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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O LEGADO DE SABOTAGE, A SAUDADE DE MAURINHO


No dia 24 de janeiro de 2003 o maestro do Canão deixava nosso mundo. Ele seria, no dia seguinte, a atração surpresa em uma das atividades do Fórum Social Mundial, onde nascia o jornal Brasil de Fato

José Francisco Neto e Jorge Américo (Brasil de Fato) Igor Carvalho (Revista Fórum) da Reportagem



O rapper paulistano Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage. Foto: 13 Produções
Na altura do número 3.100 da Avenida Água Espraiada, no Brooklin, zona sul de São Paulo, uma porta de madeira é o elo entre a imagem projetada pelo poeta e a realidade.

Ali, na apertada, acanhada, acolhedora e mística favela do Canão, um corredor de aproximadamente 20 metros é o que liga todas as casas e serve de passagem aos moradores. No final dele, quatro jovens balançam o corpo ao som de País da fome, um dos sucessos musicais de Mauro Mateus dos Santos, o Maurinho, ou Sabotage.

O amor de Sabotage a sua comunidade o colocou no patamar de Alberto Caeiro, pseudônimo de Fernando Pessoa. Se o rio Tejo não é mais belo que o rio que corre pela aldeia do poeta português, também não há melhor lugar que a Favela do Canão. Com a força de sua música, Sabotage fez o pequeno vilarejo onde vivem 18 famílias ser quase tão conhecido quanto a Favela da Rocinha, com seus 70 mil habitantes.

Considerado uma lenda no movimento Hip Hop, Sabotage começou a carreira em 1998, fazendo parcerias com o grupo RZO [Rapaziada da Zona Oeste]. A partir daí, com estilo próprio de cantar e criatividade nas composições, o músico disparou até chegar às telas do cinema nacional. Participou do filme O Invasor (2001), de Beto Brant, e também de Estação Carandiru (2003), de Hector Babenco.

Sabotage ganhou, no final de 2002, o Prêmio Hutus como revelação do ano e personalidade do movimento Hip Hop. No entanto, a ascensão meteórica foi interrompida por quatro disparos à queima-roupa há dez anos. “Eu lembro até hoje o que o repórter falou na televisão: ‘Mauro Mateus dos Santos, conhecido como Sabotage, foi assassinado hoje por volta das seis da manhã’, lembra Wanderson Rocha, o Sabotinha, de 20 anos, filho mais velho do cantor.
  
Wanderson Rocha (Sabotinha) e Tamires Rocha, filhos de Sabotage.
Foto: Douglas Pereira Gomes
 
A filha do meio, Tamires Rocha, embora tivesse oito anos de idade, ainda recorda com detalhes aquela manhã do dia 24 de janeiro de 2003. Ela conta que estava junto de seu irmão se arrumando para ir à escola. “Foi aí que um vizinho nosso, o Diego, bateu na porta da nossa casa e disse que minha mãe tinha ligado e que era pra gente não sair. Foi quando, na televisão, falou ‘Sabotage’. O pai do Diego desligou a TV e falou pra gente subir para o quarto. Só que a televisão do quarto estava ligada, aí ouvimos a notícia. Meu pai tinha sido baleado”, lamenta Tamires.

Na data em que sofreu o atentado, Sabotage viajaria para Porto Alegre (RS), onde, no dia seguinte, seria atração surpresa em uma das atividades do Fórum Social Mundial. 

Coincidência ou não, no dia 25 de janeiro, em meio aos anseios dos povos por transformações estruturais na sociedade, nascia o jornal Brasil de Fato.

Exemplo 

Chamado Maestro do Canão, Sabotage colecionou afetos no lugar onde viveu. “Nossa comunidade passou a ser reconhecida depois das músicas dele. Ele falava nossa realidade”, relata Tatiane Cristina, 32, moradora do Canão e amiga do rapper desde a infância. “Ele nunca mudou o jeito dele. Sempre foi humilde”, conta Lucilene Santos Almeida, que cuida do único comércio do local, um boteco. “Eu vi ele escrevendo a música Respeito é pra quem tem. Nossa, Maurinho era foda, chega até a arrepiar”, diz emocionada Vilma Maria, 33, que diz se sentir privilegiada pelo legado que Sabotage deixou à comunidade. “As crianças hoje em dia levam como exemplo as músicas dele. A gente também mudou bastante. A gente leva o que ele deixou no coração como exemplo, e vamos passando para as nossas crianças”, diz.

Maria Dalva, viúva do rapper, faz papel dobrado na educação dos filhos. Preocupada com o futuro de Wanderson, Tamires e Larissa, ela enaltece a importância do exemplo deixado pelo marido. “Sempre tem alguém oferecendo um caminho errado, e nessas coisas de rua e de crime o pai sempre é mais ouvido do que a mãe. Então eu não sabia, muitas vezes, como resolver isso. Mas graças a Deus nunca aconteceu nada. A maior herança que ele deixou para os filhos é a imagem dele”, desabafa.

Sabota Versátil

O cabelo espetado – inspirado no rapper americano Coolie –, o flow (estilo melódico) peculiar, a paquera com o cinema e o linguajar típico da malandragem transformaram Sabotage em uma personalidade insubstituível no rap. Mas o que mais chamou atenção em seu trabalho foi a versatilidade e a capacidade de dialogar com outros ritmos musicais.

Tais qualidades são destacadas pelo documentarista Ivan Vale Ferreira, que vem trabalhando no documentário Sabotage, o maestro do Canão, que retrata a vida e carreira do rapper.

Ferreira compara a morte de Sabotage com a de renomados artistas. Para ele, Maurinho, como era conhecido entre os amigos, tinha muito a doar para a música brasileira. “Pra mim é como se ele fosse Cássia Eller, Chico Science, pessoas que morreram no auge da carreira. Essa talvez seja a maior falta que ele faz, por ter pensado muito em fazer coisas diferentes e não ter tido tempo sufi ciente para realizar. A música nacional foi quem mais perdeu”, ressalta.

O documentário, que sairá pela 13 Produções, tem previsão de ser lançado ainda neste semestre e trará depoimentos de diversos músicos e pessoas ligadas a ele. O objetivo, segundo Ferreira, é demonstrar “a importância desse artista que misturou estilos e se tornou uma lenda após sua morte."


Mais sobre o assunto: 


Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/11720
24/01/2013

EM CUBA, LULA PEDE FIM DO BLOQUEIO E AFIRMA QUE EUA “PERDERAM A GUERRA”


Ex-presidente brasileiro participou de conferência em homenagem a José Martí e se encontrou com os irmãos Castro.

 do Opera Mundi

Horas depois de ter se encontrado em Havana com o líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, o ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, criticou o bloqueio norte-americano à ilha caribenha. 

No discurso de encerramento da 3ª Conferência Internacional pelo Equilíbrio do Mundo, realizado na noite desta quarta-feira (30/01), o ex-presidente afirmou que a única razão para o embargo de 50 anos continuar existindo é a teimosia dos Estados Unidos em “não reconhecer que perdeu a guerra para Cuba”. As informações são da multiestatal Telesur e do Instituto Lula.

“Não existe mais nenhuma razão de se manter o bloqueio [de Cuba] a não ser a teimosia de quem não reconhece que perdeu a guerra, e perdeu a guerra para Cuba”, afirmou. “Espero que [o presidente reeleito dos EUA, Barack] Obama, neste mandato, tenha um olhar mais igualitário e mais justo para com nossa querida América Latina”, defendeu o ex-presidente. “Como sou otimista, eu acredito que um dia os Estados Unidos vão rever a sua posição, e espero que seja no governo Obama”, completou.

 No evento, que reuniu mais de 700 delegados de 41 países no Palácio de Convenções de Havana, Lula também defendeu o fortalecimento da integração latino-americana. “Vocês não podem voltar para suas casas e simplesmente colocar isso [a participação no evento] nas suas biografias. É necessário que vocês saiam daqui cúmplices e parceiros de uma coisa maior, de uma vontade de fazer alguma coisa juntos mesmo não estando reunidos”, disse aos presentes.

Lula participa de conferência em homenagem à José Martí e pede uma integração ainda maior do continente - Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula
A Conferência, terceira realizada em 10 anos, é patrocinada pela Oficina do Programa Martiano, que se propõe a debater internacionalmente a contribuição intelectual do herói da independência cubana, José Martí. O evento coincide com os 160 anos de Martí e com o aniversário de 60 anos da invasão do Quartel Moncada, um importante marco da revolução cubana, e reuniu cerca de 1500 participantes, dos quais 800 estrangeiros de 44 países. Na terça, o ex-presidente depositou flores no memorial de Martí, em Havana.

Em outro trecho do discurso, Lula defendeu o presidente da Bolívia, Evo Morales. “Quem imaginava que um índio, com cara de índio, jeito de índio, comportamento de índio, governaria um país e, mais do que isso, que seu governo daria certo?”, questionou. Lula afirmou que a direita brasileira queria que ele brigasse com Evo, quando este estatizou a empresa de gás boliviana, então operada pela brasileira Petrobras. “Aí eu pensei: eu não consigo entender como um ex-metalúrgico vai brigar com um índio da Bolívia”, contou o ex-presidente, sob os aplausos da plateia.

O ex-presidente também abordou temas como a mídia, ao afirmar que a interação permitida pelos meios de comunicação modernos, como a internet, abre grandes possibilidades ao processo de integração latino-americana: “Nunca tivemos tanta oportunidade de sermos tão independentes”. "Nem reclamo, porque no Brasil a imprensa gosta muito de mim", ironizou.

"Nasci assim, cresci assim e vou continuar assim, e isso os deixa muito nervosos", disse, sobre suas relações com a imprensa tradicional brasileira. Segundo Lula, o mesmo tipo de relação se aplica aos outros governos progressistas da América Latina: “Eles não gostam da esquerda, não gostam de [Hugo] Chávez, não gostam de [Rafael] Correa [presidente do Equador], não gostam de [José] Mujica [presidente do Uruguai], não gostam de Cristina [Kirchner, presidente da Argentina], não gostam de Evo Morales [presidente da Bolívia].

E não gostam não pelos nossos erros, mas pelos nossos acertos”, disse. Para Lula, as elites não gostam que pobre ande de avião, compre um carro novo ou tenha uma conta bancária.

Lula abriu o seu discurso pedindo um minuto de silêncio para as vítimas do incêndio em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e fez uma homenagem a Chávez, que se encontra internado em Havana, em tratamento contra um câncer na região pélvica. O ex-presidente afirmou estar usando uma Guayabera vermelha em sua homenagem.

Agenda

Lula também participou, nesta quarta, do lançamento do livro "Os últimos soldados da guerra fria", do escritor brasileiro Fernando Morais.  Não foram divulgados maiores detalhes sobre o encontro entre Lula e Fidel.

 
Fidel Castro e Lula se encontraram em Havana; ex-presidente brasileiro pediu fim do bloqueio norte-americano à ilha - Foto: Ricardo Stuckert/Istituto Lula
 
Pela manhã, o ex-presidente brasileiro também visitou o presidente Raúl Castro e acompanhou as obras do Porto de Mariel, destinado a ser uma "zona econômica exclusiva" na ilha, autorizada a receber capital estrangeiro.

O ex-presidente, em Havana desde segunda-feira (28), deve deixar Cuba em direção à República Dominicana, onde se encontrará com o presidente Danilo Medina Sánchez e o ex-presidente Leonel Fernández. No dia 2, Lula irá a Washington, onde no dia seguinte, fará o discurso de abertura em um evento do sindicato dos trabalhadores da indústria automobilística e aeroespacial.

31/01/2013 

SOB O PRETEXTO DA CURA


Para juiz, internação compulsória não se trata de medida em prol da saúde, mas de higienização em favor de interesses econômicos. Judiciário contribui para a violação de direitos.

 Aline Scarso,da Redação

A medida que autoriza a internação compulsória de usuários de crack no estado de São Paulo é considerada um retorno aos séculos XIX e XX “quando se internavam os indesejáveis à ordem política a pretexto de curá-los”. A opinião é do juiz de Direito e membro da Associação Juízes para a Democracia, João Batista Damasceno, crítico do papel que o Judiciário deve cumprir na tríade com o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no caso das internações contra a vontade dos viciados.

Damasceno chama a atenção para o fato de que não é possível garantir a lisura dos laudos médicos. Outra questão é que a lei que regulamenta a Reforma Psiquiátrica, de 2001 – e é base da resolução do governo paulista que autoriza a internação compulsória – não se refere, em nenhum momento, a usuários de drogas, mas a pessoas com transtornos mentais.

Segundo o juiz, na aplicação dessa medida o Judiciário deve servir como salvaguarda para as violações de direitos, contribuindo para uma prática higienista na cidade. Os juízes não têm mesmo, segundo Damasceno, competência ordinária e conhecimento sobre os estabelecimentos para onde estão autorizando os confinamentos. “A política que se tem implementado em desfavor destas pessoas é equivalente às que o nazifascismo promoveu com aqueles que consideravam não serem dignos de qualquer direito, nem o de viver”, pontua.

Confira abaixo a entrevista.

João Batista Damasceno  Foto: Reprodução


"Voltamos ao século XIX ou início do século XX,
quando se internavam os indesejáveis à ordem
política a pretexto de curá-los"



Brasil de Fato: Qual o cenário das políticas públicas de enfrentamento ao uso de crack no Brasil?
João Batista Damasceno: A conduta das autoridades públicas tem mudado de estado para estado. Nas capitais do Rio de Janeiro e São Paulo, a ação das autoridades tem sido mais intensa. Mas, em todo o Brasil, se tem praticado este tipo de violação dos indivíduos tratados como indesejáveis aos olhos dos interesses da classe dominante.
A possibilidade de internação compulsória de pessoas por motivos diversos deixou a comunidade psiquiátrica e os empresários de clínicas psiquiátricas em euforia. Trata-se de uma maneira de confinar pessoas, sem que estejam em estado de crise, e mantê-las internadas contra suas vontades. Claro que isto não se faz sem custeio e o que muitas “clínicas” buscam é o lucro decorrente deste tipo de intervenção.
A internação compulsória de pessoa acometida de transtorno mental, que somente se pode realizar com autorização judicial, difere da internação involuntária [a pedido da família], que se faz para atender à necessidade imediata de ajuda a quem esteja demandando socorro. A diferença pode estar no momento posterior ao socorro. Já na internação compulsória, a vontade do internado continua a ser desconsiderada mesmo se voltar a ter condições de manifestá-la. É este tipo de internação que se tem feito pelo Brasil com as pessoas usuárias de drogas, a pretexto de que estão acometidas de transtorno mental e para salvá-las do seu uso.
Mas os usuários das drogas consideradas mais leves ou das drogas chamadas lícitas não têm sido objeto destas condutas. A questão está diretamente relacionada com a classe e o status dos indivíduos na sociedade. A Lei da Reforma Psiquiátrica, 10.216 de 2001, foi um retrocesso na questão. Voltamos ao século XIX ou início do século XX, quando se internavam os indesejáveis à ordem política a pretexto de curá-los. Lima Barreto e o líder da Revolta da Chibata João Cândido estiveram em manicômio. O médico Juliano Moreira atestou que João Cândido era um líder rebelde e não deveria ser mantido em manicômio, possibilitando seu julgamento e absolvição dois anos após a Revolta da Chibata. De forma diferente, poderia ter ficado confinado por toda a vida.
Brasil de Fato: E qual tem sido o papel do Judiciário, meritíssimo?
João Batista Damasceno: O Judiciário no Brasil tem corroborado com as políticas violadoras dos direitos humanos. Não há um período em nossa história em que tenha agido diferente. Na Colônia os juízes ordinários eram os presidentes das Câmaras das Vilas eleitos pelos proprietários, no Império eram oriundos da classe escravista, na Primeira República vinculados aos coronéis, durante a ditadura Vargas admoestados pelo arbítrio, no regime militar além de sujeitos a cassações, prisões e torturas participaram do projeto de “segurança e desenvolvimento” em prejuízo das liberdades. Após a Constituição de 1988 há garantias e possibilidade de funcionamento em prol da dignidade da pessoa humana, mas as condições históricas de formação do Poder Judiciário no Brasil ainda tornam os juízes vinculados ao poder político e interesses econômicos da classe dominante. Muitas decisões reproduzem trechos de discursos oficiais ou editoriais televisivos. Os juízes, em regra, se vinculam aos interesses ideológicos da classe dominante e fundamentam suas decisões em tais retóricas, apartados da ordem jurídica.
Brasil de Fato: Do ponto de vista dos direitos humanos, a internação compulsória fere a liberdade do indivíduo de decidir sobre o próprio corpo, ainda que se ressalve que o mesmo não tenha condições psicológicas para decidir sobre si mesmo?

"Tem-se desconsiderado que não é a droga que leva à depressão.
O processo é o contrário" - Foto: Marcelo Camargo/ABr
 
João Batista Damasceno: A lei 10.216, de 2001 [que regulamenta e institui a Reforma Psiquiátrica], autoriza a internação involuntária ou compulsória tão somente de pessoas acometidas de transtorno mental. Mas, se tem internado indiscriminadamente usuários de drogas, notadamente de crack, sob o argumento de que um em cada dois dependentes químicos apresenta algum transtorno mental, e que lhes é comum a depressão. Tem-se desconsiderado que não é a droga que leva à depressão. O processo é o contrário. Nenhuma sociedade se constituiu sem o uso de drogas em suas festividades e cerimônias. Na tradição cristã diz-se que o primeiro milagre de Cristo foi a transformação de água em droga, ou seja, em vinho. Mas as drogas sempre estiveram relacionadas às cerimônias, notadamente religiosas, às celebrações e às alegrias. Somente a nossa sociedade difundiu o uso da droga para a busca do prazer. O problema não está no uso que se faz da droga ou nas consequências posteriores. Nosso problema está num modelo econômico-político-social que produz a insatisfação, a exclusão e a infelicidade e propicia a busca do prazer por meio do consumo de drogas lícitas ou ilícitas. O usuário de crack, por sua maior vulnerabilidade e desprestígio social, está mais sujeito às violações aos seus direitos de pessoa humana. O mesmo comportamento não se tem com usuários de outras drogas, notadamente as lícitas.
Brasil de Fato: Mas há inconstitucionalidade na medida?
João Batista Damasceno: A internação, seja involuntária ou compulsória, somente se pode realizar quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, e quando autorizada. O tratamento tem de visar, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio. Além disso, o tratamento, em regime de internação, há de ser estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer e outros. É o que diz a lei que a autoriza. A lei veda a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares como se tem feito. A internação involuntária deve ser comunicada ao Ministério Público Estadual no prazo de 72 horas, mas inexiste no MP órgãos encarregados de receber tal comunicação. A internação compulsória, de pessoas acometidas de transtorno psiquiátrico, há de ser determinada por juiz competente para a causa, que há de levar em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários. Mas, juízes designados por administrações de tribunais vinculados aos governadores e prefeitos, sem que tenham competência ordinária para a matéria, as autorizam sem conhecerem os estabelecimentos para onde estão autorizando os confinamentos. Então, a internação de usuário de crack ou outras drogas, a pretexto de serem pessoas acometidas de transtorno mental, é uma flagrante ilegalidade que viola a ordem jurídica e constitucional.
Brasil de Fato: O senhor acredita que esta medida signifique uma judicialização da saúde, especificamente em relação à saúde mental?
João Batista Damasceno: As medidas que se têm tomado não representam judicialização da saúde. A judicialização da política, das relações sociais ou da saúde é um processo pelo qual se busca por meio do Poder Judiciário a satisfação de um direito ou interesse não contemplado por quem deveria implementá-lo. Ainda que o Judiciário esteja autorizando a internação compulsória de usuários de crack, com fundamento em lei que autoriza tão somente a internação de pessoas acometidas de transtorno mental, não se está diante da busca do Judiciário para implementação de direitos, mas como salvaguarda para suas violações.  Não se trata de medida em prol da saúde. Mas de higienização em favor de interesses econômicos. Se o Judiciário continuar a atuar em conjunto com o Poder Executivo visando a violação dos direitos das pessoas, ao invés de garanti-los, isto poderá resultar em sério problema na sua relação com a sociedade.
Brasil de Fato: No caso de São Paulo, a ação focará fundamentalmente a área da Cracolândia, localizada no centro de São Paulo, e alvo do mercado imobiliário. Esse tipo de internação então pode facilitar uma espécie de "higienização" do local? Como você avalia?



"O momento é de entorpecimento pela ideologia e pelos interesses da classe
dominante, em desfavor dos excluídos" - Foto: Marcelo Camargo/ABr
João Batista Damasceno: Em todo o Brasil tem sido assim. Em alguns estados isto é pior. Em São Paulo, a ação foca fundamentalmente a área da Cracolândia, localizada no centro de São Paulo e alvo do mercado imobiliário. No Rio de Janeiro, o primeiro momento foi de expulsão da população de rua da faixa litorânea da Zona Sul da cidade. Esta atuação do Estado na Zona Sul do Rio de Janeiro propiciou uma valorização imobiliária jamais vivenciada. Naquele instante igualmente foram instaladas as Unidades de Polícia Pacificadora, UPPs, visando ampliar as áreas edificáveis a fim de atender à indústria da construção civil e especuladores imobiliários.
Trabalhadores que dormem nas ruas, pela dificuldade de voltar para casa depois de jornada de trabalho, são admitidos no Rio de Janeiro no centro da cidade, mas não na Zona Sul. Usuários de crack não são admitidos sequer no centro da cidade, por isso foram para a periferia na Zona Norte. Hoje, sequer na Zona Norte estão podendo ficar. Nas mesmas situações, pessoas não têm sido objeto de qualquer ação estatal em áreas de pequeno valor econômico, como a Baixada Fluminense no entorno da Baia de Guanabara, no Rio de Janeiro. A política que se tem implementado em desfavor destas pessoas é equivalente às que o nazifascismo promoveu com aqueles que consideravam não serem dignos de qualquer direito, nem o de viver.
Brasil de Fato: O senhor acredita que pode haver relação entre esse tipo de medida com as ações direcionadas à promoção da Copa?
João Batista Damasceno: Sediar os jogos da Copa do Mundo e as Olimpíadas é o maior tiro no pé que poderíamos ter dado. Os recursos públicos que poderiam ser implementados em obras de infraestrutura, saúde e educação estão sendo canalizados para o lucro da cartolagem e das empreiteiras. Os orçamentos da União, dos estados e dos municípios estão sendo empregados em sua maior parte com estas despesas, sem retorno para os cidadãos. Os vínculos do Governo do Estado do Rio de Janeiro com empreiteiros, que em decorrência de suas condutas em Paris, possibilitou que sejam chamados de integrantes da “República do Guardanapo”, nos possibilita conhecer a que interesse servem. A mesma empresa que atua no Rio de Janeiro está a serviço de governos em outros estados. Também está atrelada a interesses escusos, como poderia ter comprovado a “CPI do Cachoeira”, caso tivesse apurado com seriedade o que se evidenciava. Os desmandos em desfavor da sociedade estão parcialmente cobertos pelos guardanapos que ostentavam na cabeça, mas por serem curtos deixam parte do que se faz à mostra.
Brasil de Fato: E para finalizarmos meritíssimo, o Judiciário está prevendo a existência de algum tipo de ilegalidade nesse tipo de internação, como a elaboração de laudos médicos tendenciosos? Se sim, em que base pode julgar uma internação se não houver a certeza de lisura em todo o processo?
João Batista Damasceno: As razões para julgar hão de ser jurídicas. A racionalidade que se espera do Judiciário há de impor que decida fundado no alegado e provado. Juízes quando aderem às razões de Estado ou em colaboração com implementação de políticas públicas, acabam por endossar ilegalidades. O Judiciário não há de ser um colaborador do Executivo, mas um garantidor dos direitos de quem os detenha. Entretanto, Pinheirinho é um exemplo emblemático de como as administrações dos tribunais têm agido em parceria com interesses que não são da sociedade. A comunidade psiquiátrica está eufórica com o poder que seus profissionais reconquistaram, mas a possibilidade de abusos e tendenciosidades não está sendo percebida, nem mesmo por alguns destes profissionais. O momento é de entorpecimento pela ideologia e pelos interesses da classe dominante, em desfavor dos excluídos, notadamente dos usuários de crack, considerados párias.
Mais sobre o assunto: 

Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/11664
 22/01/2013