Dênis de Moraes*
Uma análise crítica do consumismo
para defender que a superação progressiva dos ciclos de expansão do capital,
alicerçados nas máquinas persuasivas da mídia e da publicidade,
"remeterá à construção de alternativas sociopolíticas e culturais não
contaminadas pela lógica dos encantamentos que exacerba o gozo
descartável".
O espaço global de consumo nunca foi tão
exacerbado quanto agora. “Faz mais barulho do que todas as guerras e mais
algazarra do que todos os carnavais”, define Eduardo Galeano (1). As
estratégias persuasivas cobrem um espaço econômico de dimensões colossais.
Tal
amplitude deve-se, entre outros quesitos, à interconexão dos mercados, à
industrialização de bens materiais e imateriais em escala mundial e à potência
tecnológica da mídia, que detém a capacidade única de interligar o planeta
através de satélites, cabos de fibra óptica e redes infoeletrônicas.
No cenário
de globalização capitalista, incide o duplo papel da mídia: o de proeminente
agente econômico (os dez principais grupos do setor estão entre as 300 maiores
corporações não-financeiras do mundo) e o de incisivo agente ideológico
(procura unificar públicos e audiências em torno de determinadas significações,
sobretudo as que suscitam identificações sociais e psíquicas, direcionam pontos
de vista e influem em hábitos e valores para o mercado).
Como elemento propulsor da engrenagem midiática,
a indústria da publicidade é peça-chave na dinâmica global, pois favorece a
disseminação e as assimilações (por variadas que possam ser) de vasto leque de
bens e serviços. Suas ligações com a ordem do capital são indissociáveis, dado
que a lógica reprodutiva do modo de produção capitalista se vincula à espiral
do consumismo, ainda mais na era digital, que aumenta exponencialmente as
ofertas com lastro tecnológico.
Produtos e marcas de ponta passam a ser aqueles
com aceitação universal, relativizando-se a noção de territórios delimitados.
Pelos quatro quadrantes, as máquinas de publicidade e marketing refinam
estratégias e táticas para rastrear, identificar e tentar preencher
expectativas dos consumidores. Não hesitam em incorporar certas singularidades
socioculturais para fazer supor que resguardam localismos e regionalismos –
crença que, se absolutizada, só convence os adeptos do neoliberalismo, ou os
desavisados e ingênuos.
A moeda forte equivale à capacidade dos megagrupos
publicitários de disporem de redes que formulem e administrem, com desembaraço
logístico-operacional-criativo, campanhas em extensas geografias de consumo.
Para maximizar seus lucros e garantir retorno aos anunciantes, vêm travando uma
guerra sem tréguas pela hegemonia global.
As holdings recorrem a movimentos que
incluem fusões e aquisições, unificação de contas, integração dos serviços de
marketing, publicidade, relações públicas e imagem corporativa,
descentralização operacional, acordos regionais, multiplataformas multimídias e
redes sociais.
O suporte ideológico dessas investidas consiste
em elevar o consumo à condição de única atividade humana extensiva,
hipoteticamente credenciada a dar vazão às aspirações dos indivíduos. A
economia consumista respalda-se na geração contínua de necessidades e
compulsões.
Daí o propósito, assumido mas não declarado, de reconverter anseios
coletivos e carências individuais “na principal força impulsora e coordenadora
da reprodução sistêmica, da integração e da estratificação sociais e de
formação do indivíduo” (2). Ou seja, para que sejam reconhecidos socialmente,
os conteúdos simbólicos devem inserir-se na esfera do consumo, sendo adquiridos
e usufruídos como qualquer outra mercadoria.
Classes e segmentos sociais tornam-se componentes
intrínsecos de um processo de fixação de estilos de vida, modismos e mecanismos
projetivos, em constante gestação no âmbito da mídia e sob a égide das
espetacularizações publicitárias.
A esta configuração Douglas Kellner deu o
nome de “cultura da mídia”. Uma cultura estruturada em torno de idéias, imagens
e sons que, por meio de encenações espetacularizadas e apelos consumistas,
“ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer,
modelando opiniões políticas e comportamentos sociais e fornecendo o material
com que as pessoas forjam sua identidade” (3).
Partindo do entendimento de que o consumo é um
“grande emoliente, produtor ou encorajador de imobilismos”, Milton Santos
situa-o como “veículo de narcisismos, por meio dos seus estímulos estéticos,
morais, sociais”. Nas aparências exibidas por grande parte da mídia, o consumo
“promete as mesmas coisas que o narcisismo deseja – charme, beleza e
popularidade – através do consumo dos tipos ‘certos’ de bens e serviços” (4). O
culto à diferenciação em relação ao outro reflete-se em ímpetos de consumir que
reforçam o individualismo, o convencimento da superioridade pela posse e a
apologia da competição e da ascensão contínua.
As multiplicidades de ofertas dissociam-se de
destinos outros que não sejam a satisfação instantânea e a circulação de
grandes quantidades de objetos vendáveis. Frequentemente, descartam-se produtos
ou sentimentos que deixem de responder ao chamado da gratificação imediata das
pulsões.
O prazer deve ter breve duração, permitindo que, com a
descontinuidade, ressurjam modos de retomá-lo, especialmente através de peças
de fácil reposição, o modelo seguinte, a última moda que dá status e
reconhecimento. Em suma, regula-se a relação entre desejo, necessidade e satisfação
removendo-se aquilo que retarde a substituição de mercadorias e sensações.
Fredric Jameson sublinha que o consumismo se
credencia como o “ponto central de nosso sistema econômico, e também o modo de
vida para o qual somos todos os dias sem cessar treinados pela nossa cultura de
massas e indústria de entretenimento, com uma intensidade de imagens e de
mídias sem precedentes na história” (5).
Desempenha papel preponderante nos
esquemas individuais e grupais de auto-identificação, bem como na seleção e na
realização de políticas de vida. Segundo Jameson, na obsessão por
lucratividade, institui-se uma “lógica da coisificação” que transforma objetos
de qualquer tipo em mercadorias vendáveis. “Se esses objetos são estrelas de
cinema, sentimentos ou experiência política, não importa” (6).
Não me parece demais acentuar que a intenção
precípua da indústria da publicidade é colonizar espaços midiáticos e ambientes
públicos, reais ou virtuais, com a finalidade de assumir a dianteira dos
mercados e rentabilizar os investimentos, de preferência em muitos países
simultaneamente, de modo a reduzir gastos com criação e veiculação de
campanhas. O que está em jogo é racionalizar custos, ampliar incessantemente as
bases mercadológicas e fidelizar o maior contingente possível de consumidores.
Diante desse complexo quadro, fica claro que o
pensamento crítico precisa mobilizar energias na rejeição da idolatria do
mercado de consumo como síntese de organização social. É tarefa árdua. Os
principais canais de difusão, quase todos concentrados nas mãos de monopólios
privados, fomentam a mentalidade consumista, arraigada na própria sociedade e
sólida como fator de distinções e discriminações.
Sem embargo, é essencial
reverter a comercialização desenfreada e as formas de financeirização e
reificação da vida social. Isso exige interpelações, esclarecimentos e
mobilizações vigorosas para desmascarar a ideologia do consumo, cujo fim último
é suavizar e adocicar seus impactos sociais.
O desvelamento tem como um
de seus pontos de partida a percepção de que o capital e o sistema de consumo
não são capazes de resolver todas as contradições geradas pelas estruturas de
dominação, nem evitar tensões e entrechoques, inclusive entre o mundo de
possibilidades alardeadas pela publicidade, a vontade de consumir e os graves
descompassos socioeconômicos e culturais.
Galeano chama a atenção para algumas contradições
incômodas aos arautos do consumismo: “A expansão da demanda se choca com as
fronteiras impostas pelo mesmo sistema que a gera.
O sistema precisa de
mercados cada vez mais abertos e mais amplos tanto quanto os pulmões
precisam de ar e, ao mesmo tempo, requer que estejam no chão, como estão, os
preços das matérias primas e da força de trabalho humana. (...) A maioria, que
contrai dívidas para ter coisas, termina tendo apenas dívidas para pagar suas
dívidas que geram novas dívidas, e acaba consumindo fantasias que, às vezes,
materializa cometendo delitos. O direito ao desperdício, privilégio de poucos,
afirma ser a liberdade de todos.” (7)
Conforme o argumento proverbial da retórica
dominante, o consumo poderia representar uma “instância de produção de
sentido”, na medida em que as escolhas dos indivíduos e grupos, expressas nos
atos de consumir, revelariam seus gostos e tendências.
Cabem questionamentos a
essa “verdade monumental”. Sabemos ser uma falácia imaginar, no viveiro de
desigualdades ao nosso redor, escolhas equitativas. Têm direito a elas,
sem limites, a minoria que acumula e lucra; não poucos se arriscam em
financiamentos e créditos a juros extorsivos; e quase a maioria simplesmente se
endivida a longo prazo, agravando suas vicissitudes.
Na pirâmide das
estratificações que se reproduzem, a cada faixa mencionada correspondem níveis
extremamente discriminados de possibilidades de acessos e usos – da opulência
privilegiada à precarização massificada dos proveitos. Sem contar que as opções
oferecidas aos consumidores, via de regra, são definidas por critérios, alvos e
metas estabelecidos pelas matrizes empresariais, em sintonia com conveniências
mercantis.
Na verdade, o que a ideologia consumista se esmera em dissimular são
seus efeitos colaterais: banaliza aspirações, dissolve bens simbólicos no puro
valor de troca e consagra exclusões numa sociedade guiada pelo que,
lucidamente, Milton Santos denominou de tirania do dinheiro.
Se quisermos superar, progressivamente, os ciclos
de expansão do capital alicerçados nas máquinas persuasivas da mídia e da
publicidade, o desafio prolongado e permanente remeterá à construção de
alternativas sociopolíticas e culturais não contaminadas pela lógica dos
encantamentos que exacerba o gozo descartável.
Para liberar potencialidades
adormecidas, como nos sugere Marx, teremos que demonstrar condições para
articular ideários e ações, consolidar resistências, organizar e fortalecer o
respaldo social, bem como agregar consciências na batalha das ideias, em favor
dos direitos da cidadania, da divisão equânime de riqueza e renda, da
socialização da informação veraz, da diversidade cultural e das partilhas
justas do conhecimento e do progresso tecnocientífico.
Referências citadas:
(1) Eduardo
Galeano, “O império do consumo”, Carta Maior, 17 de janeiro de 2007,
disponível em http://www.cartamaior.com.br.
(2) Zygmunt
Bauman. Vida de consumo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica,
2007, p. 47.
(3) Douglas Kellner, A
cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001, p. 9.
(4) Milton Santos, Por uma
outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de
Janeiro: Record, 2000, p. 49.
(5) Fredric Jameson, A cultura do dinheiro:
ensaios sobre a globalização. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 56.
(6) Fredric Jameson, “Falso movimento”
(entrevista a Marcelo Rezende). Folha de S. Paulo, 19 de novembro de
1995.
(7) Eduardo Galeano, “O império do consumo”, ob.
cit.
* Dênis de Moraes é doutor
em Comunicação e Cultura pela UFRJ (1993) e pós-doutor pelo Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina, 2005). Atualmente, é
professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF e
pesquisador do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Autor de mais de 20
livros publicados no Brasil, na Espanha, na Argentina e em Cuba, entre os quais
Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da
comunicação (com Ignacio Ramonet e Pascual Serrano, 2013), Vozes
abertas da América Latina (2011), La cruzada de los medios
en América Latina (2011), Mutaciones de lo visible:
comunicación y procesos culturales en la era digital (2010), A
batalha da mídia (2009), Cultura mediática y poder mundial (2006), Sociedade
midiatizada (2006) e Por uma outra comunicação (2003).
Pela Editora Expressão Popular publicou A esquerda e o golpe de
64 (2011).
Fonte:http://editora.expressaopopular.com.br/batalha-das-ideias/o-consumo-faz-mais-barulho-do-que-guerras
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