Ministério Público Federal apresenta provas
incontestáveis contra agente da Polícia Federal de Ilhéus (BA)
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Há anos a comunidade Tupinambá do sul da Bahia vem denunciando a
violência praticada pele Polícia Federal - Foto: Patrícia Navarro/ Cimi
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Com a testa encostada junto à parede e servindo
de sustentação ao corpo ajoelhado, o Tupinambá José Otávio Freitas Filho não
podia esfregar os olhos, queimados, depois que um agente da Polícia Federal de
Ilhéus, Bahia, lançou jatos de spray de pimenta no indígena, que estava com as
mãos algemadas. “Onde estão as armas?”, gritavam os policiais enquanto davam
choques elétricos pelo corpo do Tupinambá, incluindo a região genital.
Tapas, chutes, pisões, puxões de cabelo. No dia 2
de junho de 2009, José Otávio e outros quatro Tupinambá da Serra do Padeiro –
Osmário de Oliveira Barbosa, Carmerindo Batista da Silva, Ailza Silva Barbosa e
Alzenar Oliveira da Silva – sofreram agressões de agentes do Estado na Fazenda
Santa Rosa, área retomada pelos indígenas e motivo de intenso conflito com
latifundiários e alvo de investidas da Polícia Federal. A situação ficou mais
tensa depois que as terras integraram o relatório de demarcação publicado pela
Fundação Nacional do Índio (FUNAI) meses antes.
Porém,
mais do que vítimas do habitual abuso de poder das autoridades policiais
brasileiras, os cinco fazem parte de uma longa lista de indígenas Tupinambá
que, desde meados dos anos 1930, sofrem com um crime que não é registrado
apenas em regimes ditatoriais, mas também em plena democracia: a tortura – que
de acordo com as leis brasileiras é a imposição de dor física ou psicológica
por crueldade, intimidação, punição ou para a obtenção de uma confissão ou
informação e até mesmo por puro sadismo.
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O cacique Tupinambá Babau - Foto: Haroldo Heleno/Cimi |
“Toda vida
foi assim. Antigamente eles pegavam a gente e arrancavam as unhas, rasgavam a
carne devagar na faca.Estupravam as mulheres e batiam com facão. Isso não faz
muito tempo não; foi agora, umas décadas atrás e continua”, explica o cacique
Rosivaldo Ferreira dos Santos Tupinambá, mas conhecido como Babau. Desde a
época rememorada por Babau, para além de antes do século 19 até o
descobrimento, os Tupinambá nunca se entregaram à dominação. Todavia, o passado
parece se repetir – brotando à flor da pele em tortura.
Inquérito
amigo
No Fórum de Itabuna (BA), no último dia 18 de
outubro, as cinco vítimas prestaram depoimento ao juiz Federal em parte do
procedimento da Ação Civil Pública por Dano Moral Coletivo e Individual movida
pelo Ministério Público Federal (MPF) da Bahia contra a União. Os procuradores
abriram inquérito também para apurar os responsáveis pela tortura, atestada e
comprovada por laudos do Instituto Médico Legal (IML).
No entanto, quem
investigou a conduta dos agentes federais foi a própria Polícia Federal e o
inquérito concluiu o contrário, sendo que nenhum agente envolvido nas torturas
do dia 2 de junho de 2009 foi preso.
Para a procuradora da República Flávia Galvão
Arruti, tendo por base o relato dos indígenas e laudos periciais, “é
incontroverso que a aplicação de choques elétricos e utilização de spray de
pimenta não passaram de violência policial, tortura e desrespeito aos direitos
fundamentais.
Em outras palavras, a atuação policial foi totalmente contrária
aos ditames legais, configurando-se verdadeira tortura”. Os procuradores
concluíram que existe tortura quando a autoridade e seus agentes reduzem ou
anulam as liberdades individuais, ferindo direitos constitucionalmente
assegurados dos cidadãos.
“Chegaram atirando”
O histórico recente de violências por parte do
Estado contra os Tupinambá é vasto. A Polícia Federal sistematicamente tentou,
por ordem de decisões judiciais ou outras motivações nem tão claras para os
indígenas, despejar os Tupinambá das áreas retomadas.
No dia 2 de junho de
2009, a alegação da Polícia Federal é que a ação dos agentes que culminou na
denúncia de tortura era para constatar em flagrante que a comunidade estava
praticando o delito de esbulho possessório – invasão e expulsão violenta de
pessoa de sua propriedade.
Os indígenas afirmam que os policiais chegaram
atirando. A comunidade, por sua vez, não esperava pelo ataque. Ao contrário,
aguardava a emissora de televisão para reportagem sobre as lutas do povo.
Quando viram carros se aproximando, entenderam que era a equipe de reportagem.
Só deu tempo de todos correrem para o mato. Os cinco não conseguiram e nas
casas/barcaças de cacau foram pegos pelos policiais. A tortura, conforme
depoimentos dos indígenas conseguidos pelo jornal Brasil de Fato, começou ainda
no local.
Torturas
No andar superior estavam José Otávio, Osmário,
Carmerindo e Ailza; Alzenar estava no térreo. Quando chegaram, os agentes
federais gritaram para que os indígenas colocassem as mãos na parede. Logo
após, pediram para que os cinco se deitassem no chão. Um a um foi algemado.
Ailza afirmou que os policiais os xingavam de “peste”, “ladrões” e “desgraças”.
Por mais de quatro vezes os cabelos da indígena foram puxados, com força. Os
homens recebiam tapas na nuca, no rosto, nos ouvidos e nas costas, além de
chutes nas costelas e pisões enquanto estavam algemados no chão.
Conforme Alzenar, depois que foi retirado da
barcaça de cacau foi levado por três policiais para uma estufa. Colocado de
joelho, passou a ouvir as repetidas perguntas dos policiais sobre a localização
das armas dos indígenas.
Como a resposta não era satisfatória passou a receber
choques na nuca, na lateral do corpo e abaixo do braço direito. Com os demais
não foi diferente. Carmerindo, depois de algemado, apanhou e teve os olhos
inundados por spray de pimenta.
No chão, foi pisado pelos agentes. Osmário
relatou que enquanto faziam perguntas, os policiais mantinham grudado em seu
corpo à arma de choque, que o fazia tremer da cabeça aos pés. No laudo do IML,
não faltam registros de marcas de queimaduras elétricas nos corpos dos dois
indígenas que sofreram o choque: José Otávio e Osmário. Nos demais, hematomas
variados.
Ao final da sessão de tortura, os indígenas foram
colocados na carroceria das caminhonetes e levados para a Delegacia da Polícia
Federal de Ilhéus. De acordo com a análise dos peritos médicos, presente na
denúncia do MPF, “a multiplicidade e a topografia das lesões sugerem terem sido
causadas por meio cruel”.
“As provas são contundentes. Não resta dúvida de que
a tortura de fato ocorreu. Os agentes mesmo assumem terem usado o choque, por
exemplo. Porém, dizem que os indígenas reagiram. Como pode cinco indígenas
apresentar tamanho perigo para uma quantidade expressiva de policiais muito bem
armados, equipados, preparados e que chegaram de surpresa?”, questiona Adelar
Cupsinski, advogado que acompanha o caso e assessor jurídico do Conselho Indigenista
Missionário (Cimi).
Em análise dos dados periciais, a procuradora
Flávia concluiu que o tempo necessário para imobilizar um suspeito por agentes
policiais é de 20 segundos. Os agentes utilizaram as armas de choque por quatro
minutos. “É evidente que esse excesso (ou que a tortura) ocorreu em razão dos
ocupantes serem índios, minoria já perseguida e vista com péssimos olhos pela
Polícia Federal”, apontou a procuradora.
Versão contestada
A Polícia Federal, então, refuta tortura alegando
legítima defesa e justifica que foi ao local para averiguar o esbulho
possessório, pois se tratava de uma retomada dos Tupinambá das terras fazenda,
mesmo que o território estivesse entrado na Portaria Declaratória da Funai como
parte da ocupação tradicional indígena comprovada por estudos antropológicos,
fundiários e ambientais. O que os Tupinambá apontam vai de encontro com a tese
dos policiais.
No dia 30 de maio de 2009, os indígenas afirmam
que policiais federais entraram na área e atearam fogo nas casas. A comunidade
correu para a mata e conseguiu permanecer na fazenda. Dias depois acontece o
novo ataque que culmina na tortura dos cinco. “Já é de conhecimento público que
a Polícia Federal muitas vezes atua com violência excessiva nos problemas
envolvendo retomadas das fazendas integrantes de áreas historicamente ocupadas
por indígenas. E o presente caso, configura-se como mais uma atuação
desarrazoada da Polícia Federal”, conclui a procuradora do MPF/BA.
Caso a União seja condenada, deverá pagar
indenização de R$ 500 mil para a comunidade da Serra do Padeiro e aos indígenas
vítimas da denúncia de tortura. “Além da indenização e muito embora ainda não
se tenha identificado os responsáveis, essa ação é importante para mostrar que
a tortura ainda é praticada pelo Estado e que ela precisa ser banida. Isso é
inaceitável”, pondera Cupsinski.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/11068
05/11/2012
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