Mais de 700 pessoas, quase 1% da população indígena
nacional, e próximo a 100 povos ali representados. Falavam uma única língua.
Não, não nos referimos à língua portuguesa, até porque alguns não a falam, mas
a linguagem da unidade, da defesa das terras e dos direitos.
Clovis Antonio Brighenti |
A 11ª edição do Abril Indígena ou Acampamento
Terra Livre, que ocorre anualmente em Brasília (exceto em duas edições que
ocorreram fora da capital federal, em Campo Grande/MS e Rio de Janeiro/RJ
respectivamente), marcou um passo significativo do movimento indígena
brasileiro na manutenção dos direitos e na manifestação da necessidade da
participação indígena em todos os temas que lhes digam respeito, conforme
determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Pela
excepcionalidade dos acontecimentos e pela unidade do movimento esse Abril
Indígena pode ser considerado uma singularidade na história recente do
movimento indígena no Brasil.
Inicialmente analisamos a participação dos jovens
indígenas no ato acontecido na capital. Estes se fizeram presentes em grande
número. Mais de 50% dos participantes eram jovens, muitos deles universitários,
com caras e corpos pintados, portando cocar ao invés de boné e fazendo uso de
celular e computador. Acompanharam atentamente os sábios, escutaram, se
manifestaram e demonstraram entendimento sobre os temas relacionados às suas
comunidades. A não-passividade foi a marca da juventude indígena.
Os Tupinambá, de tanta bravura no período
colonial, demonstraram porque Florestan Fernandes os denominou povo da guerra;
porque Hans Staden os temeu; porque os portugueses tiveram dificuldades de
dominar seu território; porque com positiva astúcia aliaram-se aos franceses no
velho Rio de Janeiro para defender suas vidas.
No Congresso Nacional ecoou o
canto dos guerreiros Tupinambá. No Palácio do Planalto sua fervente indignação
– sendo necessária a intervenção de seus líderes para que não rompessem as
grossas paredes de vidro que separam o governo da população; vidro que apesar
da transparência torna-se opaco aos olhos de Dilma Rousseff, que não consegue
perceber os indígenas. De um povo considerado extinto pelos historiadores,
etnólogos e demógrafos, estão mais vivos do que nunca. Não perderam a coragem e
a tenacidade.
As mulheres, sempre presentes e atuantes.
Mulheres indígenas que não são coadjuvantes ou que precisam clamar pelo debate
de gênero para serem ouvidas, elas estão onde suas comunidades estão. Seus
lugares estão seguros em todos os espaços, seja na guerra ou na reza; em
Brasília, ali estavam elas, ativas, defendendo seus povos e seus direitos.
Mulheres mães com os filhos de colo e netos, que pareciam se divertir nos
corredores do Congresso Nacional como se estivessem em suas aldeias.
As sábias lideranças de todas as regiões do país,
calejadas das lutas em defesa do povo, também disseram presente em Brasília. Astutas
ao perceber as malandragens de certos políticos e lúcidas ao orientar seus
parentes, que não tinham nada de comandados, mas sim de dispostos
participantes.
As lideranças religiosas Guarani Kaiowá, que não
cansaram de entoar seus m’baracás e takuapus e invocar por Nhamandu
para abrir portas no Congresso, foram marcantes. Não há dúvidas de que as rezas
Kaiowá (com acento) e os torés dos povos do nordeste brasileiro foram
fundamentais para as conquistas do movimento indígena.
As pinturas e adornos corporais foram algo a
parte, pela beleza, imponência e delicadeza dos traços e contornos. Singulares
nos rostos das mulheres Kadiwéu, grupo conhecido na literatura como Guaikuru,
povo guerreiro das margens do rio Paraguai que aterrorizava espanhóis e
portugueses. Hábeis cavaleiros que se em tempos passados foram fundamentais por
defender o espaço a Portugal hoje lutam para que o estado brasileiro reconheça
seu território e retire os latifundiários invasores.
Essa é apenas uma mostra do marco da diversidade,
das especificidades e das particularidades vistas na capital neste abril. Mais
de 700 pessoas, quase 1% da população indígena nacional, e próximo a 100 povos
ali representados. Falavam uma única língua. Não, não nos referimos à língua
portuguesa, até porque alguns não a falam, mas a linguagem da unidade, da
defesa das terras e dos direitos.
Mesmo quando o governo, através dos
ministérios da Justiça e do Meio Ambiente, tentou levá-los a uma cerimônia para
a “imprensa ver” recusaram o convite. Queriam falar com a Dilma, mas mal sabiam
que Dilma não conhece a língua indígena; ela aprendeu apenas o
“agronegociês” – o idioma do latifúndio, o idioma da repressão, da qual
aliás foi vítima em tempos recentes.
A firmeza e a convergência das convicções levaram
uma plateia inteira a silenciar para melhor ouvir os discursos, concordando ou
discordando através do entoar dos chocalhos, palmas e vaias, demonstrando
que já sabiam exatamente o que queriam e o que desejavam, ao terem ido à
capital federal.
Quando o movimento indígena deflorou as portas
invioláveis do plenário da Câmara disse aos deputados e aos poderes dominantes
que invioláveis são seus direitos. Direitos que ainda estão no bê-á-bá. Os indígenas
estão ainda empenhados em conquistar o direito básico como a posse, manutenção
e controle das suas terras – estas deveriam ter sido regularizadas até 1993
(Art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).
As terras
precisam estar regularizadas para que as comunidades e povos indígenas possam
ampliar o debate sobre os direitos para outras temáticas, como a gestão
territorial, a autonomia política, a construção de novas bases de relações com
o estado brasileiro e com os demais estados latinoamericanos, no caso de povos
transfronteiriços. Demonstraram também aos deputados que aquele plenário
protegido por portas de vidro não são casulos para metamorfose de propostas
anti-indígenas e retrógradas; que elas devem estar abertas à oxigenação da
sociedade. Aquelas portas não podem ser escudos de defesa de parlamentares, mas
sim voláteis à organização da sociedade.
As conquistas do movimento indígena foram
significativas. A principal delas foi a paralisação do trâmite da PEC 215
na Câmara dos Deputados, mesmo que provisoriamente. Era algo que parecia
impossível porque a bancada ruralista já tinha conseguido a criação da Comissão
de Redação da PEC e pelo menos um partido já havia indicado os membros para
compô-la.
O retorno da tramitação dessa matéria no
Congresso Nacional está condicionado à análise de uma comissão paritária,
criada com representantes indígenas e parlamentares. Essa comissão terá o
encargo de analisar não apenas a PEC 215, mas todos os temas que estão
tramitando na Câmara dos Deputados que dizem respeito aos direitos indígenas.
Entre eles estão: o Estatuto dos Povos Indígenas – paralisado desde 1994;
PEC 237, que permite o arrendamento das terras com a posse indireta de terras
indígenas por produtores rurais; Projeto de Lei 1610, que prevê a mineração em
terras indígenas; e outros temas. Portanto haverá a possibilidade de fazer um
debate amplo sobre os direitos indígenas, e não mais fracionado por assuntos de
interesses anti-indígenas.
No Senado Federal não houve a mesma conquista.
Barrados já na entrada do prédio, os indígenas não conseguiram romper as portas
para ao menos sair o mofo que encobre aqueles senhores e senhoras que sequer
dialogam com a sociedade.
Um pequeno grupo de cerca de 50 pessoas esteve
debatendo com alguns poucos senadores que ainda têm dignidade. Mas a PEC 38 que
dá “ao Senado Federal competência para aprovar processos de demarcação de
terras indígenas” e determina que “a demarcação de terras indígenas ou unidades
de conservação ambiental respeite o limite máximo de 30% da superfície de cada
estado”, permanece tramitando na casa, a galopes.
No Palácio do Planalto não foram recebidos pela
presidente Dilma; se recusaram a falar com a ministra da Casa Civil e/ou
seus auxiliares, mesmo quando estes imploraram por recebê-los. Disseram que não
valia a pena conversar com quem não decide nada, com quem é mandado. As ações
desses subservientes palacianos fizeram lembrar o “pelego”, aquele dirigente
que bajulava o patrão e se dizia amigo do trabalhador, figura comum em chefias
do movimento social e sindical nas décadas de 70 e 80, viva e piorada nos dias
atuais. Avisaram a Sra. Dilma que se ela não conhece o caminho das aldeias eles
conhecem os caminhos do Planalto.
A pauta com Dilma era longa, como longo é o saco
de maldade do governo contra os indígenas. Portaria 303, de iniciativa da
Advocacia Geral da União – AGU – que aplica a todas as terras indígenas do
Brasil as 19 condicionantes propostas por um ministro do STF no julgamento da
área Raposa Serra do Sol. Decreto nº 7.957/2013 que cria a Companhia de
Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública para permitir o uso
da força militar contra indígenas que se opõem a grandes obras do PAC,
especialmente as hidrelétricas. Portaria Interministerial 419/2011 que pretende
agilizar os licenciamentos de obras públicas mediante a redução dos direitos
indígenas, de comunidades tradicionais e do meio ambiente.
O movimento indígena deixou claro que sabe
exatamente quem comanda a edição de Decretos e Portarias. Se Dilma saiu pela
porta dos fundos, 15 minutos antes dos indígenas chegaram ao Planalto, não terá
como fugir permanentemente do diálogo com esses povos, a história não perdoará.
O movimento indígena conseguiu se fazer ouvir.
Pautou a imprensa, chamou a atenção da sociedade, firmou posição frente a seus
perseguidores/detratores/adversários.
Boa parte da sociedade brasileira talvez não
esperasse uma ação tão contundente dos povos indígenas. Eles mesmos devem ter
se surpreendido com a disposição enérgica expressada em suas atitudes, porque
nada do que aconteceu foi planejado de antemão.
Foram para a capital federal para dialogar. Não
foram ouvidos, tiveram que usar a força, física e espiritual, para serem
ouvidos.
Talvez a maior conquista desses povos tenha sido
a unidade na pluralidade, a consciência sobre as consequências das PEC,
Decretos, Leis, Portarias que afetam seus direitos. Demonstraram tenacidade,
capacidade de diálogo e determinação. Diferentemente de outros Acampamentos
Terra Livre, neste o movimento indígena demonstrou amadurecimento, rompeu
com uma forma “ordeira” de manifestações de esperar para se fazer ouvir;
disseram não, basta, queremos que nos escutem, fizeram sua história, e
continuaram na história.
Demonstraram que fazer uso de tecnologias não os
torna menos indígenas e que invadir as portas do mundo da política é exigência
para ser protagonista de sua história, participando e vigiando todas as
instâncias de decisão sobre seus direitos. Recuar na lei nunca mais, uma
Constituição tão jovem precisa amadurecer e avançar, jamais retroceder.
*Clovis Antonio Brighenti é doutor em História Cultural
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/12799
30/04/2013