reconstruída. Por outro lado, o mesmo ocorre com
a tentativa de identificar o socialismo unicamente com a economia centralizada
planejada pelo Estado dos períodos soviético e maoísta. Esta também já era
(exceto talvez se nosso século for reviver os períodos temporários de guerra
total do século 20). Depois da atual crise, o capitalismo não vai desaparecer.
Vai se ajustar a uma nova era de economias que combinarão atividades econômicas
públicas e privadas. Mas o novo tipo de sistemas mistos tem que ir além das
várias formas de “capitalismo de bem estar” que dominou as economias
desenvolvidas nos trinta anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Deve
ser uma economia que priorize a justiça social, uma vida digna para todos e a
realização do que Amaratya Sen chama de potencialidades inerentes aos seres
humanos. Deve estar organizada para realizar o que está além das habilidades do
mercado dos caçadores-de-lucro, principalmente para confrontar o grande desafio
da humanidade neste século 21: a crise ambiental global. Se este novo sistema
se comprometer com os dois objetivos, poderá ser aceitável para os socialistas,
independente do nome que lhe dermos. O maior obstáculo no caminho não é a falta
de clareza e concordância entre as esquerdas, mas o fato de que a crise econômica
global coincide com uma situação internacional muito perigosa, instável e
incerta, que provavelmente não estabelecerá uma nova estabilidade por algum
tempo. Entrementes, não há consenso ou ações comuns entre os Estados, cujas
políticas são dominadas por interesses nacionais possivelmente incompatíveis
com os interesses globais.
Revista Sem Terra - Conceitos como solidariedade,
cooperação, tolerância, justiça social, sustentabilidade ambiental,
responsabilidade do consumidor, desenvolvimento sustentável, entre outros, têm
encontrado eco, mesmo de forma ainda frágil, na opinião pública. Acredita que
estes princípios poderão, no futuro, ganhar força e influenciar a ordem
mundial? Vê algum caminho que possa aproximar a humanidade a uma coabitação
harmoniosa?
Eric Hobsbawm - Os conceitos listados estão mais para slogans do que para programas.
Eles ou ainda precisam ser transformados em ações e agendas (como a redução de
gases de efeito estufa, encorajada ou imposta pelos governos, por exemplo), ou
são subprodutos de situações sociais mais complexas (como “tolerância”, que
existe efetivamente apenas em sociedades que a aceitam ou que estão impedidas
de manter a intolerância). Eu preferiria pensar na “cooperação” não apenas como
um ideal generalista, mas como uma forma de conduzir as questões humanas, como
as atividades econômicas e de bem estar social. Me entristece que a cooperação
e a organização mútua, que eram um ele- mento tão importante no socialismo do
século 19, desapareceram quase que completamente do horizonte
socialista do século 20 – mas felizmente não da agenda do MST. Espero que esta
lista de conceitos continue conquistando o apoio e mobilize a opinião pública
para pressionar efetivamente os governos. Não acredito que a humanidade
alcançará um estado de “coabitação harmoniosa” num futuro próximo. Mas mesmo se
nossos ideais atualmente são apenas utopias, é essencial que homens e mulheres
lutem por elas.
Revista Sem Terra - O senhor, que estudou com
profundidade a história do mundo e as relações humanas nos últimos séculos, o
que espera do futuro?
Eric Hobsbawm - Se a crise ambiental global não for controlada, e o crescimento
populacional estabilizado, as perspectivas são sombrias. Mesmo se os efeitos
das mudanças climáticas possam ser estabilizados, produzirão enormes problemas
que já são sentidos, como a crescente competição por recursos hídricos, a
desertificação nas zonas tropicais e subtropicais, e a necessidade de projetos
caros de controle de inundações em regiões costeiras. Também mudarão o
equilíbrio internacional em favor do hemisfério Norte, que tem largas extensões
de terras árticas e subárticas passíveis de serem cultivadas e
industrializadas. Do ponto de vista econômico, o centro de gravidade do mundo
continuará a se mover do Oeste (América do Norte e Europa) para o Sul e o Leste
asiático, mas o acúmulo de riquezas ainda possibilitará às populações das
velhas regiões capitalistas um padrão de vida muito superior às dos emergentes
gigantes asiáticos. A atual crise econômica global vai terminar, mas tenho
dúvidas se terminará em termos sustentáveis para além de algumas décadas.
Politicamente, o mundo vive uma transição desde o fim da Guerra Fria. Se tornou
mais instável e perigoso, especialmente na região entre Marrocos e Índia. Um
novo equilíbrio internacional entre as potências — os EUA, China, a União
Europeia, Índia e Brasil — resumivelmente ocorrerá, o que poderá garantir um
período de relativa estabilidade econômica e política, mas isto não é para já.
O que não pode ser previsto é a natureza social e política dos regimes que
emergirão depois da crise. Aqui as experiências do passado não podem ser
aplicadas. O historiador pode falar apenas das circunstâncias herdadas do
passado. Como diz Karl Marx: a humanidade faz a sua própria história. Como a
fará e com que resultados, muitas vezes inesperados, são questões que
ultrapassam o poder de previsão do historiador.
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