O PL 626/2001 "poderá
desencadear ou reforçar um mecanismo semelhante ao do desmatamento ilegal
realizado pela indústria madeireira”, diz o geógrafo João Camelini.
Desmatamento na Amazônia Legal para atender a agro-indústria açucareira- Foto: Daniel/CC |
A aprovação do Projeto de Lei
626/2001 pela Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor, Fiscalização e
Controle do Senado, que revê o Zoneamento Agroecológico – ZAE da cana-de-açúcar
e autoriza seu plantio em áreas alteradas e nos biomas Cerrado e Campos Gerais
na Amazônia Legal, “é um fato lamentável, que demonstra o comprometimento com
agentes econômicos, sustentado por um discurso totalmente equivocado”, diz João Humberto Camelini à IHU On-Line.
Segundo ele, “é possível alcançar o desenvolvimento de uma região por meio de
um planejamento integrado, que envolva, entre outros fatores, a instalação de
usinas de açúcar e etanol, mas a ideia que se propaga erroneamente é que a mera
presença de uma usina conduz ao desenvolvimento”.
Na entrevista a seguir, concedida
por e-mail, o geógrafo esclarece que as questões em discussão são muito mais
“complexas do que sugere a abordagem apresentada no Projeto de Lei”. Ele
explica: “Quando uma cultura regulamentada como a cana-de-açúcar recebe
autorização formal e incentivos para ocupação, isto implica no uso exclusivo de
grandes porções de terras no entorno das usinas, dentro de um raio aproximado
de 40 a 50 quilômetros, o
que leva à rápida e agressiva substituição das atividades existentes,
deslocando-as para áreas inalteradas”.
O Projeto de Lei, acentua, tem como
objetivo expandir a produção de etanol para suprir a demanda externa, “que
atualmente é potencial, mas que pode tornar-se real se o etanol passar a se
comportar formalmente como uma commodity. Na verdade é uma aposta, pois a atual
relação custo/benefício para produção de açúcar é muito melhor que a do etanol,
mas este pode dar acesso a um mercado promissor no futuro. Hoje sua função é
atender o mercado interno e equilibrar o preço da gasolina. A impressão geral
dos produtores é que ele foi colocado em segundo plano após a descoberta do
Pré-sal”.
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CONFIRA A ENTREVISTA.
João Camelini |
IHU On-Line – Como o
senhor vê a aprovação do Projeto de Lei 626/2011 pela Comissão de Meio
Ambiente, Defesa do Consumidor, Fiscalização e Controle do Senado, que revê o
Zoneamento Agroecológico – ZAE da cana-de-açúcar e autoriza seu plantio em
áreas alteradas e nos biomas Cerrado e Campos Gerais na Amazônia Legal? O que
esta expansão significa e demonstra sobre a agenda ambiental brasileira?
João Camelini – A
meu ver, esta aprovação é um fato lamentável que demonstra o comprometimento
com agentes econômicos, sustentado por um discurso totalmente equivocado. É
possível alcançar o desenvolvimento de uma região por meio de um planejamento
integrado que envolva, entre outros fatores, a instalação de usinas de açúcar e
etanol. Porém, a ideia que se propaga erroneamente é que a mera presença de uma
usina conduz ao desenvolvimento.
A questão é muito mais complexa do
que sugere a abordagem apresentada neste Projeto de Lei. Não devemos apenas
pensar na ocupação direta das áreas como a causa dos desmatamentos; este
processo é muito mais sutil e gradual do que pode perceber o senso comum.
Quando uma cultura regulamentada
como a cana-de-açúcar recebe autorização formal e incentivos para ocupação,
isso implica o uso exclusivo de grandes porções de terras no entorno das
usinas, dentro de um raio aproximado de 40 a 50 quilômetros, o
que leva à rápida e agressiva substituição das atividades existentes,
deslocando-as para áreas inalteradas. Isso gera grandes pressões por
desmatamentos clandestinos e de difícil fiscalização.
É um mecanismo semelhante ao do
desmatamento ilegal realizado pela indústria madeireira, que abre espaço para a
criação de gado, que, por sua vez, dá lugar à soja e esta à cana-de-açúcar. O
ciclo se repete com novos desmatamentos, mas a sua relação com as etapas finais
é de difícil percepção.
IHU On-Line – A
crítica à aprovação do Projeto de Lei refere-se especialmente à plantação de
cana-de-açúcar na Amazônia Legal, porque o zoneamento ecológico da Embrapa não
prevê o plantio de cana na região. Quais as implicações em expandir a produção
de cana-de-açúcar para essa região? Como essa produção modifica a geografia da
Amazônia?
João Camelini – No
caso da ocupação da Amazônia, é necessário compreender que haverá grandes
implicações associadas à logística, conceito que a geografia reinterpreta e
utiliza para captar a essência de grande parte das movimentações políticas e
corporativas.
Por exemplo, será necessário estabelecer conexões entre a Amazônia
e outras regiões para que a produção tenha fluidez e isso poderá conduzir ao
surgimento de uma rede de transportes corporativa financiada com dinheiro
público para servir a clusters de usinas. Muitos grupos usineiros têm
participação de empresas multinacionais. Então, há o risco de este processo se
destinar essencialmente à transferência de lucro para estes agentes.
A produção sucroenergética demanda
especialização produtiva, ela promove o “alisamento” das áreas ocupadas,
eliminando a diversidade das atividades. Nesse sentido, sua inserção na
Amazônia pode ser algo extremamente perigoso, dando início a um processo de
descaracterização da região.
Além das questões ambientais e econômicas, há
também os aspectos culturais, que não podem ser ignorados. O Projeto de Lei se
refere à presença de mão de obra barata como um atributo de competitividade.
Trata-se de um ensaio do discurso que prega o ingresso da região amazônica no
leilão, que é a disputa por investimentos dos grupos usineiros. O próximo passo
será conceder benefícios fiscais e reproduzir a ideia de que a usina é igual a
desenvolvimento. Triste fim para uma região de potencial tão elevado.
IHU On-Line – Um dos
argumentos utilizados para a aprovação do Projeto de Lei é o de que o plantio
de cana-de-açúcar no Cerrado e na Amazônia Legal irá estimular a produção de
biocombustíveis no país. Qual a atual situação da produção de biocombustível no
país? Quais os objetivos de aumentá-la?
João Camelini – O
principal objetivo de expandir a produção de etanol é suprir a demanda externa,
que atualmente é potencial, mas que pode tornar-se real se o etanol passar a se
comportar formalmente como uma commodity. Na verdade, isso é uma aposta, pois a
atual relação custo/benefício para produção de açúcar é muito melhor que a do
etanol, mas este pode dar acesso a um mercado promissor no futuro. Hoje sua
função é atender o mercado interno e equilibrar o preço da gasolina. A
impressão geral dos produtores é que ele foi colocado em segundo plano após a
descoberta do pré-sal.
Eu não acredito que o plantio de
cana-de-açúcar no Cerrado e na Amazônia seja necessário para estimular a
produção de biocombustíveis, porque existem várias alternativas que podem ser
exploradas antes de se iniciar (ou intensificar, no caso do Cerrado) a ocupação
destas regiões. Com a crescente adoção da chamada agricultura de precisão, a
produtividade das áreas atualmente ocupadas pode aumentar significativamente,
bem como o raio de influência das usinas, que poderão buscar matéria-prima em
locais mais distantes devido à diminuição do tempo e custos envolvidos no
corte, carregamento e transporte da cana.
O desenvolvimento de novas
variedades, muito mais produtivas, associadas à diminuição do pisoteio pelo uso
racional da irrigação em lugar da circulação de veículos para aplicar corretivos
no solo, poderá resultar em talhões com ciclos de vida muito mais longos,
reduzindo sensivelmente o investimento em reformas.
Além disso, é possível utilizar
técnicas e equipamentos para recuperação de solos degradados e implementos de
sulcação profunda, elementos estes que permitem melhor retenção da água e
aproveitamento dos nutrientes, viabilizando a eliminação de terraços e novos
traçados das linhas de cana, aumentando o rendimento por hectare plantado.
Desse modo, áreas mal aproveitadas e próximas às existentes serão ativadas e o
financiamento destinado à fluidez da produção poderá ser bem inferior,
reduzindo a ociosidade das estruturas produtivas e de transporte.
IHU On-Line – Para
quais regiões do país a cana-de-açúcar está sendo expandida nos últimos anos?
João Camelini – Com
a saturação das terras no estado de São Paulo, o processo de desconcentração
espacial direcionou a expansão da produção de cana-de-açúcar para o
Centro-Oeste do país, especialmente para Goiás e Mato Grosso do Sul. Também há
vetores de ocupação em direção ao Triângulo Mineiro e norte do Paraná. Isso se
deve principalmente à proximidade com o grande mercado consumidor paulista,
para o qual as bases de distribuição foram inicialmente posicionadas, mas
também tem relação com o grande potencial de exportação do etanol. Esta
expectativa pela consolidação de um mercado externo vem atraindo investimentos
em infraestruturas para possibilitar a fluidez da produção até os portos.
IHU On-Line – Quais
são as alternativas econômicas e produtivas mais adequadas e adaptadas à Amazônia
e ao Cerrado?
João Camelini – Ao
contrário do que se pode imaginar, estas regiões possuem enorme potencial
econômico e podem ser aproveitadas de forma bastante lucrativa, beneficiando a
sociedade sem que isso represente grandes impactos sobre o meio ambiente. O
caminho para isso não tem necessariamente que passar pelo modelo agrícola
uniforme adotado no restante do país. Isso porque é preciso respeitar as
particularidades destas áreas preservadas. Acho que é fundamental a elaboração
de políticas públicas que estimulem a pesquisa da biodiversidade, o que poderia
resultar em muitas inovações de grande vulto.
Para isso, é preciso que sejam
oferecidas condições para assegurar e desburocratizar o direito à propriedade
intelectual, privilegiando investidores brasileiros. Isso é fundamental porque
nestas regiões há grandes oportunidades para a obtenção de produtos com alto
valor agregado, como fármacos inovadores, cosméticos e outros itens
diferenciados com selos de indicações geográficas. Estes poderiam ser
exportados por via aérea e o investimento nesse modal resultaria em melhores
condições para expandir e profissionalizar o turismo. Estas medidas poderiam
trazer a sinergia necessária para inibir práticas ilegais, já que a
fiscalização pública destas regiões é inviável devido às suas dimensões.
IHU On-Line – Como a
produção de biocombustíveis a partir da produção de cana-de-açúcar é abordada
no Plano Nacional de Energia – PNE para 2030?
João Camelini – Espera-se
que a participação da cana-de-açúcar e derivados na matriz energética brasileira
chegue a 19%, ficando somente atrás do petróleo. Fica evidente a intenção de
dimensionar o potencial produtivo para alcançar excedentes destinados à
exportação de etanol, que está qualificado como alternativa aos combustíveis
fósseis, especialmente após o surgimento dos veículos flex fuel. Gostaria de
salientar o aumento da importância da bioeletricidade como produto, que pode
justificar a formação de clusters de usinas e viabilizar sua conexão com redes
de distribuição. Também é importante ressaltar a preocupação do documento com
as rotas de abastecimento, já que as condições logísticas são determinantes
para a competitividade do etanol.
O PNE apresenta alguns benefícios
estratégicos, sociais e ambientais do aumento da produção de etanol, mas é preciso
lembrar que o modelo de ocupação com cana-de-açúcar pode expor os municípios,
especialmente os pequenos, a condições de vulnerabilidade territorial. Por
exemplo, recentemente os municípios de Santa Helena-GO e Espírito Santo do
Turvo-SP passaram por grandes dificuldades quando suas respectivas usinas
faliram. Não pretendo afirmar que a cana-de-açúcar é necessariamente um mal,
pelo contrário, ela pode colaborar para o fortalecimento econômico regional,
mas é preciso harmonizar a instalação de novas usinas a um planejamento mais
amplo. É preciso ter um plano B.
* João Humberto Camelini é mestre em Geografia com dissertação
intitulada Regiões competitivas do etanol e vulnerabilidade territorial no
Brasil: o caso emblemático de Quirinópolis-GO, apresentada no Instituto de
Geociências – IG, da Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é doutorando
na mesma área de concentração, atua como Coordenador Técnico para
Geotecnologias e Infraestruturas na Tecgraf Tecnologia em Computação Gráfica
e como Professor Assistente na Faculdade Politécnica de Campinas e Faculdade de
Jaguariúna.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/12999
22/05/2013
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