Autor: Mário Maestri
"Clóvis
Moura produziu importante obra histórica, sociológica e poética, na qual se
destacaram trabalhos preciosos sobre diversos aspectos da formação social
brasileira, sobretudo referentes à escravidão e às relações sócio-raciais,
temas sobre os quais se debruçou longamente, sobretudo na década de 80."
Em 23 de dezembro
de 2013 transcorrerão dez anos do falecimento do sociólogo marxista Clóvis
Moura, aos 78 anos, devido a um câncer na garganta, no Hospital Alberto
Einstein, em São Paulo.
Originário de
Amarante, no Piauí, o conhecido sociólogo e lutador social nasceu no seio de
família de classe média remediada. Filho de mãe branca e de pai negro, tinha
entre seus ancestrais nobres europeus e africanos, senhores de engenho e
cativos.
Clóvis Moura
ingressou no PCB em 1942, trabalhando como jornalistas em Salvador e, a partir
de 1949, em São Paulo. Interessado
pela questão social e racial no Brasil, empreendeu aos 23 anos pesquisa sobre a
luta dos trabalhadores escravizados nos arquivos baianos, concluída em
1952. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições,
guerrilhas foi trabalho pioneiro na interpretação da
antiga formação social brasileira, apresentada claramente como escravista e
regida pela oposição escravizados e escravizadores.
O trabalho
germinal de Clóvis Moura teria escassa aceitação e legitimação. Desconsiderado
pela inteligentizia oficial, foi mal recebido pela
intelectualidade do PCB, ao contrariar as teses sobre formação social
semi-feudal. Terminou sendo rejeitado pela prestigiosa Editora Brasiliense, de
Caio Prado Júnior, para conhecer publicação, sete anos mais tarde, em 1959,
pela micro-editora Zumbi, fundada por militantes comunistas para publicar obras
não aceitas pela Editora Vitória, do PCB. Em 1962, Clóvis Moura esteve entre os
poucos intelectuais que romperam com aquele partido para fundar o PC do B.
Rebeliões
da senzala: quilombos,
insurreições, guerrilhas conheceu
uma reedição ampliada, pela Editora Ciências Humanas, em 1971, doze anos após
sua publicação, durante a ditadura militar, e duas outras reapresentações, a
última pela editora Mercado Aberto, de Porto Alegre, em 1988, quando do
primeiro centenário da abolição da escravatura, há já 25 anos!
Rebeliões da
Senzala
Em Rebeliões
da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas, parcialmente
ainda sob a influência da visão de Gilberto Freyre da
escravidão negra como produto da inaptidão cultural do americano ao cativeiro,
Clóvis Moura assinalou que o “estabelecimento da escravidão" subvertera
“em suas bases o regime de trabalho até então dominante”. Assim sendo, propôs o
caráter hegemônico da escravidão, avançando que, “do ponto de vista
sociológico”, ela dividira “a sociedade colonial em duas classes fundamentais e
antagônicas" − a dos escravizadores, "ligados economicamente à
Metrópole", e a da "massa escrava", formada pela "maioria
da população", que "produzia toda [sic] a riqueza social”.
Sobre a produção
mercantil da Bahia de inícios do século 19, extremando, avaliou que “era toda
baseada no trabalho escravo” e que as “relações escravistas determinavam todo o
conjunto da sociedade baiana”. Defendeu que os “escravos, os pequenos
lavradores, sitiantes, pecuaristas, intelectuais e artesãos” vivessem “asfixiados
pelos senhores de engenhos e [de] escravos que usufruíam vantagens desse
sistema de economia colonial”. Em leitura igualmente inovadora, enfatizou a
importância histórica da Abolição, que apresentou como decorrência do fim do
tráfico. Assinalou com sensibilidade a cisão do abolicionismo em “ala moderada”
e ala “radical”, que se voltara “para os próprios escravos, organizando-os para
que lutassem com suas próprias forças [...].”
Clóvis Moura
destacou a participação da pequena “classe operária” e a evolução da
consciência do cativo durante a luta abolicionista. Sua visão arguta da
Abolição é impugnada comumente pela historiografia brasileira e pelo próprio
movimento negro que desvalorizam o sentido revolucionário da superação do
escravismo, em 1888, devido à situação atual do brasileiro com
afro-ascendência, em desqualificação inaceitável da até hoje única revolução
social vitoriosa no Brasil, produto sobretudo da mobilização das classes
exploradas.
Clóvis Moura
investigou sumariamente a participação dos cativos nos principais “movimentos
políticos” do passado – Inconfidência Mineira, Revolução de 1917, etc. –,
destacando que “eram aliciados e engrossavam” movimentos das classes
dominantes. Destacou nessas lutas a singularidade da conspiração baiana de 1798, a única realmente a
se mobilizar contra a escravidão. Minimizando a resistência “individual” e
orgânica dos cativos à escravidão – fuga, justiçamento, etc. –, enfatizou as
“revoltas” coletivas nas quais o cativo lutaria “por objetivos próprios” –
quilombos, guerrilhas e insurreições. Propôs que os quilombos assumiriam “forma
defensiva” e “insurrecional, com o objetivo de esmagar seus senhores”.
Em defesa do
quilombo
Clóvis Moura
apresentou o fenômeno “quilombo” como “geral” e “constante” na história do
Brasil e expressão do “inconformismo do negro”, determinado pelas regiões e
época em que surgia e pela capacidade de articular-se com índios, cativos e
livres pobres. Apontou e analisou quilombos de várias regiões do Brasil e
destacou a importância do mocambo do “preto Cosme” na Balaiada, lembrando que
ainda não tivera seu “historiador” e a desqualificação habitual do “líder
quilombola” como “megalômano ou paranoico”. Em Evolução política do
Brasil, de 1933, Caio Prado referira-se ao quilombo e a dom Cosme em forma
depreciativa. Não sabemos se a proposta sobre a subalternidade de
dom Cosme fazia parte do original de Rebeliões na Senzala apresentado
ao célebre historiador.
Clóvis Moura
definiu o “Quilombo dos Palmares” como “a maior tentativa de autogoverno dos
negros fora do Continente Africano” e sintetizou as principais insurreições
escravas, enfatizando as baianas. Propôs que a revolta de 1835 fora “planejada
nos seus detalhes”, destacando seu projeto “político” necessariamente limitado
– matar “os brancos, pardos e crioulos”.
Em 1951, Clóvis
Moura recebera resposta de carta enviada a Édison Carneiro. Ela assinalava o
caráter “extremamente importante” da pesquisa e enfatizava a necessidade de que
não esquecesse a “importância” do “motivo religioso” nos levantes servis. Para
Carneiro, a “religião” era “o vínculo nacional entre os escravos” e o
“substantivo quilombo” significava também “ajuntamento religioso”. Moura não
seguiria a recomendação do conhecido pesquisador, também ligado ao PCB.
Clóvis Moura
concluiu seu trabalho com análise sintética das lutas diretas dos trabalhadores
escravizados, que propôs não se tratarem comumente de “revoltas” dominadas “por
simples paixões momentâneas”, mas planejadas “detalhadamente”, em
super-avaliação da capacidade de consciência explícita dos trabalhadores
escravizados. Destacou entretanto as debilidades objetivas dos movimentos.
Ruptura
epistemológica
Publicado em
1959, Rebeliões da senzala efetuava ruptura
epistemológica ao propor que a “imensa massa escrava” impulsionara a “economia
colonial” e esmagara “quase inteiramente o trabalho livre”. O trabalho rompia
com as visões da historiografia tradicional e do PCB, ao afirmar o caráter
sistêmico do trabalho feitorizado e da escravidão.
Questionava, assim, a
proposta de existência de povo brasileiro e da centralidade
de lutas camponesas contra os grandes proprietários na
pré-Abolição.Em verdade, naqueles anos, os segmentos camponeses eram
extremamente minoritários no Brasil.
Como os trabalhos
germinais anteriores de Manuel Bomfim, Manuel Querino e Benjamin Péret, não
utilizados e citados por Clóvis Moura, a visão germinal do passado do jovem
intelectual marxista não teve desdobramentos imediatos. A seguir, dominaram
interpretações que assinalaram a importância e a violência da escravidão, o
caráter não escravista do passado, a infecundidade da resistência servil do
trabalhador escravizado, consagradas pela célebre Escola Paulista de Sociologia
– Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octário Ianni, entre outros.
Décadas mais
tarde, em fins dos anos 1970 e início de 1980, a centralidade do
mundo do trabalho impôs-se transitoriamente no Brasil, devido ao avanço das
lutas sociais. Então, abriu-se espaço para que o trabalho e a resistência do
escravizado conquistassem importante status acadêmico. Nesse
breve período, a visão de Clóvis Moura inspirou novos estudos sobre a história
social da escravidão.
Muito logo, com o refluxo das lutas sociais e hegemonia
conservadora, consolidaram-se a reabilitação da visão de escravidão
patriarcal, pactuada e negociada e a
qualificação da leitura germinal de Clóvis Mouro como visão romântica de um
cativo eternamente rebelado.
Liderança
Negra
Em
1970, ainda sob a ditadura militar, Clóvis Moura transformou-se em uma das mais
destacadas e influentes lideranças do movimento negro organizado, posição que
manteria na década seguinte, até a consolidação das visões e propostas
colaboracionistas e racialistas nos anos 1990, até hoje plenamente dominantes.
Nos últimos anos de sua vida, como comunista sem partido, mantendo sempre a
radicalidade de seu pensamento, Clóvis Moura colaborou com a Editora Expressão
Popular do MST, já sem acesso às grandes editoras e meios de comunicação.
Clóvis
Moura produziu importante obra histórica, sociológica e poética, na qual se
destacaram trabalhos preciosos sobre diversos aspectos da formação social
brasileira, sobretudo referentes à escravidão e às relações sócio-raciais,
temas sobre os quais se debruçou longamente, sobretudo na década de 80. Nos
últimos anos de sua vida, ocupou-se na conclusão de seu Dicionário da escravidão
negra no Brasil, publicado postumamente, em 2004, pela EdUSP.
Na produção
científica relativamente limitada sobre a obra de Clóvis Moura
destacam-se a dissertação de mestrado, de 2002, de Erika
Mesquita, “Clovis Moura : uma visão critica da historia social
brasileira”, defendida na UNICAMP; o livro coletivo publicado em sua homenagem,
em 2003, sob a coordenação do historiador Luís Sávio de Almeida, O
negro no Brasil: estudos em homenagem a Clóvis Moura[www.edufal.br]; a dissertação
de Fábio Nogueira de Oliveira, de 2009, “Clóvis Moura e a sociologia da
práxis negra”, defendida na UFF.
Em 2004, o
valioso acervo pessoal de Clóvis Moura – que era magnífico missivista – foi
entregue por sua família ao Centro de Documentação e Memória da UNESP. Ao
batizar como Clóvis Moura um dos seus campi, a Universidade
Estadual do Piauí demonstrou certamente que santo forte faz, sim, milagres em
sua terra!
O decênio de
Clóvis Moura será certamente oportunidade excelente para discussão da vida e da
obra de um dos mais destacados pensadores e lutadores sociais brasileiros do
século 20.
Fonte:http://editora.expressaopopular.com.br/batalha-das-ideias/dez-anos-sem-cl%C3%B3vis-moura
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