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quarta-feira, 15 de maio de 2013

O CONSUMO FAZ MAIS BARULHO DO QUE AS GUERRAS



Dênis de Moraes* 
 
Uma análise crítica do consumismo para defender que a superação progressiva dos ciclos de expansão do capital,  alicerçados nas máquinas persuasivas da mídia e da publicidade, "remeterá à construção de alternativas sociopolíticas e culturais não contaminadas pela lógica dos encantamentos que exacerba o gozo descartável".

  
O espaço global de consumo nunca foi tão exacerbado quanto agora. “Faz mais barulho do que todas as guerras e mais algazarra do que todos os carnavais”, define Eduardo Galeano (1). As estratégias persuasivas cobrem um espaço econômico de dimensões colossais. 

Tal amplitude deve-se, entre outros quesitos, à interconexão dos mercados, à industrialização de bens materiais e imateriais em escala mundial e à potência tecnológica da mídia, que detém a capacidade única de interligar o planeta através de satélites, cabos de fibra óptica e redes infoeletrônicas.

No cenário de globalização capitalista, incide o duplo papel da mídia: o de proeminente agente econômico (os dez principais grupos do setor estão entre as 300 maiores corporações não-financeiras do mundo) e o de incisivo agente ideológico (procura unificar públicos e audiências em torno de determinadas significações, sobretudo as que suscitam identificações sociais e psíquicas, direcionam pontos de vista e influem em hábitos e valores para o mercado).

Como elemento propulsor da engrenagem midiática, a indústria da publicidade é peça-chave na dinâmica global, pois favorece a disseminação e as assimilações (por variadas que possam ser) de vasto leque de bens e serviços. Suas ligações com a ordem do capital são indissociáveis, dado que a lógica reprodutiva do modo de produção capitalista se vincula à espiral do consumismo, ainda mais na era digital, que aumenta exponencialmente as ofertas com lastro tecnológico.

Produtos e marcas de ponta passam a ser aqueles com aceitação universal, relativizando-se a noção de territórios delimitados. Pelos quatro quadrantes, as máquinas de publicidade e marketing refinam estratégias e táticas para rastrear, identificar e tentar preencher expectativas dos consumidores. Não hesitam em incorporar certas singularidades socioculturais para fazer supor que resguardam localismos e regionalismos – crença que, se absolutizada, só convence os adeptos do neoliberalismo, ou os desavisados e ingênuos.

A moeda forte equivale à capacidade dos megagrupos publicitários de disporem de redes que formulem e administrem, com desembaraço logístico-operacional-criativo, campanhas em extensas geografias de consumo. Para maximizar seus lucros e garantir retorno aos anunciantes, vêm travando uma guerra sem tréguas pela hegemonia global.

As holdings recorrem a movimentos que incluem fusões e aquisições, unificação de contas, integração dos serviços de marketing, publicidade, relações públicas e imagem corporativa, descentralização operacional, acordos regionais, multiplataformas multimídias e redes sociais.

O suporte ideológico dessas investidas consiste em elevar o consumo à condição de única atividade humana extensiva, hipoteticamente credenciada a dar vazão às aspirações dos indivíduos. A economia consumista respalda-se na geração contínua de necessidades e compulsões. 

Daí o propósito, assumido mas não declarado, de reconverter anseios coletivos e carências individuais “na principal força impulsora e coordenadora da reprodução sistêmica, da integração e da estratificação sociais e de formação do indivíduo” (2). Ou seja, para que sejam reconhecidos socialmente, os conteúdos simbólicos devem inserir-se na esfera do consumo, sendo adquiridos e usufruídos como qualquer outra mercadoria.

Classes e segmentos sociais tornam-se componentes intrínsecos de um processo de fixação de estilos de vida, modismos e mecanismos projetivos, em constante gestação no âmbito da mídia e sob a égide das espetacularizações publicitárias. 

A esta configuração Douglas Kellner deu o nome de “cultura da mídia”. Uma cultura estruturada em torno de idéias, imagens e sons que, por meio de encenações espetacularizadas e apelos consumistas, “ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade” (3).

Partindo do entendimento de que o consumo é um “grande emoliente, produtor ou encorajador de imobilismos”, Milton Santos situa-o como “veículo de narcisismos, por meio dos seus estímulos estéticos, morais, sociais”. Nas aparências exibidas por grande parte da mídia, o consumo “promete as mesmas coisas que o narcisismo deseja – charme, beleza e popularidade – através do consumo dos tipos ‘certos’ de bens e serviços” (4). O culto à diferenciação em relação ao outro reflete-se em ímpetos de consumir que reforçam o individualismo, o convencimento da superioridade pela posse e a apologia da competição e da ascensão contínua.

As multiplicidades de ofertas dissociam-se de destinos outros que não sejam a satisfação instantânea e a circulação de grandes quantidades de objetos vendáveis. Frequentemente, descartam-se produtos ou sentimentos que deixem de responder ao chamado da gratificação imediata das pulsões. 

O prazer deve ter breve duração, permitindo que, com a descontinuidade, ressurjam modos de retomá-lo, especialmente através de peças de fácil reposição, o modelo seguinte, a última moda que dá status e reconhecimento. Em suma, regula-se a relação entre desejo, necessidade e satisfação removendo-se aquilo que retarde a substituição de mercadorias e sensações.

Fredric Jameson sublinha que o consumismo se credencia como o “ponto central de nosso sistema econômico, e também o modo de vida para o qual somos todos os dias sem cessar treinados pela nossa cultura de massas e indústria de entretenimento, com uma intensidade de imagens e de mídias sem precedentes na história” (5). 

Desempenha papel preponderante nos esquemas individuais e grupais de auto-identificação, bem como na seleção e na realização de políticas de vida. Segundo Jameson, na obsessão por lucratividade, institui-se uma “lógica da coisificação” que transforma objetos de qualquer tipo em mercadorias vendáveis. “Se esses objetos são estrelas de cinema, sentimentos ou experiência política, não importa” (6).

Não me parece demais acentuar que a intenção precípua da indústria da publicidade é colonizar espaços midiáticos e ambientes públicos, reais ou virtuais, com a finalidade de assumir a dianteira dos mercados e rentabilizar os investimentos, de preferência em muitos países simultaneamente, de modo a reduzir gastos com criação e veiculação de campanhas. O que está em jogo é racionalizar custos, ampliar incessantemente as bases mercadológicas e fidelizar o maior contingente possível de consumidores.

Diante desse complexo quadro, fica claro que o pensamento crítico precisa mobilizar energias na rejeição da idolatria do mercado de consumo como síntese de organização social. É tarefa árdua. Os principais canais de difusão, quase todos concentrados nas mãos de monopólios privados, fomentam a mentalidade consumista, arraigada na própria sociedade e sólida como fator de distinções e discriminações.

Sem embargo, é essencial reverter a comercialização desenfreada e as formas de financeirização e reificação da vida social. Isso exige interpelações, esclarecimentos e mobilizações vigorosas para desmascarar a ideologia do consumo, cujo fim último é suavizar e adocicar  seus impactos sociais.

O desvelamento tem como um de seus pontos de partida a percepção de que o capital e o sistema de consumo não são capazes de resolver todas as contradições geradas pelas estruturas de dominação, nem evitar tensões e entrechoques, inclusive entre o mundo de possibilidades alardeadas pela publicidade, a vontade de consumir e os graves descompassos socioeconômicos e culturais.

Galeano chama a atenção para algumas contradições incômodas aos arautos do consumismo: “A expansão da demanda se choca com as fronteiras impostas pelo mesmo sistema que a gera.

O sistema precisa de mercados cada vez mais abertos e mais amplos tanto quanto os pulmões precisam de ar e, ao mesmo tempo, requer que estejam no chão, como estão, os preços das matérias primas e da força de trabalho humana. (...) A maioria, que contrai dívidas para ter coisas, termina tendo apenas dívidas para pagar suas dívidas que geram novas dívidas, e acaba consumindo fantasias que, às vezes, materializa cometendo delitos. O direito ao desperdício, privilégio de poucos, afirma ser a liberdade de todos.” (7)

Conforme o argumento proverbial da retórica dominante, o consumo poderia representar uma “instância de produção de sentido”, na medida em que as escolhas dos indivíduos e grupos, expressas nos atos de consumir, revelariam seus gostos e tendências.

Cabem questionamentos a essa “verdade monumental”. Sabemos ser uma falácia imaginar, no viveiro de desigualdades ao nosso redor, escolhas equitativas.  Têm direito a elas, sem limites, a minoria que acumula e lucra; não poucos se arriscam em financiamentos e créditos a juros extorsivos; e quase a maioria simplesmente se endivida a longo prazo, agravando suas vicissitudes.

Na pirâmide das estratificações que se reproduzem, a cada faixa mencionada correspondem níveis extremamente discriminados de possibilidades de acessos e usos – da opulência privilegiada à precarização massificada dos proveitos. Sem contar que as opções oferecidas aos consumidores, via de regra, são definidas por critérios, alvos e metas estabelecidos pelas matrizes empresariais, em sintonia com conveniências mercantis.

Na verdade, o que a ideologia consumista se esmera em dissimular são seus efeitos colaterais: banaliza aspirações, dissolve bens simbólicos no puro valor de troca e consagra exclusões numa sociedade guiada pelo que, lucidamente, Milton Santos denominou de tirania do dinheiro.

Se quisermos superar, progressivamente, os ciclos de expansão do capital alicerçados nas máquinas persuasivas da mídia e da publicidade, o desafio prolongado e permanente remeterá à construção de alternativas sociopolíticas e culturais não contaminadas pela lógica dos encantamentos que exacerba o gozo descartável. 

Para liberar potencialidades adormecidas, como nos sugere Marx, teremos que demonstrar condições para articular ideários e ações, consolidar resistências, organizar e fortalecer o respaldo social, bem como agregar consciências na batalha das ideias, em favor dos direitos da cidadania, da divisão equânime de riqueza e renda, da socialização da informação veraz, da diversidade cultural e das partilhas justas do conhecimento e do progresso tecnocientífico.

Referências citadas:

(1)    Eduardo Galeano, “O império do consumo”, Carta Maior, 17 de janeiro de 2007, disponível em http://www.cartamaior.com.br.
(2)    Zygmunt Bauman. Vida de consumo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2007, p. 47.
(3) Douglas Kellner, A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001, p. 9.
(4) Milton Santos, Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 49.
(5) Fredric Jameson, A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 56.
(6) Fredric Jameson, “Falso movimento” (entrevista a Marcelo Rezende). Folha de S. Paulo, 19 de novembro de 1995.
(7) Eduardo Galeano, “O império do consumo”, ob. cit.

* Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ (1993) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina, 2005). Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF e pesquisador do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Autor de mais de 20 livros publicados no Brasil, na Espanha, na Argentina e em Cuba, entre os quais Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da comunicação (com Ignacio Ramonet e Pascual Serrano, 2013), Vozes abertas da América Latina (2011), La cruzada de los medios en América Latina (2011), Mutaciones de lo visible: comunicación y procesos culturales en la era digital (2010), A batalha da mídia (2009), Cultura mediática y poder mundial (2006), Sociedade midiatizada (2006) e Por uma outra comunicação (2003). Pela Editora Expressão Popular publicou A esquerda e o golpe de 64 (2011).


Fonte:http://editora.expressaopopular.com.br/batalha-das-ideias/o-consumo-faz-mais-barulho-do-que-guerras
 

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