Documentário brasileiro ajuda angariar fundos para projeto sustentável de inclusão
Por Amanda Cotrim Especial para Caros Amigos
“O que você aprende você precisa ensinar”, ele
diz. “Muitas crianças não têm pais e precisam ir atrás de comida; algumas vão
para a prostituição. A população pobre da Libéria está morrendo porque não tem
condições de ir até o hospital. Eu não quero que essa escola morra. Eu não
quero que essas crianças voltem para as ruas”, clama Sabato Neufville, ativista
de 34 anos. Em setembro de 2009, ele construiu uma escola feita com bambu, num
antigo galpão, na comunidade de Fendell, na capital da Libéria, de Monróvia (veja
vídeo abaixo).
Sabato é negro. É forte. É dono de um olhar
observador e de uma fala firme. Corpo robusto, alto, magro. Tem olhos
avermelhados, uma barba fina e usa um anel no dedo anelar esquerdo. Ele, assim
como todos os liberianos, fala inglês. Na Libéria há 17 dialetos, mas a
colonização linguística dos EUA é a oficial.
Sabato é pai: adotou 9 crianças que ficaram órfãs
por causa da guerra. Ele trabalha como freelancer para a Organizações das
Nações Unidas (ONU) e ganha 800 dólares por mês. Com esse dinheiro vive e
mantém a escola de bambu. Os 16 educadores da escola ganham 20 dólares por mês.
Algumas crianças dormem durante as aulas,
resultado da jornada dupla: trabalham e estudam. Elas, os professores e Sabato
são os personagens de uma história que está muito distante dos olhos do mundo.
O maior objetivo do ativista liberiano é que as pessoas conheçam e ajudem o
projeto para a construção da nova escola de bambu.
Guerra
A guerra civil na Libéria durou 14 anos
(1989-2003). Atualmente, ela está controlada. Sabato está vivo para contar-nos
essa história porque durante a guerra, ele foi refugiado por duas vezes; uma em
Guiné e outra na Costa do Marfim, onde pôde continuar os estudos. Durante esse
período, 300 mil pessoas morreram.
Crianças tiveram os pais mortos, garotos
tiveram os braços e pernas decepados, meninas foram estupradas. Os meninos
pobres, muitos órfãos, foram sequestrados pela guerra e pegaram em fuzis, sem
saber se viveriam ou se matariam. As crianças liberianas, que perderam os pais
no conflito, hoje, vivem nas ruas. Quem traz essas memórias é o olhar de
Sabato. “Eu sei que se as crianças e os jovens forem educados, eles não vão
matar outra pessoa. Se as crianças não forem para a escola, a guerra civil vai
continuar. Mas eu não posso fazer isso sozinho”, diz.
Sabato é católico e com a fé de quem acredita em
Deus ele aposta a sua vida na escola de bambu. Quando questionado sobre a
importância da comida, num país pobre, sendo ela, então, mais importante do que
a educação, o liberiano é enfático: “Se a pessoa tiver educação, ela vai lá...
e consegue a comida. Por isso a educação é tão fundamental quanto a comida. Eu
faço isso porque elas serão os futuros médicos e professores do meu país”,
acredita.
Documentário
“Essa história precisava ser contada. Quando
conheci a escola construída pelo Sabato tive a certeza que um documentário
seria a melhor forma de registrá-la”, diz Vinícius Zanotti, criador do
documentário "Escola de Bambu".
O jovem, jornalista, militante, em
2010, com 25 anos, decide colocar a mochila nas costas e conhecer a África. Mas
o que deveria ser uma viagem de algumas semanas tornou-se uma estadia de dois
meses. Ao chegar na Libéria, o documentarista contraiu malária e retardou sua
volta ao Brasil. Ainda muito doente Vinicius conheceu Sabato, dentro de um
carro, enquanto se recuperava da malária. A partir daí, a vida dos dois mudaria
para sempre.
As crianças liberianas têm sonhos, elas querem
reconstruir o país, conta Vinicius. “A Libéria é a terra da liberdade, mas, ao
mesmo tempo em que os liberianos lutam, falta conhecimento, eles não sabem até
que ponto está o mundo. Um fato que me marcou muito foi quando um liberiano me
perguntou quantas horas de energia elétrica a gente usava no Brasil”, conta.
Início
Vinícius, porém, não se contentou em só conhecer
a história de Sabato e da escola de bambu. Ele foi além: realizou o
documentário e fez um pacto com o ativista. Prometeu ao liberiano que voltaria
ao Brasil, venderia o documentário e conseguiria dinheiro suficiente para,
junto com ele, erguer uma escola, com banheiros, infraestruturara, área de
lazer e condições dignas para todas as crianças. O pacto foi firmado. A escola
teria que ter, agora, uma casca firme, para abrigar todos aqueles sonhos.
O desafio teve início em setembro de 2011, quando
oficialmente começou a campanha “Escola de Bambu” (clique
aqui e acesse o projeto). O documentário passou a ser
comercializado e a campanha ganhou as redes sociais e a simpatia da opinião
pública, mais intensamente nas cidades paulistas de Campinas e São Paulo, onde
Vinicius vive. O valor para que a nova escola de bambu nasça é estimado em 340
mil reais.
Na Mira
O Brasil realizou o Seminário “Brasil- África”,
no BNDS, em maio desse ano, cujo objetivo foi discutir os investimentos que
empresas nacionais deverão realizar no continente, entre elas, a mineradora
Vale, Petrobras, Camargo Corrêa. A intenção, entre outras, é transferir
tecnologia brasileira para a África.
O continente tem se tornado ponto de atração para
o capital estrangeiro, o produto interno bruto (PIB) está previsto para crescer
6% esse ano. O produto interno bruto de países como Serra Leoa e Líbia estão
previstos para crescer 35% e 76%, respectivamente. Um continente cuja soma de
toda a riqueza cresce, mas que não traz reflexo na distribuição de renda e na
qualidade de vida dos africanos. Durante o evento, o ex-presidente Lula
enfatizou que mais de 300 milhões de africanos têm celulares.
Desigualdade
Social
Na Libéria há 3 milhões de habitantes, 65% da
população é composta por jovens. “Se o jovem da Libéria tiver educação, não vai
mais ter guerra”, confia Sabato.
No país há três diferentes classes: o pobre, o
rico e a classe intermediária. Os pobres recebem 50 dólares por mês, os
intermediários recebem 500 e os ricos ganham 5 mil dólares por mês. A classe
dominante economicamente reúne as pessoas que trabalham para o governo. Sabato
conta que é muito fácil dividir os pobres e os ricos na Libéria: os ricos têm
carro e moram em casas grandes.
O ativista destaca que, além da guerra civil, a
Libéria foi vítima de seu passado histórico. Os ex-escravos americanos, que
foram para o país africano, conseguiram muito dinheiro à custa das riquezas
nativas, como o óleo, a borracha e o diamante. Esses escravos pegaram o
dinheiro e voltaram para os Estados Unidos, como lembra Sabato.
Atualmente, a Libéria é a maior produtora de
borracha do mundo, em um território da multinacional Firestone, já denunciada
por outras mídias como mantenedores de trabalhadores em regime de escravidão.
Eles ganham menos de 50 dólares mensais; são obrigados a morar no local, além
de pagar o aluguel e alimentação com desconto diretamente na folha de
pagamento.
No documentário “Escola de Bambu”, uma criança
liberiana é questionada sobre qual profissão ela gostaria de exercer, quando
crescesse. Sua resposta gritou aos ouvidos dos telespectadores, mas na Libéria
ninguém ouviu: “Eu quero ser o presidente do meu país, para poder baixar o
preço de tudo, para que os pobres possam comprar as coisas”. Sabato acredita
que essas vozes só serão ouvidas quando houver educação.
Projeto
André Dal'Bó, arquiteto formado pela Universidade
de Campinas (Unicamp), conheceu Vinícius em 2007 por causa da atuação junto aos
movimentos sociais de ocupação urbana. “Tempos depois, Vinícius foi para África
e expôs essa experiência. Daí eu pensei: Podemos ajudar a fazer essa escola”,
diz Dal'Bó.
O primeiro passo foi buscar uma linguagem próxima
à existente no local, com materiais e técnicas construtivas já utilizadas no
cotidiano dos liberianos: O bambu e a terra em forma de blocos de adobe. “O
projeto arquitetônico vai além de sua forma física”, justifica Dal'Bó.
O projeto conta, ainda, com sistema de tratamento
de esgoto por biodigestão, geração de energia elétrica, captação e reuso da
água da chuva. O arquiteto explica que haverá ampla ventilação e iluminação
natural nas salas de aula.
O objetivo é transformar o bambu, planta comum no
país, num modelo construtivo, sem danos ambientais. O arquiteto destaca que a
intenção é ensinar aos estudantes das universidades públicas da Libéria (a que
a população pobre tem acesso) este novo mecanismo. Além desse projeto elaborado
por Dal'Bó, há a proposta de um gerador de energia, produzido com ímãs e rodas
de bicicleta. Segundo Vinicius, dessa forma será possível criar novas opções de
trabalho.
A Libéria, atualmente, conta com 80% de mão de
obra informal. “Imagina que poderemos ensinar 70 pessoas a construírem um
gerador de energia, utilizando o lixo tecnológico que os países desenvolvidos
jogam na África, justamente com rodas de bicicletas”, exclama o documentarista.
Ele estima que, quando o projeto deixar a Libéria, as pessoas vão estar aptas a
produzirem esse modelo, que, segundo ele, é de baixo custo. “500 reais, sem a
necessidade de gastos contínuos, como é o caso da energia pública, gerador a
gasolina e energia solar”, compara o documentarista.
‘ONU É INCAPAZ DE LEVAR E MANTER A PAZ NA
LIBÉRIA’
A situação da Libéria é avaliada na entrevista
abaixo pelo professor da Unicamp, Omar Ribeiro Thomaz, que pesquisa conflitos
na África.
Omar Ribeiro Thomaz |
Caros
Amigos - O que explica essa tensão
permanente, na Libéria?
Omar Ribeiro Thomaz - A Libéria foi um dos poucos países onde não houve um estado colonial. Ela proclamou sua independência em meados do século xix. Desde sua existência, o país foi palco de grandes conflitos civis. Um dos motivos que explica essa tensão permanente trata-se de uma questão histórica: O universo urbano é associado ao aparato do estado e o universo rural vive na precariedade. Sempre houve tensão entre esses dois espaços.
Caros
Amigos - Qual é o papel do governo diante desses conflitos?
Omar Ribeiro Thomaz - Na Libéria há minas de diamantes que vão envolver disputas pelo controle desses recursos e pelo controle da mão de obra. O aparato do Estado não é inexistente, mas ele participava dessa disputa, sem conseguir controlar. A Libéria testemunhou uma guerra que disputava diamantes e a mão de obra para explorar o diamante. Essa mão de obra era reduzida ao trabalho forçado, geralmente jovens, do sexo masculino, por vezes crianças, eles eram obrigados a fazerem parte das milícias que praticavam esses trabalhos, como uma espécie de “senhores da guerra”. Mas isso era possível porque tem um mercado consumidor de diamante: Nova York, Paris...
Nesse contexto, o Estado liberiano não deixou de
existir, mas ele passa a ser uma das forças por diamantes e por pessoas: este
foi um período de guerra brutal. Faz parte dessa cadeia, cuja ponta final está
no diamante, que é comprado por uma milionária de Nova York. Essa são questões
fundamentais do conflito armado.
Caros
Amigos - Como você analisa o papel da ONU para manter a paz na Libéria?
Omar Ribeiro Thomaz - Nos últimos 20 anos, com raras exceções, a ONU tem se mostrado incapaz de levar e manter a paz. Nesse contexto, geralmente, a paz chega quando a população está exausta e não tem mais forças para lutar. Você vai ter organizações internacionais que vão denunciar grandes empresas que aceitavam comercializar esses diamantes, cuja origem é dessas regiões de conflito: Mão de obra escrava e em sua maioria infantil. O grosso da população vai conseguir se organizar (cada país se organiza de uma maneira). Aí, quando a comunidade se organiza, ONU chega. Ou seja, ela chega quando a população local já está articulando a pacificação.
Caros Amigos - Ellen Johnson, a presidente da
Libéria, recebeu o prêmio Nobel da Paz. Como você analisa o seu governo (eleita
em 2005 e reeleita em 2011)?
Omar Ribeiro Thomaz - A presidente da Libéria foi capaz de trazer recursos e promover um círculo virtuoso de desenvolvimento. Mas a paz é tensa porque há a clivagem do universo urbano e rural. Por outro lado, a Libéria é incapaz de atender demandas básicas da população. O projeto como a Escola de Bambu dificilmente vai conseguir apoio de um Estado que mal consegue se manter. É um Estado, relativamente, incapazes de atender a população. Eles vêem na presidente uma força positiva e ela tem feito um bom trabalho. Ela representa um grande sentido de oportunidade- (Ellen morou e estudou no Estados Unidos). A presidente tem elementos que a favorecem no cenário internacional, favorecendo, assim, a Libéria. Ela conseguiu, de alguma forma, manter a paz. Evidentemente, a Libéria é incapaz de atender o que a Libéria necessita. Ela ainda depende de grandes projetos de saúde e educação, já que o estado é incapaz. O fato é que a Libéria vive uma paz frágil Eu espero que isso não aconteça, mas o pais poderá viver um novo ciclo de conflitos, mesmo com a paz enquanto tendência.
Caros Amigos - A Libéria precisa ser salva?
Omar Ribeiro Thomaz - Nenhum país precisa ser salvo. O que a Libéria precisa é que as pessoas prestem atenção nela. Ela precisa que as organizações internacionais não venham com receita pronta e preste atenção das demandas dos liberianos. A escola de bambu é uma demanda. É preciso levar a sério o que os africanos querem para eles mesmos, sem a mentalidade de ajuda, paternalista....nada disso. A África é um fabuloso reduto de criação de riqueza para o ocidente explorar O conflito é quererem transformar os africanos em objetos de algum tipo de salvação. Quem for fazer algum trabalho lá, que não faça trabalho na Libéria, mas com a Libéria e com os liberianos, escutando o que eles têm a dizer.
Fonte: http://carosamigos.terra.com.br/
Publicado em Sexta, 17 Agosto 2012 14: 31 Escrito
por Caros Amigos.
http://www.youtube.com/watch?v=1OZAw_xCLjI
Nenhum comentário:
Postar um comentário