Por Lúcio Flávio
Pinto - Cartas da
Amazônia
O índio potiguar Tiuré desistiu da
greve de fome que iniciaria no dia 19, dia dedicado ao índio pelo calendário
festivo nacional, no Rio de Janeiro. A suspensão do ato de protesto se deveu à
“inesperada ação do Presidente da Comissão da Anistia, que se pronunciou
em agilizar meu processo e da Secretaria de Direitos Humanos em agir
em prol da aldeia maracanã, além da imensa solidariedade de parentes
e amigos, que me comoveram profundamente”, explicou. A suspensão,
porém, será temporária. “Além de ser um retorno tático, é um gesto de confiança
no Governo, que poderá ser temporário, dependendo do desenrolar nos
próximos dias. Estaremos atentos, mobilizado, poderei retomar meu ato”,
garantiu Tiuré, em comunicação pessoal a este colunista.
Os motivos da greve de fome foram apresentados
num manifesto único na literatura indígena. Merece ser lido com atenção, tanto
pelos que concordam com o texto como pelos que dele discordam. E que, por isso,
merece ser reproduzido na íntegra:
“Eu, Tiuré, do povo Potiguara, José Humberto
Costa Nascimento, ativista dos direitos indígenas, atual resistente da Aldeia
Maracanã, antigo Museu do Índio, considerado o primeiro indígena a receber o
status de Refugiado Político de um Tribunal Internacional reconhecido pelo Alto
Comissariado da ONU para Refugiados, conforme o acordo de Genebra, exilado
durante 25 anos, comunico a todos que a partir do dia 19 de abril, dia
considerado como o Dia do Índio, em local a ser definido no Estado do Rio de
Janeiro, Brasil, aos 64 anos do meu nascimento, interromperei minha
alimentação, iniciando um ritual indígena de greve de fome, contra:
– a política de extermínio das populações
indígenas no Brasil seja por conveniência ou omissão do Governo Brasileiro
– o não reconhecimento, até esta data, do
veredicto internacional de Refugiado Político, pela Comissão da Anistia e o
conseqüente agravamento das feridas causadas pelas rupturas, perseguições,
seqüestro, torturas e ameaças de morte, causadas por agentes do Estado durante
a ditadura.
– a política terrorista do Estado do Rio de
Janeiro usada contra os índios que lutam neste momento para recriar no antigo
Museu do Índio um espaço de Universalidade Indígena conhecida como Aldeia
Maracanã.
De plena e sã consciência realizo este ritual
indígena de passagem como única forma de ação política, pacífica e de muita paz
espiritual, diante do labirinto judicial, legislativo e executivo em que as
questões indígenas se encontram hoje neste País.
É um grito extremo e silencioso contra o modus
operandi resgatado da Ditadura, no uso da truculência e repressão
policial-militar no trato com índios que, resistem no meio rural e urbano,
contra a imposição de megaprojetos desenvolvimentistas que matam nossas matas,
rios e vem destruindo sistematicamente modos de vidas e cultura milenares. Este
ato espiritual de luta política é autônomo, independente de qualquer
ONG, partido político ou organizações religiosas ou não. Meu compromisso
é somente com o grande espírito Tupã. Junto-me aos parentes indígenas que
passaram por este ritual no Brasil ou na América como forma de protesto. Conclamo
a todos, indígenas ou não, do Brasil e do mundo, para se manifestarem,
solidários ou não, para que este grito ressoe no Palácio do Planalto. Levarei
minha greve de fome até as últimas consequências caso o Estado Brasileiro não
se pronuncie nas questões abaixo:
– sobre meu processo na Comissão da Anistia
– sobre as investigações do genocídio indígena
praticado na Ditadura e condenação dos criminosos
– apuração das responsabilidades pelas violências
causadas pela tropa de choque para desalojar recentemente as famílias
indígenas da Aldeia Maracanã no Rio de Janeiro e reintegração de posse do
prédio do antigo Museu do Índio, promovendo a sua necessária reforma e
posterior utilização definitiva pelos e para os índios brasileiros;
– inclusão na pauta governamental de diálogo
aberto e de respeito aos primeiros habitantes desta terra;
Por último, responsabilizo o Estado Brasileiro
pela minha possível morte ou pelas seqüelas irreversíveis pelas consequências
desta greve de fome.
Ao ter conhecimento do manifesto, mandei esta
mensagem de apoio a Tiuré:
“Conheço Tiuré há quase 40 anos. Passamos os anos
mais recentes sem qualquer contato. Eu nem sabia para onde ele tinha ido depois
de deixar a aldeia dos índios Gaviões, em Marabá, no Pará, onde nos conhecemos.
Mas minha memória do nosso civilizado contato (raro nos contatos entre brancos
e índios) guardou a sua marca de pessoa consciente, lúcida e corajosa. Passei a
admirá-lo como um dos mais expressivos líderes indígenas, apesar de seu modo
discreto e filosófico de ser, sem espalhafato, sem a necessidade de ver
confirmadas suas muitas virtudes. Confesso meu espanto e indignação ao saber
que Tiuré está disposto a ir ao extremo da greve de fome, só menos radical,
como meio de protesto, que o suicídio, para conseguir tão pouca coisa. Sua
pauta de reivindicação é de fácil atendimento. Basta que os destinatários da
sua mensagem sejam educados, civilizados e democratas. Se Tiuré precisa
arriscar sua vida por uma plataforma tão magra, com a magreza aviltadora dos
dias que o esperam a partir do dia 19, é porque essas expressões perderam a sua
substância - vivencial e etimológica - nestes nossos dias de confusão. Espero
que, finalmente, possamos ter uma boa surpresa. Nossa dívida para com os povos
dos quais Tiuré é legítimo e valoroso representante é muito maior do que os
compromissos com a Copa do Mundo, e nem precisa que uma entre em colisão com os
outros, se as autoridades tiverem o mínimo de discernimento, boa vontade e
espírito cívico. Os compromissos se traduzem em moeda. A dívida, em
séculos de atitudes que, por sua obstinação no massacre, resultaram na situação
que leva Tiuré ao protesto. Estou com ele. E só abro se oferecerem uma chave de
lucidez na resolução do problema”. Felizmente um melhor encaminhamento à questão
permitiu o ato saudável de suspensão da greve de fome. Ela teve o efeito útil
de interessar muito mais pessoas pela questão.
Lúcio
Flávio Pinto, 62, é jornalista desde 1966. Editor do "Jornal
Pessoal", publicação quinzenal que circula em Belém do Pará desde 1987.
Fonte:http://br.noticias.yahoo.com/blogs/cartas-amazonia/greve-%C3%ADndio-no-maracan%C3%A3-154122110.html
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