Patrícia Benvenuti, da Reportagem
Documentário 1964 – Um golpe contra o Brasil resgata acontecimentos e interesses que conduziram à queda de João Goulart.
1964 anos de chumbo no Brasil |
Uma série de iniciativas nos
últimos anos vem colocando em pauta o período da ditadura civil-militar no
Brasil (1964-1985). Além de ações de repercussão como a Comissão da Verdade,
livros e filmes lançados recentemente também resgatam acontecimentos e
contribuem para a compreensão do que ocorreu na época.
Um dos mais novos trabalhos nesse
sentido é o documentário 1964 – Um golpe contra o Brasil, uma parceria entre o
Núcleo Preservação da Memória Política e a TVT – Televisão dos Trabalhadores.
Lançada em março deste ano, a produção tem como foco a questão do regime, mas
com uma proposta diferente: relatar e analisar os momentos que antecederam o
golpe.
“O Núcleo [de Preservação da
Memória Política] pensou em um vídeo capaz de informar aos mais jovens o que
foi o pré-golpe e o golpe para que se entendam os interesses de classe em jogo
no Brasil naquele momento e os interesses do grande império estadunidense nessa
história”, explica o diretor do documentário, o jornalista, escritor e artista
plástico Alipio Freire.
O vídeo se antecipa aos 50 anos do
golpe, que se completarão em 2014. Para Freire, é preciso desde já
disponibilizar outras versões para os fatos, diferentes das que contam a
história oficial. “É preciso que as pessoas, e sobretudo os jovens, tenham
acesso a outro tipo de informação”, diz.
O documentário se inicia com a
eleição de Jânio Quadros para a presidência da República e João Goulart como
vice, em 1960, e se estende até a posse de Humberto Castello Branco, primeiro
presidente militar, em 15 de abril de 1964.
A narrativa foi construída a partir de
depoimentos de militantes e opositores do regime como Almino Affonso, então
deputado federal e ministro do Trabalho do governo Jango; Rafael Martinelli,
dirigente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT); a socióloga Maria Victoria
Benevides; Aldo Arantes, então presidente da União Nacional dos Estudantes
(UNE), e João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
O vídeo não será comercializado, e
sim distribuído para instituições, com a recomendação de que todas que recebam
o material façam e difundam cinco cópias, a fim de que o projeto alcance o
maior público possível. Em breve, também será disponibilizado na internet.
Para o segundo semestre, está
previsto o lançamento de uma versão do documentário voltada à exibição nas
escolas. Com o mesmo conteúdo, o material será dividido em oito módulos de 24
minutos cada.
1964 é o primeiro longa-metragem
dirigido por Alipio Freire. Nascido em Salvador (BA) em 1945, Alipio Freire
vive em São Paulo
desde os 16 anos.
Sua militância na Ala Vermelha (grupo dissidente do PCdoB)
durante o regime o levou à prisão entre 1969 e 1974. Em entrevista ao Brasil de
Fato, o jornalista destaca a necessidade de desvelar os interesses de classe
que compunham a luta política naquele momento.
Alipio Freire |
Brasil de Fato –
Como surgiu a ideia para esse documentário?
Alípio Freire –
Quem pensou em fazer o vídeo foi o Núcleo de Preservação da Memória Política,
do qual sou presidente nesse momento. O Núcleo pensou um vídeo capaz de
informar aos mais jovens o que foi o pré-golpe e o golpe, para que se entendam
os interesses de classe em jogo no Brasil naquele momento e os interesses do
grande império estadunidense nessa história. No próximo ano serão 50 anos do
golpe de Estado civil-militar e eles contarão suas versões oficiais, mais ou
menos liberaloides ou ditatoriais, mas todas como um grande mouro [neste
sentido, trabalho, abnegação da vida] pela democracia. É preciso que as
pessoas, e sobretudo os jovens, tenham acesso a outro tipo de informação.
Queremos que as pessoas possam entender bem aquele tempo, porque disso depende
grande parte do presente e, sobretudo, o futuro do país.
Brasil de Fato – Qual
a principal contribuição trazida por esse documentário, na sua opinião?
Alípio Freire –
É explicitar a disputa de classes no Brasil e de hegemonia dos Estados Unidos
no mundo e entender a política como luta de classes. Política é luta de
classes, é a disputa entre as classes, setores e segmentos pelos seus
interesses. Não tem nenhuma mágica na política. No documentário, nós trabalhamos
com as classes sociais no Brasil, tanto o grande capital aliado ao capital
internacional quanto um programa gestado por setores da burguesia nacional a
partir de um projeto de desenvolvimento nacional. Trabalhamos também com os
trabalhadores urbanos, particularmente a classe operária, com o movimento
camponês, estudantes, sujeitos que atuaram na política institucional de
correntes políticas diferentes, pessoas da esquerda cristã, comunistas,
trabalhistas. Mas não tive o menor interesse em
entrevistar o outro lado. Ouvir certos outros lados em algumas circunstâncias é
importante, mas eles [figuras do regime] estão falando o tempo inteiro nos
jornais. Tem os filmes deles, que não nos ouvem. Essa é a tentativa de uma
versão do povo brasileiro de sua história. É um vídeo com corte de classe, sim,
como os deles são. Só que as nossas classes são outras. Há um corte tolo sobre a ditadura,
que acredita que o golpe e a ditadura foram militares. Não foram. Os militares
tiveram um peso, mas foi civil-militar. Quando você diz que é militar, onde
você põe o fim da ditadura? Na hora em que o Tancredo [Neves] não assume porque
fica doente, e assume outro civil, José Sarney. A ditadura não acaba aí. Acaba
quando você constitui um novo Estado de Direito, e isso foi em 1988.
Brasil de Fato – Como
tem sido a recepção do público?
Alípio Freire –
As pessoas têm gostado, o que para nós é extremamente importante. Têm gostado
não só dos conteúdos, mas da maneira como está exposto. Estou muito contente e
vou ficar mais ainda quando os brasileiros, particularmente os jovens, e outros
companheiros do mundo inteiro se apropriarem dessa história. [O vídeo] é um
produto para incidir sobre o saber e a reflexão das pessoas, mesmo que não
concordem com o que se fala.
Brasil de Fato – Você
acredita que isso de alguma forma atrapalha a compreensão daquele momento?
Alípio Freire - Muito, demais, porque evita que os
que criam e alimentam os mitos façam a crítica às nossas derrotas e também às
vitórias anteriores. Crítica no sentido de análise, não é xingar e muito menos
um ataque pessoal contra o mito que geralmente não tem nada a ver com isso. São
os seguidores que criam essa situação, e isso não é bom. Devemos atingir as
pessoas olho no olho e pela porta da frente da cabeça, não mexendo com emoções
desconhecidas. Respeitar os nossos companheiros que tombaram e lutaram lá atrás
é uma coisa. A mitologização é outra, porque não trabalha com seres humanos,
trabalha com os ideais, e isso ninguém foi e ninguém será.
Brasil de Fato – No teaser
de apresentação do documentário você afirmou que é preciso superar o sentimento
de “solidariedade ao sofrimento” que está presente em relação à ditadura. O que
você quis dizer com isso?
Alípio Freire - No conjunto da sociedade hoje vai se
criando uma consciência, a partir dos governos civis, que desabrocha com mais
visibilidade a partir do segundo governo do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva e da presidenta Dilma [Rousseff]. Tiveram grande visibilidade as
iniciativas do [ex-] ministro Paulo Vanucchi, dos Direitos Humanos, criando os
Memoriais das Pessoas Imprescindíveis, jogando para a rua um assunto que estava
entre quatro paredes; e do presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, que,
ao criar as caravanas da Anistia, levou para o Brasil inteiro essa discussão.
Fora os grupos de direitos humanos que, com isso, têm seu trabalho
potencializado. Depois veio a Comissão da Verdade, que eu acho um avanço imenso
para esse país. Acontece que, de um modo geral, o
primeiro movimento das pessoas frente a isso é um sentimento extremamente
generoso de solidariedade com os que foram perseguidos, torturados,
assassinados e desaparecidos, o que é muito bom. No entanto, nós não podemos
parar por aí. É preciso que toda essa sociedade saiba quais os motivos que
moveram essas pessoas a resistir e o que aconteceu no país naquele momento.
Consideramos fundamental dar a verdadeira dimensão política dos programas e
projetos que estavam em curso durante o governo João Goulart e que foram
massacrados pelas elites brasileiras.
Brasil de Fato – Falando
um pouco sobre o período do pré-golpe, o que representava a figura do Jango
naquele momento?
Alípio Freire - A
rigor, o Jango representava um programa que se inicia pensado e aplicado no
governo de Getúlio Vargas dos anos 1950, que o leva ao suicídio. Países
atrasados com o desenvolvimento industrial buscavam esse desenvolvimento
bancado pelo Estado e articulado com os capitais nacionais e fundado – daí seu
grande aspecto popular – em um grande programa de distribuição de renda. A
reforma agrária teria um papel fortíssimo nisso. Primeiro porque ela geraria
trabalho próximo das ferrovias e das rodovias, e aí o camponês podia desaguar
sua produção. Vinha junto com isso a luz elétrica no campo. A indústria de
capital nacional produziria geladeiras, liquidificadores e máquinas de costura
que eles [camponeses] poderiam consumir. Isso era uma revolução na concepção de
Brasil naquele tempo. Ele [Jango] representava esse projeto.
Brasil de Fato – Havia
mesmo o apoio das organizações populares para as reformas de base?
Alípio Freire - Sim, mas o grande problema eram duas
questões. Uma é um entulho autoritário que está presente até hoje, que é a
Carta Sindical e o Imposto Sindical, ou seja, a subordinação da organização dos
trabalhadores ao Estado. O movimento sindical durante a ditadura se bateu
contra isso violentamente e depois as centrais sindicais não derrubaram isso.
Se o sindicato começa a ter atividades de um tipo que não estão na Carta
Sindical, o Estado pode intervir. Junto com essa questão está o tipo
de política dominante, que é a organização dos trabalhadores e do povo em torno
das sedes dos sindicatos e das lideranças. E o que acontece em 1964. Tudo era
organizado em torno de líderes. Veio o golpe e bastou ocupar as sedes dos
sindicatos, botar as lideranças para correr ou matar, que não sobrou
organização independente da classe trabalhadora. É diferente, por exemplo, se
os trabalhadores estivessem organizados dentro dos seus locais de trabalho. E
isso serve tanto para os [trabalhadores] urbanos como para os rurais.
Brasil de Fato – De
que forma, para você, os fatos narrados no documentário se relacionam com o
presente?
Alípio Freire - Toda essa memória tem que ser usada
para a transformação do presente e do futuro. Senão ela vira nostalgia ou
narcisismo. Essa memória tem que nos fazer lembrar que até hoje o mesmo terror
de Estado da época da escravidão, da ditadura Vargas e da civil-militar
instalada em 1964 permanece. Está nas chacinas das periferias de São Paulo e
nas chacinas contra o MST no campo. Isso é o terror de Estado, as torturas
continuam a existir. É que o foco agora saiu da repressão maior contra a
oposição, e se fixou nos trabalhadores mais pobres. Nos bairros de periferia,
não vigora sequer o mais singelo direito garantido pela Constituição, que é o
direito de ir e vir. Começa a escurecer e todos se trancam em casa, com medo
igualmente da polícia e do crime organizado, e cada vez temos mais dificuldade
de saber quais os limites entre um e outro. O terror de Estado está aí, vivo.
“1964 – Um golpe contra o
Brasil”
Direção: Alipio
Freire
Duração: 147
minutos
Fonte:http://www.brasildefato.com.br/node/12500
1º/04/2013
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