Pesquisador fala dos desafios do projeto popular em
meio a um governo neoliberal
Fábio Alkmin e Waldo Lao da Cidade do México
(México)
Guatemaltecos em manifestação pela aprovação da Iniciativa 40-84 - Foto: Fabio Tomaz
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O longo processo de guerra que por mais de 30 anos
acompanhou a história de seu país. A importância da luta dos povos indígenas
contra as aceleradas políticas e projetos neoliberais que só beneficiaram a
oligarquia guatemalteca e as empresas transnacionais. Estes foram alguns dos
pontos abordados pelo antropólogo guatemalteco e professor da Universidade
Rafael Landivar (URL) Mário Enrique Sosa Velásquez, em entrevista ao Brasil
de Fato.
Presente na VI Conferência Latinoamericana e
Caribenha de Ciências Sociais, na Cidade do Mèxico, que ocorreu entre os dias 6
a 9 de novembro, Sosa Velásquez fala também das propostas de reforma
constitucional do governo atual que, de acordo com ele, têm sido formuladas por
tecnocratas guiados pela ultrapassada ideologia neoliberal. “Devemos dizer que
os setores sociais, populares, camponeses e indígenas não têm sido tomados em
conta na formulação destas propostas”, critica
Sosa.
Audiência pública realizada pela Comissão de Legislação que discutiu a lei de
desenvolvimento rural - Foto: Congresso de la Republica de Guatemala
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VEJA A ENTREVISTA ABAIXO:
Mário Enrique Sosa Velásquez |
Brasil de Fato – A mesa de que você participou,
juntamente com outros pesquisadores do continente, abordou questões referentes
ao Estado plurinacional, à descolonização e ao questionamento da problemática
de desenvolvimento rural. O que você poderia nos dizer sobre isso?
Mário Enrique Sosa Velásquez – O que observamos na América
Latina é um processo de expansão e intensificação das formas de acumulação de
capital por despossessão. Alguns países conseguiram gestar governos
progressistas e avançaram em estatizar determinados tipos de atividades
econômicas, como a indústria petroleira e, em alguns casos, a exploração
mineira. Apesar disso, não lograram dar um salto qualitativo, no sentido de
deixar de lado a economia extrativa que tanto afeta os povos indígenas.
Evidentemente nesses contextos se abriram outras possibilidades para estes
povos indígenas, por exemplo, no campo constitucional. Em alguns países, como Equador
e Bolívia, estão se abrindo esses processos – não todos os que queríamos, ou
com a profundidade que queríamos –, mas estão se abrindo novos processos para
essa luta.
Brasil de Fato – No contexto histórico, a Guatemala
teve uma das ditaduras mais violentas do continente, que deixou dezenas de
milhares de mortos e desaparecidos. Fale-nos um pouco sobre esse processo.
Mário Enrique Sosa Velásquez – No ano de 1944 a Guatemala vivia
uma ditadura que já durava 14 anos. Uma ditadura militar liberal, que se
assentava na proteção da oligarquia guatemalteca e que tinha como principal
interesse a produção de café, e obviamente, um regime político que sustentasse
a exploração dos camponeses, dos grupos indígenas, etc. Implementou- se nesses
anos um conjunto de ações orientadas a controlar e reprimir qualquer
dissidência, qualquer oposição e crítica que pudesse haver contra este regime.
Finalmente em 1944 consegue-se gestar uma grande mobilização, uma espécie de
rebelião cidadã e militar, que conseguiu a renúncia do presidente Jorge Ubico
Castañeda. Isso abriu a possibilidade para que se pudesse instituir um regime
democrático, que permitiu a eleição de um novo presidente. A partir daí se foi
gestando durante dois governos revolucionários um processo de mudanças
democráticas que, para ser mais específico, no caso do campo, significou a
possibilidade do início de uma reforma agrária com o Decreto 900.
Isso afetou
principalmente os grandes latifúndios que estavam nas mãos de capitais
estadunidenses, como por exemplo, a United Fruit Company, produtora de banana.
Contra este processo começaram a se articular não só a oligarquia histórica do
país, mas também a CIA, que em conjunto com a Igreja Católica gestam um golpe
de Estado para derrotar Jacobo Arbenz Guzmán – segundo governo da revolução – e
isso se concretiza em 1954. A justificativa deste golpe era a de que estava se
desenvolvendo um governo de caráter
comunista.
Brasil de Fato – E como se caracterizou esse novo
período ditatorial?
Mário Enrique Sosa Velásquez – A partir daquele momento se
instalam um conjunto de governos, alguns deles civis e outros encabeçados por
militares que, apesar das diferenças, representavam um regime anticomunista, de
repressão a toda forma de protesto social ou de formas de participação política
alternativa ao regime. O que, inclusive, fez com que em 1960 houvesse um levante
de militares que se opuseram ao regime e à submissão ditada pelo governo dos
Estados Unidos e que abriu a possibilidade para que fosse gerado um movimento
revolucionário que surgiria em 1963. Optou-se pela via da luta armada porque
evidentemente não havia outras possibilidades políticas de participação e,
somado a isso, porque naqueles momentos as ideias de uma revolução armada
marcavam a pauta.
Nesse contexto, a organização camponesa e sindical
foi se recuperando, a organização popular também, e a resposta do Estado e dos
distintos governos deste regime ante a esses movimentos contestatórios foi a
implementação de medidas repressivas de variadas ordens. O ápice se dá
fundamentalmente na década de 1980, com a implementação da estratégia
contrainsurgente que incluiu a chamada tierra arrasada, que consistia em
implementar um conjunto de massacres na concepção de se “retirar a água do
peixe”.
Ou seja, para estes regimes, a guerrilha existia em função de uma base
indígena e camponesa, que era sua origem, e nesse sentido [a ditadura] havia que
destruí-los para que a guerrilha pudesse ser derrotada. Isso implicou na
derrota militar do movimento revolucionário e em dezenas de milhares de
guatemaltecos assassinados, desaparecidos, sequestrados, torturados, exilados,
refugiados, etc. Isto durou até 1985, ano em que se concretiza a constituição
política da república atualmente vigente e que abre caminho para a eleição de
governos civis, que apesar disso, diga-se de passagem, seguiram implementando a
mesma estratégia contrainsurgente. Em 1996 dão um passo à desmobilização armada
da guerrilha e a sua conversão em partido político, a sua inserção no regime
político e eleitoral vigente.
Brasil de Fato – Desde esse momento das negociações
de paz, passados mais de trinta anos de guerra civil, como é que se configura o
cenário político na Guatemala?
Mário Enrique Sosa Velásquez – Desde 1985 até agora, com alguns
matizes em cada período governamental, o que temos observado é um conjunto de
governos que vem aplicando políticas de ajuste estrutural, de caráter
neoliberal, para facilitar o capital nas suas distintas pretensões. Também vem
se desenvolvendo ações de cooptação e de institucionalização de movimentos e
organizações para que finalmente a resistência social possa ter uma margem de
controle. Durante esses anos também se sucederam alguns massacres esporádicos,
assassinatos, sequestros, como continuidade da violência.
Brasil de Fato – Desde esse momento das
negociações de paz, passados mais de trinta anos de guerra civil, como é que se
configura o cenário político na Guatemala?
Mário Enrique Sosa Velásquez – Desde 1985 até agora, com alguns
matizes em cada período governamental, o que temos observado é um conjunto de
governos que vem aplicando políticas de ajuste estrutural, de caráter
neoliberal, para facilitar o capital nas suas distintas pretensões. Também vem
se desenvolvendo ações de cooptação e de institucionalização de movimentos e
organizações para que finalmente a resistência social possa ter uma margem de
controle. Durante esses anos também se sucederam alguns massacres esporádicos,
assassinatos, sequestros, como continuidade da violência estatal contra o
protesto social, em um contexto onde a esquerda foi convertida em partido
político e foi se fracionando, se tornando muito institucional, porque começou
a defender a institucionalidade do estado de direito vigente e porque aceitou todas
as regras do jogo para atuar politicamente, o que implicou em uma pulverização
partidária.
Hoje temos vários partidos de esquerda, como a Unidade
Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG), a Aliança Nova Nação (ANN), que é
uma dissidência da URNG, o Movimento Nova Republica (MNR) que é um partido
recente – em boa medida formado por jovens, mas lamentavelmente com uma série
de orientações e práticas reprodutoras da mesma lógica dos outros partidos – e
um partido de forte participação indígena chamado “Winaq”, encabeçado por
Rigoberta Menchú, prêmio Nobel da paz, mas que não consegue se constituir em
uma instância de representação real dos povos indígenas – com apenas 3% na
eleição de 2011.
Nos últimos anos, com o avanço da mineração, dos projetos
hidrelétricos, de infraestrutura, com a expansão do agronegócio, etc., ou seja,
perante essa pretensão de se apropriar dos recursos e dos territórios, os
movimentos sociais geraram novas respostas de resistência, na ação coletiva dos
povos indígenas, assentada na comunidade, enraizada nas formas de participação
de autoridade própria desses povos. Isso representou um salto qualitativo nas
formas de ação coletiva porque, anteriormente, atuava como um movimento
desligado da base dos povos indígenas.
Hoje estamos precisamente em uma etapa onde essa
luta está se expressando a partir de consultas comunitárias e municipais, onde
mais de sessenta municípios se pronunciam contra estes projetos de mineração,
hidrelétricos, etc. Apesar disso e do amparo do Estado à legalidade dessas
consultas, contraditoriamente elas não vêm sendo reconhecidas pela Corte de
Constitucionalidade, que é o órgão jurídico máximo do país. A decisão das
comunidades indígenas e mestiças infelizmente não tem conseguido deter a
expansão mineira, pelo contrário, já que hoje estamos ante uma proposta de lei
de mineração que quer institucionalizar os interesses do capital transnacional
no saque dos recursos renováveis e não renováveis do
país.
Brasil de Fato – Qual é o papel dos Estados Unidos
nesse jogo político?
Mário Enrique Sosa Velásquez – Guatemala não deixou de ser uma
democracia tutelada, quer dizer, os Estados Unidos sempre mantiveram sua
influência, às vezes muito evidente no centro das decisões políticas. A tal
ponto que hoje em dia muitas das decisões são pensadas a partir dos interesses
dos Estados Unidos, se eles se oporiam ou não. Estamos sob um governo militar,
de Otto Perez Molina, que apesar de algumas ações que aparentam certa
autonomia, possui uma política que essencialmente segue regida pelos desígnios
dos Estados Unidos.
O presidente Fernando Otto Pérez Molina -
Foto: OEA/OAS
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Hoje, por exemplo, temos a presença militar desse
país, que não é nova, mas hoje se consolida a partir do argumento do combate ao
narcotráfico. Há que se dizer que os Estados Unidos estão regendo no âmbito
militar seus agregados, inclusive com a existência de um escritório do exército
dos Estados Unidos vinculado ao exército guatemalteco, e também outros
escritórios da embaixada dos Estados Unidos que estão presentes em ministérios
como o do Interior e outras dependências do governo, que nos indicam que
efetivamente há níveis de controle político por parte dos Estados
Unidos.
Reitero que apesar de seus diferentes matizes,
todos estes governos têm sido submissos e servis aos Estados Unidos; não
tivemos um só governo que tenha se posicionado minimamente desde uma
perspectiva nacionalista, um projeto autônomo baseado em uma pretensão de
independência, de soberania. Tem sido governos servis aos Estados Unidos e
também ao capital transnacional, porque finalmente a oligarquia guatemalteca
sempre esteve vinculada ao capital transnacional e hoje, na medida em que esse
capital se expande, não sobrou alternativa à oligarquia guatemalteca que se
aliar a esses capitais em condições de submissão e
desvantagem.
Brasil de Fato – Você acha que a reforma
constitucional que o atual presidente Otto Molina vem tentando implementar vai
nesse sentido, de abrir espaços para empresas e capitais transnacionais?
Mário Enrique Sosa Velásquez – As propostas de reforma
constitucional deste governo têm sido formuladas por tecnocratas, que em boa
medida estão enraizadas na ideologia neoliberal e nos interesses empresariais e
corporativos. Em segundo lugar, devemos dizer que os setores sociais,
populares, camponeses e indígenas não têm sido tomados em conta na formulação
destas propostas. Em terceiro lugar, estas reformas têm distintos objetivos.
Observa-se também a uma consolidação do presidencialismo, mas no sentido do
controle das decisões, inclusive aquelas que corresponderiam aos setores
legislativo e judiciário, contradizendo o princípio republicano que se baseia
na suposta separação de poderes.
Brasil de Fato – E os povos indígenas, como serão
afetados por essas reformas? Mário Enrique Sosa Velásquez – Devemos situar que como parte das
reformas constitucionais há um reconhecimento ao caráter étnico e multicultural
da nação guatemalteca, assim como um reconhecimento ao direito das comunidades
indígenas a usar suas roupas tradicionais, a falar seus idiomas, inclusive a
ter acesso aos seus lugares sagrados, etc. Mas este é o seu limite. O que
queremos dizer é que este é um reconhecimento meramente formal, folclorista e
no final das contas assentado nos interesses do capital. Pois se há algo que se
venda fora da Guatemala é essa diversidade étnica, como um produto turístico, é
claro. Nesse sentido, consolidar essa diversidade aponta também o negócio do
capital transnacional em
Guatemala.
O ponto é que reformas desta natureza, na medida em
que não modificam em nada as características do modelo de acumulação do
capital, estendem essa possibilidade para que as formas de acumulação por
despossessão – via projetos mineiros, hidroelétricos, etc. – sigam sucedendo e
obviamente, na medida em que isto se desenvolva em territórios indígenas, gerem
um conjunto de impactos para estes povos, como a contaminação de água,
problemas ambientais diversos, a conflitividade e a violência estatal que
acompanha este processo. Em alguns municípios já estabeleceram, inclusive,
estados de sítio, onde se militariza e se invalida determinados direitos
cidadãos, com o objetivo de controlar a resistência ante esses projetos. O massacre
que ocorreu em 4 de outubro contra o povo Totonicapán foi nesse sentido, já que
a população se mobilizou contra os altos custos do serviço de energia elétrica,
que está privatizada e que é mais uma maneira de espoliar estas
comunidades.
Brasil de Fato – Poderia nos contar um pouco mais
sobre esse massacre?
Mário Enrique Sosa Velásquez – Em 4 do outubro, a população de
Totonicapán se mobilizou, tomando a rodovia interamericana como medida de
pressão para que o presidente da república os recebesse na capital. O que
ocorreu antes dessa mobilização foi que as autoridades indígenas desse
departamento haviam requerido reuniões com o presidente, mas estas reuniões não
haviam sido atendidas, nem suas petições, nem suas demandas. Então se
perguntaram: que fazemos? Como tem sido historicamente tradicional nesse
contexto as dinâmicas de consulta e de decisão comunitária fizeram que as
comunidades se mobilizassem massivamente, o que levou aos efetivos militares a
disparar e assassinar a oito indígenas k’iche. Também se deve dizer que existem
duas pessoas desaparecidas. Isso não está muito claro, mas o evidente é que aí
opera uma política de Estado orientada a reprimir e utilizando o exército como
parte dessa política de repressão.
Brasil de Fato – E de maneira geral, quais são as
atuais bandeiras de luta dos movimentos indígenas na Guatemala? Quais são as
estratégias políticas para atingi-las?
Mário Enrique Sosa Velásquez – A decisão majoritária é de
oposição à mineração, aos projetos hidrelétricos e às outras formas de
concessão. O que vem ocorrendo é que entre processos consultivos vêm se
desenvolvendo articulações em nível local, departamental e regional, de tal
forma que hoje, no ocidente do país, temos o Conselho dos Povos do Ocidente
(CPO). Já no norte do país, na região K’iche, temos a conformação do Conselho
dos Povos de Tezulutlán.
Brasil de Fato – Autonomia e território. Seriam
essas as bases da estratégia política destes povos?
Mário Enrique Sosa Velásquez – Para os povos indígenas me parece
que sim, pois o que observamos nestas lutas não é só a busca de reconhecimento
dos indígenas por parte do Estado, senão um exercício de autonomia, de fato,
por parte dos povos indígenas. O que isso demonstra é a possibilidade de ter um
impacto político maior em suas próprias lutas. Isso mobiliza todo um povo e
nesse sentido, esta forma de desenvolver a luta a partir de seus próprios
interesses, baseada nesta autonomia, nessas formas de organização de
autoridade, cria a possibilidade para que então essas resistências que
atualmente estão se dando possam abrir um caminho possível para derrotar o
capital em seus interesses na exploração dos territórios indígenas. É a
possibilidade de também articular um movimento de povos para que, por meio
desta articulação, possam transformar-se num sujeito fundamental na
transformação econômica, social e política na Guatemala, o que passaria pela
refundação do próprio Estado, para que reconheça estes regimes autônomos e que
esteja a serviço dos povos, não mais do capital.
http://www.brasildefato.com.br/node/11389
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