Alteração do decreto de criação da Força Nacional é
inconstitucional e quebra pacto federativo, na medida em que confere ao Poder
Executivo força policial própria.
João Rafael Diniz
Alteração do decreto de criação da Força Nacional é inconstitucional e quebra pacto federativo, na medida em que confere ao Poder Executivo força policial própria |
Instituída por César Augusto, primeiro dos grandes
imperadores de Roma, a Guarda Pretoriana foi um corpo militar especial,
destacado das legiões romanas ordinárias, que serviu aos interesses pessoais
dos imperadores e à segurança de suas famílias.
Era formada por homens
experientes, recrutados entre os legionários do exército romano que
demonstrassem maior habilidade e inteligência no campo de batalha. No seu longo
período de existência (mais de três séculos) a Guarda notabilizou-se por
garantir a estabilidade interna de diversos imperadores, reprimindo levantes
populares e realizando incursões assassinas em nome da governabilidade do
império.
Passou quase despercebido, mas, há algumas semanas,
a Presidência da República publicou no Diário Oficial o decreto n.º 7.957/2013,
que, dentre outros, alterou o decreto de criação da Força Nacional de Segurança
Pública. A partir daí, o Executivo passou a contar com sua própria força
policial, a ser enviada e “aplicada” em qualquer região do país ao sabor de sua
vontade.
Numa primeira análise, chamou a atenção de alguns
jornalistas e profissionais da causa ambiental a criação da “Companhia de
Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública”. Essa nova divisão
operacional dentro da Força Nacional terá por atribuições: apoiar ações de
fiscalização ambiental, atuar na prevenção a crimes ambientais, executar
tarefas de defesa civil, auxiliar na investigação de crimes ambientais, e,
finalmente, “prestar auxílio à realização de levantamentos e laudos técnicos
sobre impactos ambientais negativos”.
Não é preciso lembrar que uma das notícias mais
importantes da semana passada foi o envio de tropas militares da Força Nacional
de Segurança Pública para os municípios de Itaituba e Jacareacanga, no sudoeste
paraense.
O objetivo da incursão militar, solicitada pelo ministro das Minas e
Energia, Edison Lobão, é exatamente “apoiar” (leia-se: garantir pela força) o
trabalho de 80 técnicos contratados pela Eletronorte para os levantamentos de
campo necessários à elaboração do Estudo de Impacto Ambiental dos projetos de
barramento do rio Tapajós, para fins de aproveitamento hídrico (construção de
hidrelétricas, pelo menos 7 delas).
Inconstitucionalidade
A criação dessa companhia especial, seguida da
operação de guerra que invadiu terras, inclusive áreas de caça das aldeias
indígenas do povo Munduruku, acabou por obscurecer outra pequena alteração
efetuada pela Presidência no ato de criação da Força Nacional (decreto
5.289/2004), mais especificamente sobre a legitimidade para solicitar o auxílio
dessa tropa.
O art. 4º do decreto original tinha a seguinte
redação:
“Art. 4º A Força Nacional de Segurança Pública
poderá ser empregada em qualquer parte do território nacional, mediante
solicitação expressa do respectivo Governador de Estado ou do Distrito Federal.
Após a alteração, passou a vigorar assim:
“Art. 4º A Força Nacional de Segurança Pública
poderá ser empregada em qualquer parte do território nacional, mediante
solicitação expressa do respectivo Governador de Estado, do Distrito Federal ou
de Ministro de Estado.”
A inclusão dessas cinco palavras mágicas ao final
do artigo 4º acabou por subverter por completo a razão de ser do decreto e, de
quebra, burlou as determinações da Constituição Federal sobre a repartição de
responsabilidades entre os entes da Federação (municípios, estados e União), o
que pode ser considerado inclusive como quebra do pacto federativo.
A partir de
agora, qualquer ministro de Estado (todos eles subordinados à Presidência) pode
solicitar ao Ministério da Justiça o emprego da Força Nacional de Segurança
Pública em qualquer parte do país, para defender os interesses do governo
federal, sem a necessidade de qualquer autorização judicial, nem mesmo
aquiescência do governo do estado em questão.
Para entender melhor a gravidade da situação, é
preciso ter em mente que a Força Nacional de Segurança Pública não é uma
polícia, mas um “programa de cooperação federativa” (art. 1º do decreto), ao
qual podem aderir livremente os governos estaduais, e cujo objetivo é a “preservação
da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” em situações
excepcionais em que as polícias militares dos estados necessitem, e peçam, o
apoio de tropas vindas de outros estados.
Isso porque a Constituição Federal
determina que a responsabilidade por “polícia ostensiva e a preservação da
ordem pública” é das polícias militares dos estados, subordinadas aos
respectivos governadores (art. 144, §§ 4º e 5º). À União restam duas
possibilidades: intervenção federal no estado (art. 34), ou decreto de estado
de defesa (art.136), ambas situações excepcionalíssimas de garantia da
segurança e integridade nacionais, em que serão acionadas as Forças Armadas
(Exército, Marinha e Aeronáutica).
A chave para compreender a mudança é que, até o mês
passado, era preciso “solicitação expressa do respectivo Governador de Estado
ou do Distrito Federal” para motivar o envio da Força Nacional de Segurança
Pública a qualquer parte do país, por tratar-se essencialmente de um programa
de cooperação federativa entre estados e União.
Agora não mais. A recente alteração do art. 4º do
decreto 5.289/2004, transformou a Força Nacional de Segurança Pública na nova
Guarda Pretoriana da presidente Dilma Rousseff. Retirou das mãos dos estados a
responsabilidade pela polícia ostensiva e preservação da ordem pública, nos
locais em que os ministros entenderem ser mais conveniente a atuação de uma
força controlada pelo Governo Federal.
Esse contingente militar de repressão
poderá ser usado contra populações afetadas pelas diversas obras de interesse
do Governo, que lutam pelo direito a serem ouvidas sobre os impactos desses
projetos nas suas próprias vidas e no direito à existência digna, tal como já
está ocorrendo com os ribeirinhos e indígenas do rio Tapajós.
Não por acaso, essa profunda alteração no caráter
da Força Nacional foi levada a cabo sem maiores alardes, no corpo de um decreto
que tratava de outros assuntos. A inconstitucionalidade do ato é evidente,
viola uma série de regras e princípios constitucionais além de atentar contra o
próprio pacto federativo, um dos poucos alicerces da jovem república
brasileira.
João Rafael Diniz é advogado e membro do grupo
Tortura Nunca Mais – SP.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/12567
05/04/2013
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