Para juiz, internação compulsória não se trata de
medida em prol da saúde, mas de higienização em favor de interesses econômicos.
Judiciário contribui para a violação de direitos.
Aline Scarso,da Redação
A medida que autoriza a internação compulsória de
usuários de crack no estado de São Paulo é considerada um retorno aos séculos
XIX e XX “quando se internavam os indesejáveis à ordem política a pretexto de
curá-los”. A opinião é do juiz de Direito e membro da Associação Juízes para a
Democracia, João Batista Damasceno, crítico do papel que o Judiciário deve
cumprir na tríade com o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) no caso das internações contra a vontade dos viciados.
Damasceno chama a atenção para o fato de que não é
possível garantir a lisura dos laudos médicos. Outra questão é que a lei que
regulamenta a Reforma Psiquiátrica, de 2001 – e é base da resolução do governo
paulista que autoriza a internação compulsória – não se refere, em nenhum
momento, a usuários de drogas, mas a pessoas com transtornos mentais.
Segundo o juiz, na aplicação dessa medida o
Judiciário deve servir como salvaguarda para as violações de direitos,
contribuindo para uma prática higienista na cidade. Os juízes não têm mesmo,
segundo Damasceno, competência ordinária e conhecimento sobre os
estabelecimentos para onde estão autorizando os confinamentos. “A política que
se tem implementado em desfavor destas pessoas é equivalente às que o
nazifascismo promoveu com aqueles que consideravam não serem dignos de qualquer
direito, nem o de viver”, pontua.
Confira abaixo a entrevista.
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João Batista Damasceno Foto: Reprodução | | | | | |
"Voltamos ao século XIX ou início do século XX,
quando se internavam os indesejáveis à ordem
política a pretexto de curá-los"
Brasil de Fato: Qual o cenário das políticas
públicas de enfrentamento ao uso de crack no Brasil?
João Batista Damasceno: A conduta das autoridades
públicas tem mudado de estado para estado. Nas capitais do Rio de Janeiro e São
Paulo, a ação das autoridades tem sido mais intensa. Mas, em todo o Brasil, se
tem praticado este tipo de violação dos indivíduos tratados como indesejáveis
aos olhos dos interesses da classe dominante.
A possibilidade de internação compulsória de
pessoas por motivos diversos deixou a comunidade psiquiátrica e os empresários
de clínicas psiquiátricas em euforia. Trata-se de uma maneira de confinar
pessoas, sem que estejam em estado de crise, e mantê-las internadas contra suas
vontades. Claro que isto não se faz sem custeio e o que muitas “clínicas”
buscam é o lucro decorrente deste tipo de intervenção.
A internação compulsória de pessoa acometida de
transtorno mental, que somente se pode realizar com autorização judicial,
difere da internação involuntária [a pedido da família], que se faz para
atender à necessidade imediata de ajuda a quem esteja demandando socorro. A
diferença pode estar no momento posterior ao socorro. Já na internação
compulsória, a vontade do internado continua a ser desconsiderada mesmo se
voltar a ter condições de manifestá-la. É este tipo de internação que se tem
feito pelo Brasil com as pessoas usuárias de drogas, a pretexto de que estão
acometidas de transtorno mental e para salvá-las do seu uso.
Mas os usuários das drogas consideradas mais leves
ou das drogas chamadas lícitas não têm sido objeto destas condutas. A questão
está diretamente relacionada com a classe e o status dos indivíduos na
sociedade. A Lei da Reforma Psiquiátrica, 10.216 de 2001, foi um retrocesso na
questão. Voltamos ao século XIX ou início do século XX, quando se internavam os
indesejáveis à ordem política a pretexto de curá-los. Lima Barreto e o líder da
Revolta da Chibata João Cândido estiveram em manicômio. O médico Juliano
Moreira atestou que João Cândido era um líder rebelde e não deveria ser mantido
em manicômio, possibilitando seu julgamento e absolvição dois anos após a
Revolta da Chibata. De forma diferente, poderia ter ficado confinado por toda a
vida.
Brasil de Fato: E qual tem sido o papel do
Judiciário, meritíssimo?
João Batista Damasceno: O Judiciário no Brasil tem
corroborado com as políticas violadoras dos direitos humanos. Não há um período
em nossa história em que tenha agido diferente. Na Colônia os juízes ordinários
eram os presidentes das Câmaras das Vilas eleitos pelos proprietários, no
Império eram oriundos da classe escravista, na Primeira República vinculados
aos coronéis, durante a ditadura Vargas admoestados pelo arbítrio, no regime
militar além de sujeitos a cassações, prisões e torturas participaram do
projeto de “segurança e desenvolvimento” em prejuízo das liberdades. Após a
Constituição de 1988 há garantias e possibilidade de funcionamento em prol da
dignidade da pessoa humana, mas as condições históricas de formação do Poder
Judiciário no Brasil ainda tornam os juízes vinculados ao poder político e
interesses econômicos da classe dominante. Muitas decisões reproduzem trechos
de discursos oficiais ou editoriais televisivos. Os juízes, em regra, se
vinculam aos interesses ideológicos da classe dominante e fundamentam suas decisões
em tais retóricas, apartados da ordem jurídica.
Brasil de Fato: Do ponto de vista dos direitos
humanos, a internação compulsória fere a liberdade do indivíduo de decidir
sobre o próprio corpo, ainda que se ressalve que o mesmo não tenha condições
psicológicas para decidir sobre si mesmo?
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"Tem-se desconsiderado que não é a droga que leva à depressão. O processo é o contrário" - Foto: Marcelo Camargo/ABr |
João Batista Damasceno: A lei 10.216, de 2001 [que
regulamenta e institui a Reforma Psiquiátrica], autoriza a internação
involuntária ou compulsória tão somente de pessoas acometidas de transtorno
mental. Mas, se tem internado indiscriminadamente usuários de drogas,
notadamente de crack, sob o argumento de que um em cada dois dependentes químicos
apresenta algum transtorno mental, e que lhes é comum a depressão. Tem-se
desconsiderado que não é a droga que leva à depressão. O processo é o
contrário. Nenhuma sociedade se constituiu sem o uso de drogas em suas
festividades e cerimônias. Na tradição cristã diz-se que o primeiro milagre de
Cristo foi a transformação de água em droga, ou seja, em vinho. Mas as drogas
sempre estiveram relacionadas às cerimônias, notadamente religiosas, às
celebrações e às alegrias. Somente a nossa sociedade difundiu o uso da droga
para a busca do prazer. O problema não está no uso que se faz da droga ou nas
consequências posteriores. Nosso problema está num modelo
econômico-político-social que produz a insatisfação, a exclusão e a
infelicidade e propicia a busca do prazer por meio do consumo de drogas lícitas
ou ilícitas. O usuário de crack, por sua maior vulnerabilidade e desprestígio
social, está mais sujeito às violações aos seus direitos de pessoa humana. O
mesmo comportamento não se tem com usuários de outras drogas, notadamente as
lícitas.
Brasil de Fato: Mas há inconstitucionalidade na
medida?
João Batista Damasceno: A internação, seja involuntária
ou compulsória, somente se pode realizar quando os recursos extra-hospitalares
se mostrarem insuficientes, e quando autorizada. O tratamento tem de visar,
como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio. Além
disso, o tratamento, em regime de internação, há de ser estruturado de forma a
oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais,
incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais,
de lazer e outros. É o que diz a lei que a autoriza. A lei veda a internação de
pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características
asilares como se tem feito. A internação involuntária deve ser comunicada ao
Ministério Público Estadual no prazo de 72 horas, mas inexiste no MP órgãos
encarregados de receber tal comunicação. A internação compulsória, de pessoas
acometidas de transtorno psiquiátrico, há de ser determinada por juiz
competente para a causa, que há de levar em conta as condições de segurança do
estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e
funcionários. Mas, juízes designados por administrações de tribunais vinculados
aos governadores e prefeitos, sem que tenham competência ordinária para a
matéria, as autorizam sem conhecerem os estabelecimentos para onde estão
autorizando os confinamentos. Então, a internação de usuário de crack ou outras
drogas, a pretexto de serem pessoas acometidas de transtorno mental, é uma
flagrante ilegalidade que viola a ordem jurídica e constitucional.
Brasil de Fato: O senhor acredita que esta
medida signifique uma judicialização da saúde, especificamente em relação à
saúde mental?
João Batista Damasceno: As medidas que se têm tomado não
representam judicialização da saúde. A judicialização da política, das relações
sociais ou da saúde é um processo pelo qual se busca por meio do Poder
Judiciário a satisfação de um direito ou interesse não contemplado por quem
deveria implementá-lo. Ainda que o Judiciário esteja autorizando a internação
compulsória de usuários de crack, com fundamento em lei que autoriza tão
somente a internação de pessoas acometidas de transtorno mental, não se está
diante da busca do Judiciário para implementação de direitos, mas como
salvaguarda para suas violações. Não se trata de medida em prol da saúde.
Mas de higienização em favor de interesses econômicos. Se o Judiciário
continuar a atuar em conjunto com o Poder Executivo visando a violação dos
direitos das pessoas, ao invés de garanti-los, isto poderá resultar em sério
problema na sua relação com a sociedade.
Brasil de Fato: No caso de São Paulo, a ação
focará fundamentalmente a área da Cracolândia, localizada no centro de São
Paulo, e alvo do mercado imobiliário. Esse tipo de internação então pode
facilitar uma espécie de "higienização" do local? Como você avalia?
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"O momento é de entorpecimento pela ideologia e pelos interesses da classe dominante, em desfavor dos excluídos" - Foto: Marcelo Camargo/ABr |
João Batista Damasceno: Em todo o Brasil tem sido assim.
Em alguns estados isto é pior. Em São Paulo, a ação foca fundamentalmente a
área da Cracolândia, localizada no centro de São Paulo e alvo do mercado
imobiliário. No Rio de Janeiro, o primeiro momento foi de expulsão da população
de rua da faixa litorânea da Zona Sul da cidade. Esta atuação do Estado na Zona
Sul do Rio de Janeiro propiciou uma valorização imobiliária jamais vivenciada.
Naquele instante igualmente foram instaladas as Unidades de Polícia
Pacificadora, UPPs, visando ampliar as áreas edificáveis a fim de atender à
indústria da construção civil e especuladores imobiliários.
Trabalhadores que dormem nas ruas, pela dificuldade
de voltar para casa depois de jornada de trabalho, são admitidos no Rio de
Janeiro no centro da cidade, mas não na Zona Sul. Usuários de crack não são
admitidos sequer no centro da cidade, por isso foram para a periferia na Zona
Norte. Hoje, sequer na Zona Norte estão podendo ficar. Nas mesmas situações,
pessoas não têm sido objeto de qualquer ação estatal em áreas de pequeno valor
econômico, como a Baixada Fluminense no entorno da Baia de Guanabara, no Rio de
Janeiro. A política que se tem implementado em desfavor destas pessoas é
equivalente às que o nazifascismo promoveu com aqueles que consideravam não
serem dignos de qualquer direito, nem o de viver.
Brasil de Fato: O senhor acredita que pode
haver relação entre esse tipo de medida com as ações direcionadas à promoção da
Copa?
João Batista Damasceno: Sediar os jogos da Copa do Mundo
e as Olimpíadas é o maior tiro no pé que poderíamos ter dado. Os recursos
públicos que poderiam ser implementados em obras de infraestrutura, saúde e
educação estão sendo canalizados para o lucro da cartolagem e das empreiteiras.
Os orçamentos da União, dos estados e dos municípios estão sendo empregados em
sua maior parte com estas despesas, sem retorno para os cidadãos. Os vínculos
do Governo do Estado do Rio de Janeiro com empreiteiros, que em decorrência de
suas condutas em Paris, possibilitou que sejam chamados de integrantes da
“República do Guardanapo”, nos possibilita conhecer a que interesse servem. A
mesma empresa que atua no Rio de Janeiro está a serviço de governos em outros
estados. Também está atrelada a interesses escusos, como poderia ter comprovado
a “CPI do Cachoeira”, caso tivesse apurado com seriedade o que se evidenciava.
Os desmandos em desfavor da sociedade estão parcialmente cobertos pelos
guardanapos que ostentavam na cabeça, mas por serem curtos deixam parte do que
se faz à mostra.
Brasil de Fato: E para finalizarmos
meritíssimo, o Judiciário está prevendo a existência de algum tipo de
ilegalidade nesse tipo de internação, como a elaboração de laudos médicos
tendenciosos? Se sim, em que base pode julgar uma internação se não houver a
certeza de lisura em todo o processo?
João Batista Damasceno: As razões para julgar hão de ser
jurídicas. A racionalidade que se espera do Judiciário há de impor que decida
fundado no alegado e provado. Juízes quando aderem às razões de Estado ou em
colaboração com implementação de políticas públicas, acabam por endossar
ilegalidades. O Judiciário não há de ser um colaborador do Executivo, mas um
garantidor dos direitos de quem os detenha. Entretanto, Pinheirinho é um
exemplo emblemático de como as administrações dos tribunais têm agido em
parceria com interesses que não são da sociedade. A comunidade psiquiátrica
está eufórica com o poder que seus profissionais reconquistaram, mas a
possibilidade de abusos e tendenciosidades não está sendo percebida, nem mesmo
por alguns destes profissionais. O momento é de entorpecimento pela ideologia e
pelos interesses da classe dominante, em desfavor dos excluídos, notadamente
dos usuários de crack, considerados párias.
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Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/11664
22/01/2013