A jornalista Vera Gertel
contextualiza a efervescência do teatro brasileiro antes e depois do golpe de
1964, fala das contradições políticas de Getúlio, e descreve porque optou em
enfrentar a ditadura.
Eduardo Campos Lima, de São
Paulo (SP)
Eles Não Usam Black-tie, com Lélia Abramo, em montagem de 1958
Foto: Arquivo Vera Gertel
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O livro Um gosto amargo de bala,
autobiografia da atriz, jornalista e militante Vera Gertel, narra uma parte
importante da história da esquerda brasileira entre os anos 1930 e 1970. Filha
de militantes do Partido Comunista, desde a juventude Vera atuou na esfera
cultural, fundando com os companheiros do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho – com quem foi casada – o
Teatro Paulista do Estudante (TPE), ainda nos anos 1950.
Capa do livro de Vera Gertel - Foto: Divulgação |
Trabalhou como atriz no Teatro de
Arena de São Paulo, com o qual o TPE se fundiu, e juntou-se ao Centro Popular
de Cultura (CPC), iniciativa de radicalização política impulsionada por
artistas e intelectuais comunistas, no começo dos anos de 1960. Após o golpe de
1964, aproximou-se da luta armada, dando apoio à ação de antigos companheiros
como Joaquim Câmara Ferreira, seu padrinho, e Carlos Marighella. Nessa fase,
iniciou sua carreira de jornalista e deixou de atuar nos palcos.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Vera Gertel faz uma análise dos
caminhos da esquerda, na cultura e na política, antes e depois do golpe de
1964.
Brasil de Fato – A Ditadura
Vargas inspira, muitas vezes, visões ambíguas na esquerda, já que foi um
período em que houve alguns avanços importantes na área trabalhista e, ao mesmo
tempo, um forte anticomunismo. Que balanço você faz da relação do PCB com
Getúlio Vargas?
Vera Gertel – Não
é uma pergunta fácil de responder. Primeiro, porque eu era muito menina, sequer
militava. Segundo, só a distância no tempo nos permite uma análise política
mais condizente com a realidade vivida na época.
Getúlio se inspirava no fascista
italiano Mussolini para implantar um nacional socialismo de direita e,
portanto, nada democrático, com controle sobre sindicatos pelegos. Ao mesmo
tempo, os comunistas exigiam, sob a sigla da Aliança Nacional Libertadora
(ANL), um programa bem mais amplo, como anulação das dívidas das nações,
nacionalização das empresas públicas, distribuição de terras latifundiárias
para os camponeses e proteção ao pequeno e médio proprietário. A ANL era uma
frente ampla e para que tudo isso existisse seria necessário um grande apoio
popular, do qual Getúlio tinha medo, por receio ao comunismo.
Do meu ponto de vista, que não sou
historiadora, ele acabou metendo os comunistas na cadeia para poder seguir
sozinho sua linha de caudilho. Afinal, sempre foi um deles. Donde a relação de
Getúlio com o PCB ter sido sempre ambígua. De um lado, Getúlio ditador, pondo
partidos e líderes populares na cadeia. De outro, os comunistas, com uma
orientação dita internacionalista mas, que na verdade, seguia diretrizes de
Moscou. E em outros momentos, em
que Getúlio não só precisava como merecia o apoio dos
comunistas, estes, por erro histórico, apoiaram sua renúncia, que resultou em
seu suicídio.
Brasil de Fato – Desde muito
jovem, sua militância foi ligada ao comitê cultural do PCB. Quais eram as
perspectivas de trabalho dos comunistas para a área da cultura, na década de
1950? Havia uma linha clara?
Vera Gertel – Não.
O PCB não tinha uma linha clara para a cultura. Acontecia de haver comunistas
dentro da cultura e das artes brasileiras. E, portanto, uma visão mais
revolucionária. Foi o que aconteceu com nossa célula cultural, da qual fazíamos
parte eu, Oduvaldo Vianna Filho e Gianfrancesco Guarnieri, que passou a ter a
atenção do Partido a partir do momento em que fomos atuar no teatro. Não chegou
a ser uma diretriz do Partido, mas era um campo em que nós, comunistas,
atuamos.
Brasil de Fato – O que liam
e debatiam os jovens artistas e militantes do Teatro Paulista do Estudante, em
um tempo de influxo, no Brasil, de teóricos marxistas fundamentais?
Vera Gertel – O
que nós líamos e debatíamos naquele processo de aprendizado sobre como atuar
politicamente dentro do teatro era uma mistura impressionante. De Marx a
Lukács, Brecht e Piscator, todos os mestres do chamado teatro atuante e
popular. O teatro feito para pensar, sem perder de vista seu entretenimento.
Quer dizer, ninguém vai ao teatro só para pensar. É preciso fazer o espectador
pensar enquanto ele se delicia com o que se passa num palco ou numa arena.
Jean Paul Sartre também foi um
grande complicador, porque sua filosofia, em termos grosseiros, privilegiava o
indivíduo mais que o coletivo. Mas ao mesmo tempo ele era um tremendo
intelectual atuante, que comparecia aos protestos e desfilava pelas ruas com
estudantes, etc.
Eles Não Usam Black-tie, com Lélia Abramo, em montagem de 1958
Foto: Arquivo Vera Gertel
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Brasil de Fato – A fusão
com o Teatro de Arena de São Paulo determinou que tipo de transformações no
trabalho e nas perspectivas do TPE?
Vera Gertel – De início,
a fusão não implicou em nada que tivesse a ver com nossa visão de teatro
político e popular. Fazíamos peças, comédias, bem aburguesadas, apenas para
distrair o público e fazer render uma bilheteria da qual sobrevivíamos,
ganhando um salário mínimo. Isso na década de 1950. O que não impedia que
autores como Guarnieri e Vianna começassem a escrever peças mais condizentes
com o que pensavam que devia ser denunciado. Assim, com a montagem de Eles
não usam black-tie, do Guarnieri, em que o protagonista é um fura-greve
que mora na favela, pela primeira vez no teatro brasileiro estávamos falando do
povo e não das elites.
Brasil de Fato – Como se
dava a relação entre os integrantes do Teatro de Arena, do CPC e do MCP? Qual
avaliação você faz, hoje, das formulações e da prática dessas três propostas da
esquerda cultural do início dos anos 1960?
Vera Gertel – O
Teatro de Arena de São Paulo nada teve a ver com a formação dos Centros
Populares de Cultura (CPCs), a não ser o fato de alguns de seus membros, como
Oduvaldo Vianna Filho e Chico de Assis, serem oriundos do Arena e fundarem no
Rio de Janeiro o primeiro CPC, ligado à UNE.
Apesar de o Teatro de Arena viajar
por todo o Brasil, levando teatro a seus nichos mais recônditos, a lugares em
que sequer tinham visto um circo, Vianna considerava que ele era muito pequeno
para ser popular. Restou saber o que fosse verdadeiramente um teatro popular. A
fim de atingir um público mais popular, iam fazer teatro nas favelas em cima de
um caminhão, mas na verdade não conseguiam conscientizar ninguém.
Mas não havia só teatro nos CPCs,
havia o CPC volante, que saiu pelo Brasil fundando outros CPCs estudantis.
Havia coleções de livros populares sobre nossos maiores problemas nacionais,
cinema politizante e muito mais. Quando veio o golpe de 1964 eu, por exemplo,
ensaiava no teatro que a UNE estava construindo, em sua famosa sede da Praia do
Flamengo, uma peça do Vianna sobre reforma agrária, chamada Os Azeredo mais os
Benevides, sob a direção de Nelson Xavier, outro oriundo do Teatro de Arena de
São Paulo.
Brasil de Fato – Você
relata que o PCB estabeleceu como reação ao golpe de 1964 a tática de recuo
organizado. Os artistas e intelectuais que passaram a se manifestar em termos
de claro recuo revisionista, a partir dali, o fizeram motivados pela
determinação do Partido?
Vera Gertel – Os comunistas
pertencentes ao Partido sempre obedeceram suas ordens. Nunca esta premissa me
pareceu tão verdadeira quanto a obediência a um partido. Mas não deixava de
haver descontentamento, porque todos os seus militantes acreditaram nas
palavras do Comitê Central de que o Jango tinha um esquema militar suficiente
para impedir qualquer golpe de Estado. Não tinha. Àquela altura, a direita era
mais forte e apoiada pela política de segurança do continente latino-americano
exigida pelos EUA, dentro do contexto da Guerra Fria.
Fonte:http://www.brasildefato.com.br/node/12843
08/05/2013
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