Em entrevista, a secretaria do
Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Isa Maria de
Oliveira, afirma que a prevenção e eliminação do trabalho infantil “tem que se
dar no contexto da proteção integral dos direitos da criança e do adolescente”.
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Para Isa Maria, é inaceitável que 3,4 milhões de crianças ainda estejam
trabalhando - Foto: João Roberto Ripper
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De acordo com Isa Maria, cerca de
132 mil crianças e adolescentes entre 10 a 14 anos ainda “são responsáveis
pelos seus domicílios”. Para ela, a impossibilidade de erradicar o trabalho
infantil no país está relacionada à ineficácia das políticas públicas, que não
conscientizam as famílias sobre o tema.
Na entrevista a seguir, concedida por
telefone à IHU On-Line, Isa comenta o impacto dos programas de transferência
do governo no controle do trabalho infantil. Apesar de terem contribuído para
garantir o acesso das crianças à escola, os programas não contribuíram “para
que as famílias tivessem uma compreensão sobre o trabalho infantil”.
Isa também
destaca a omissão dos gestores públicos, que não denunciam casos em que as
famílias recebem um valor em dinheiro e mantêm as crianças trabalhando. “O
governo municipal não identifica e não reconhece que há trabalho infantil, ou
seja, não faz esse cofinanciamento. Enquanto isso, o Programa de Transferência
de Renda está aí, cobrindo mais de 14 milhões de famílias”.
Confira abaixo a entrevista de
Isa Maria de Oliveira concedida por telefone ao IHU (Instituto Humanitas Unisinos) On-Line
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Isa Maria de Oliveira - Foto: Fábio Pozzebom/ABr |
IHU On-Line -
Em dez anos aproximadamente 530 mil crianças e adolescentes brasileiros
deixaram de trabalhar no país. O que esse dado significa e representa
considerando a trajetória brasileira em relação ao trabalho infantil?
Isa Maria de Oliveira - Se analisarmos que em uma década
pouco mais de meio milhão de crianças foram retiradas do trabalho infantil, e
que ainda há um universo de 3,4 milhões crianças trabalhando, isso revela
claramente que as políticas e os programas adotados e implementados no Brasil
não estão dando conta da gravidade do problema. Quando falamos de crianças e
adolescentes, nos referimos a uma fase na vida muito breve. Então, se em uma
década milhares de crianças não foram retiradas do trabalho infantil, na
próxima década elas não serão mais crianças, e legalmente poderão trabalhar e
perderão a oportunidade de viver plenamente a infância e de ter assegurado
todos os direitos fundamentais para o seu pleno desenvolvimento cognitivo,
físico e emocional.
Do ponto de vista da avaliação do
Fórum Nacional, esse resultado é inaceitável. É uma redução muito pequena.
Claro que felizmente pouco mais de meio milhão de crianças foram retiradas do
trabalho infantil, mas em comparação ao universo de crianças que ainda estão
trabalhando, esse número ainda é pouco expressivo. É inaceitável que o Brasil,
apontado como uma referência para os outros países nessa área, tenha um
resultado tão pequeno.
IHU On-Line - Quais foram as políticas públicas de
combate ao trabalho infantil que não foram eficazes? Qual é o problema e como o
Estado aborda essa questão?
Isa Maria de Oliveira - A primeira observação que faço é a de que o
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI foi instituído em 1996,
quando trouxe um impacto forte e positivo. Tanto é que a maior redução do
trabalho infantil aconteceu até 2001 e 2002. Retiradas as crianças da cadeia
formal de trabalho, permaneceram trabalhando as crianças que trabalham com as
próprias famílias, tanto na área rural como na área urbana. Essas são formas de
trabalho infantil que requerem uma articulação e uma integração das políticas
públicas.
Nesses casos, as famílias precisam
receber um atendimento especial. O início dessa atenção pode ser a
transferência de renda, mas isso não é suficiente. É preciso que as famílias
tenham a oportunidade de serem informadas e de compreenderem que a inclusão
precoce de crianças e adolescentes no trabalho infantil não é uma solução, mas
um fator determinante de reprodução da pobreza e da exclusão social no Brasil.
Quais são as outras políticas que
precisam funcionar e estarem articuladas? Sem dúvida nenhuma, a política de
educação. As crianças que estão trabalhando têm direito a uma educação de
qualidade, que passa necessariamente por aprender no tempo certo e por ter
todas essas oportunidades de práticas esportivas, culturais, para que se tenha
uma educação, e não somente uma escolarização. É preciso garantir uma escola de
qualidade e, preferencialmente, em tempo integral, com foco nas áreas e nos
municípios, nos territórios onde há realmente maiores focos de trabalho
infantil. Além disso, deve haver, por parte do Estado, seja municipal, estadual
ou federal, uma responsabilidade no sentido de informar e sensibilizar a
sociedade de que o trabalho infantil traz inúmeros prejuízos e riscos para as
crianças, além de comprometer o desenvolvimento humano do país. Isso é
importante, porque mudar valores culturais é um dos maiores desafios, ainda
mais em um país que tem um legado escravocrata, uma percepção equivocada e
desumana de que o trabalho é bom para as crianças pobres. 132 mil crianças e
adolescentes entre 10 e 14 anos são responsáveis pelos seus domicílios. Esse é
um indicador forte de trabalho infantil.
IHU On-Line - As políticas públicas deveriam ter
sido acompanhadas mais de perto ao longo dessa década?
Isa Maria de Oliveira - É importante ressaltar que, quando
se fala de direitos de crianças e de adolescentes, de proteção integral, a
prioridade tem de estar posta e assumida por todas as políticas públicas – e
isso não acontece no Brasil. Por exemplo, ainda não temos a educação básica,
aquela que cuida da fase pré-escolar, do ensino fundamental e ensino médio. Da
mesma forma, o combate e à prevenção ao trabalho infantil não é uma prioridade.
Então, a atuação das políticas públicas ainda está muito ligada à
escolarização, e o foco é sempre a taxa de escolarização, ou seja, “o estar
matriculado”.
Quando analisamos os indicadores de
frequência e de rendimento escolar, vemos que essa taxa tão positiva de
matrícula cai drasticamente. Dados do próprio MEC demonstram que, quando a
criança ou o adolescente estuda e trabalha, o rendimento escolar é 10 ou 12
pontos percentuais abaixo daqueles que só estudam.
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Menino trabalha em carvoaria. De acordo com a OIT 115 milhões de crianças
exercem atividades profissionais de risco - Foto: Arquivo ABr
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Violações
O trabalho infantil é uma porta
aberta para as outras violações. Nós temos registros de que adolescentes
privados da liberdade, porque cometeram um ato infracional, trabalharam quando
crianças. O trabalho infantil nas ruas é um caminho aberto para que se deem a
exploração sexual comercial, o abuso e outras inaceitáveis violações, como o
espancamento, o xingamento, humilhações. É preciso refletir sobre isso. O
resultado dessa década evidência realmente que o Brasil não está respondendo a
todas essas graves questões. Quando falamos em trabalho infantil, entendemos
que sua prevenção e eliminação têm que se dar no contexto da proteção integral
dos direitos da criança e do adolescente. Tem que proteger a vida dessa
criança, a saúde, o direito à educação de qualidade, o direito ao lazer e à
convivência escolar.
IHU On-Line - Segundo dados da Organização
Internacional do Trabalho – OIT, 40% das crianças que trabalham atualmente não
são de famílias que vivem abaixo da linha da pobreza. Dizem que se trata de um
novo perfil do trabalho infantil. Essa mudança acompanhou a ascensão econômica
do país, e por isso as crianças não pertencem a famílias que estão abaixo da
linha da pobreza? Comparando os anos 1990 e início dos anos 2000, como descreve
hoje o perfil do trabalho infantil no Brasil?
Isa Maria de Oliveira - Esse dado requer uma maior análise.
O perfil apontado pela OIT está aliado muito a que situações de trabalho as
crianças estão submetidas. Aí eu aponto o seguinte: o corte de renda para que
uma família seja incluída no programa Bolsa Família é de 140 reais per capita,
mas uma família que tem uma renda dessas não será atendida pelo programa.
Apesar disso, não posso afirmar que essa família não está em uma situação de
pobreza. Então, precisaria analisar qual é a faixa de renda desses 40%.
O que esse dado pode trazer é o
seguinte: como o maior abandono da escola é na faixa de 15 a 17 anos, na
adolescência, e como nós vivemos numa sociedade do consumo, todos os
adolescentes, independente de cor e de situação econômica, têm aspirações
materiais, e essas aspirações, muitas vezes, motiva os adolescentes a
trabalhar, mesmo que a família não esteja precisando daquela renda para
sobreviver. É um trabalho que ele realiza para lhe dar direito a uma aspiração
de consumo. Então, se tem uma família que não está em situação de extrema
pobreza, mas ela não pode realmente dar ao seu adolescente, por exemplo, um
celular, um tênis de marca ou algum bem que ele considera importante, ele
trabalha para poder comprar. Então, esses 40% podem representar, em parte,
esses adolescentes que estão trabalhando e que querem realmente garantir as suas
aspirações de consumo e que não necessariamente estão determinados pela extrema
pobreza da família. Todavia, avalio que esses 40% ainda estão na faixa da
pobreza.
IHU On-Line - As crianças trabalham por necessidade?
Isa Maria de Oliveira - Exatamente! E aí você não pode
reduzir a necessidade à sobrevivência somente. Há outros bens que estão
disponíveis na sociedade e que são privilégios de poucas crianças e
adolescentes. Por um lado, essa questão do consumo é muito forte entre os
adolescentes, e eles são os que mais abandonam a escola.
IHU On-Line - É possível constatar se o trabalho
infantil é mais recorrente nas cidades ou na zona rural?
Isa Maria de Oliveira - Se dividir por faixas etárias, sim.
A faixa etária de 13 e 14 anos tem maior incidência de trabalho infantil na
área rural. A faixa etária de 15 a 17 anos tem maior incidência urbana. Não há
dúvidas. Isso está se confirmando. Quando se olha, por exemplo, nessa faixa de
15 a 17 anos, no Brasil e em todas as regiões, a maior incidência é urbana.
Quando se pega nessa faixa até 14 anos, especialmente nas regiões Norte, Nordeste
e Sul, é na área rural.
IHU On-Line - Apesar das suas críticas aos programas
de distribuição de renda, é possível fazer uma avaliação de como eles incidiram
no sentido de prevenir o trabalho infantil?
Isa Maria de Oliveira - Quando se faz um acompanhamento das
famílias que recebem transferência de renda, faz-se o acompanhamento de duas
condicionalidades. Entre elas estão a condicionalidade da frequência à escola –
e volto a dizer que frequência à escola não é rendimento escolar. Sem dúvida,
porém, nenhum programa de transferência de renda contribuiu para a maior
frequência escolar, até porque, se a criança não tiver 85% de frequência, a
família corre o risco de receber uma advertência e até de perder a bolsa.
De todo modo, não podemos aceitar
que 571 mil crianças estejam fora da escola. Percentualmente esse valor é
“pequeno”, mas, quando se vê o universo de crianças fora da escola, o número é
inaceitável, sobre tudo nessa faixa de 6 a 14 anos. Já é de longa data que está
posto na Constituição e no Plano Nacional de Educação que a escola é
obrigatória, tem que ser ofertada e tem de se garantir a frequência e o sucesso
escolar. Então, é inaceitável que se registrem números tão elevados.
O Programa de Transferência de
Renda impactou na frequência escolar e no melhor acompanhamento da saúde da
criança. Mas temos muitos depoimentos de quem trabalha nos municípios segundo
os quais é comum que famílias recebam o benefício, a criança frequente a
escola, a criança cumpre o calendário vacinal, faça o acompanhamento de saúde
e, ainda assim, trabalhe. Então, para o trabalho infantil o impacto do programa
de distribuição de renda não foi o desejável e nem o esperado. Em nossa
avaliação, há uma coisa mais grave: o Programa de Transferência de Renda não
contribuiu para que as famílias tivessem uma compreensão sobre o trabalho
infantil, e o poder municipal também se omite em relação a ele. A família pode
receber a transferência de renda por uma situação de pobreza e manter a criança
no trabalho infantil. E o município não precisa cofinanciar, porque existe o
financiamento do governo federal para os chamados serviços socioeducativos.
Então, o governo municipal não identifica e não reconhece que há trabalho
infantil, ou seja, não faz esse cofinanciamento. Enquanto isso, o Programa de
Transferência de Renda está aí, cobrindo mais de 14 milhões de famílias. É
muito preocupante, porque esse programa deveria impactar diferentemente no dia
a dia das crianças.
IHU On-Line - Em que estados é possível perceber o
predomínio do trabalho infantil?
Isa Maria de Oliveira - Nos três estados do Sul os
percentuais de trabalho infantil são elevados, estão acima da média nacional.
As regiões Sul e Norte, de acordo com os dados do último censo, são as que têm
maior incidência do trabalho infantil. Então, o Nordeste apresentou realmente
resultados positivos, embora a situação ainda seja grave, mas a diferença de
percentual da região Norte para a região Sul é de 0,1%.
Como se tem uma densidade
populacional muito maior no Sul, o percentual fica mais elevado do que no
Norte. No Sul essa situação precisa ser ressaltada, porque se têm mais
desenvolvimento econômico, mais escolas e os percentuais de trabalho infantil
são muito elevados.
IHU On-Line - Como avalia o Estatuto da Criança e do
Adolescente – ECA?
Isa Maria de Oliveira - Este Estatuto é um marco, apesar de
ainda não estar plenamente implementado. Defendemos que um dos artigos – o de
n. 248 – seja imediatamente revogado. Ele trata da vinda de adolescentes de
outras comarcas, e a família que busca ou que recebe esse adolescente tem um
prazo de cinco dias para informar a autoridade legal sobre a guarda dessa
criança, que irá prestar serviços domésticos. Esse artigo é um claro
incentivador do trabalho infantil, e isso se agrava mais porque o Brasil, em
2008, aprovou um decreto que define o trabalho infantil doméstico como uma das
piores formas de trabalho.
Esse artigo está na contramão,
sobretudo porque o trabalho infantil doméstico, como todos sabem, é oculto, de
difícil fiscalização. Essa é uma das formas de trabalho que mais traz prejuízos
para o rendimento escolar, porque a jornada é atenuante; muitos não têm nenhum
descanso semanal; em muitos casos a jornada se estende, porque o trabalho é
quase que ininterrupto. Em alguns o adolescente frequenta a escola, mas ele
chega exausto para acompanhar as aulas; ele não tem como preparar as tarefas.
Isa Maria de Oliveira é graduada em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de Goiás, e pós-graduada na mesma área pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/11012
26/10/2012
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