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sábado, 6 de abril de 2013

A “CRISE URBANA”: URBANIZAÇÃO DA POBREZA E LÓGICA DO CAPITAL





 "O processo de produção do espaço é determinado pelo conflito gerado pelas contradições inerentes às diferentes necessidades de uma sociedade de classes norteada pela acumulação privada da riqueza social."
  Por   Ronaldo Coutinho








“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas nas condições dadas diretamente e herdadas do passado” ( Karl Marx )

Tenho apontado e criticado em diversos momentos dos meus estudos a freqüência com que aparece, tanto na produção acadêmica como nos debates políticos e na própria mídia, a proposição linear de que a apropriação e o uso do solo urbano realizados de forma “desordenada” e “irracional” determinam a crescente recorrência das chamadas “crises urbanas” e suas conhecidas sequelas. 

Também encontra larga repercussão a crença na possibilidade de obtenção de índices positivos de “sustentabilidade urbana”, suposição rigorosamente incompatível com a crescente degradação das condições de vida observada nas cidades brasileiras, ao mesmo tempo em que se fortalece a convicção do planejamento urbano constituir o instrumento adequado para a estruturação de uma nova “ordem urbana” capaz de encaminhar soluções efetivas para a superação das profundas desigualdades que marcam as relações sociais no espaço urbano[1].

O que permanece intocado nessas abordagens é a lógica subjacente intrínseca à produção e à reprodução capitalista do espaço urbano, lógica que está na própria origem do processo de acumulação de capital, caracterizado pelo desenvolvimento desigual e combinado das forças produtivas e pela contradição fundamental da qual deriva a sociabilidade própria do capitalismo.

Nunca é demais enfatizar que a reprodução ampliada do capital implica a reprodução ampliada das contradições que seu movimento histórico incorpora. 

Trata-se, na verdade, do próprio movimento do mundo das mercadorias no e pelo qual o espaço torna-se objeto, não apenas de compra e venda, pois isso acompanha a imposição de atividades diversas e parcelares pela sociedade burguesa mas, sobretudo, sua produção transforma-se em objeto das estratégias que visam impulsionar a acumulação de capital e, portanto, tende a dominar a prática social; o que amplia o campo de tensões e conflitos, pois o que se encontra em questão é assegurar a produção e a reprodução das relações sociais de produção essenciais ao capitalismo através da produção do espaço[2]

Reafirmo que essa produção do espaço é um processo histórico e é precisamente por ignorarem as particularidades do processo de urbanização sob a hegemonia do capital que a grande maioria da produção acadêmica sobre a questão das relações sociais no espaço urbano privilegia a necessidade de estabelecer (ou reconstruir) uma “ordem” para a apropriação e os usos do solo nas cidades, mediante a intervenção do Poder Público, escorada em novos instrumentos e institutos jurídicos e principalmente na presumida racionalidade do planejamento urbanístico, a despeito da própria lógica que estrutura o modo de produção capitalista.

Ignorar as particularidades históricas do processo de urbanização nas áreas do capitalismo periférico determina a inconsistência teórico-metodológica que é o alvo principal dessa crítica, pois a intensa concentração populacional nas aglomerações urbanas embora seja marcante característica das últimas três décadas, não apenas em escala mundial[3], mas também nas áreas referidas, o avanço crescente da urbanização, com o explosivo crescimento das grandes cidades, no caso brasileiro, por exemplo, apresenta um quadro cuja singularidade se expressa naquilo que poderíamos denominar de urbanização da pobreza.

Segundo dados da ONU, em 1950 havia 86 cidades com mais de um milhão de habitantes e, no final de 2008, registrava-se 455 cidades com o mesmo perfil demográfico. Em 1986, Nova York era uma megacidade solitária no planeta, mas em 2008 era acompanhada por mais 22, dois terços delas concentrados nos países periféricos. Pela definição da ONU, as megalópoles seriam as cidades com mais de 10 milhões de habitantes em seus limites geográficos formais. 

Essa expansão cria manchas urbanas que podem englobar dezenas de municípios; assim, por exemplo, nas últimas duas décadas, a conurbação[4] de São Paulo a Campinas tornou-se tão expressiva que criou o que pode ser entendida como a primeira macrometrópole do Hemisfério Sul. Aliás, vale registrar que nas próximas décadas o Terceiro Mundo projeta-se como área geradora de megalópoles[5]

CARLOS WALTER PORTO-GONÇALVES (A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006), com base nos indicadores assinalados, levanta uma questão relevante:
            “Podemos afirmar que estamos assistindo a um processo dedesruralização mais do que urbanização, isto é, estamos diante muito mais de um desfazer do rural do que a conformação do urbano, pelo menos nessas regiões onde hoje vivem a maior parte dos urbanos, segundo a ONU. Afinal, a maior parte dessas populações vive sem os serviços urbanos mais básicos, como saneamento, habitação, saúde, educação e transporte” (184) [grifos meus ].

Fato que impõe atentar para algumas relações entre as transformações operadas pela crescente hegemonia do capital no campo – sobretudo com o agronegócio –, o aumento da produção agrícola voltada para a exportação, o extenso “desemprego técnico”, a retração da agricultura familiar e o estímulo à transformação da grande propriedade em grande empresa, com o avanço da mecanização em detrimento da permanência de famílias empobrecidas no campo, seja como posseiros, arrendatários, parceiros ou trabalhadores assalariados e a continuada expansão das periferias urbanas (especialmente as metropolitanas), com suas reconhecidas implicações[6]

Essa agricultura altamente capitalizada, que se projeta como um verdadeiro renascimento da monocultura exportadora faz com que a segurança alimentar seja deslocada pela lógica mercantil, na medida em que da soja, do etanol e da carne depende a entrada de divisas, na realização do circuito produtivo que beneficia certos grupos mas nunca a sociedade.

A monocultura canavieira e a sojicultura precisam de terras extensas e férteis, recursos hídricos abundantes, máquinas, inseticidas, intensa de áreas rurais para a realização das metas produtivas que impulsionam o agronegócio e, ao mesmo tempo, com a expansão das novas fronteiras agrícolas, tornou estrangeiros milhares de brasileiros em várias partes do próprio país.

Todo esse conjunto de transformações acentua a tendência a uma agricultura sem agricultores e, segundo PORTO-GONÇALVES, “agravando os problemas num momento em que o novo padrão de poder proporcionado pelas novas tecnologias também não emprega tanta gente nas cidades e suas periferias, como o fazia à época da desruralização europeia e estadunidense” (2006:241). Assim, a maior parte dos agricultores é privada de acesso à propriedade da terra e sem a mínima condição de buscar terra para plantar, casa para morar, água para beber e de emprego para viver.

Mesmo que as migrações internas impulsionadas pelo êxodo rural a partir da segunda metade da década de 1960, intensificadas nos anos 70[7] pela forte concentração na região Sudeste, especialmente no Estado de São Paulo, tenham modificado o seu perfil no início da década de 1990, com a redução das migrações de longa distância[8] e o aumento de importância das migrações intra-regionais e intra-estaduais, na atual configuração da rede urbana brasileira os processos de territorialização da pobreza e da chamada “urbanização de risco” ainda reflete, sob muitos aspectos , o recrudescimento das migrações internas, em que pese o fenômeno de transição demográfica do país, com quedas generalizadas nas taxas de natalidade (IBGE/PNAD, 2005).

E nesse quadro, acredito que não se pode ignorar as implicações das transformações decorrentes da presença do grande capital no espaço rural brasileiro. 

Neste sentido, vale retomar uma das passagens de O Capital, quando Marx assinala algumas consequências do avanço da agricultura capitalista:

“ (...) cada progresso da agricultura capitalista não é só um progresso na arte de saquear o trabalhador, mas ao mesmo tempo na arte de saquear o solo, pois cada progresso no aumento da fertilidade por certo período é simultaneamente um progresso na ruína das fontes permanentes dessa fertilidade. Quanto mais um país, como, por exemplo, os Estados Unidos da América do Norte, se inicia com a grande indústria como fundamento de seu desenvolvimento, tanto mais rápido esse processo de destruição. Por isso, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social ao minar simultaneamente as fontes de toda a riqueza: a terra e o trabalhador”[9]

A articulação analítica das transformações ocorridas a partir do avanço do agronegócio com as particularidades do processo de urbanização nas áreas do capitalismo periférico é requisito necessário para a compreensão das mudanças observadas na rede urbana brasileira.

Nunca é demais salientar que a configuração social das cidades no capitalismo periférico está intimamente relacionada à reestruturação produtiva do capital e às mudanças no mundo do trabalho, assentada na conjugação da intensa exploração da força de trabalho com as precárias condições de vida, naquilo que Lúcio Kowarick , com propriedade define como espoliação urbana.

Registre-se o fato de que o processo da expansão urbana estar predominantemente concentrado nas áreas periféricas das cidades também implica a deterioração progressiva das áreas centrais; a expansão descontínua das áreas urbanas aumenta as distâncias, encarece os investimentos para a implantação dos equipamentos urbanos e dos serviços públicos, eleva os custos de operação, manutenção e reduz o aproveitamento dos equipamentos existentes.

Enquanto parcelas do solo urbano parcial ou totalmente atendidas permanecem ociosas, contingentes cada vez maiores da população se deslocam para áreas precariamente servidas e, ao mesmo tempo que a periferia se expande (e também se adensa), a baixa utilização dos serviços instalados condena o poder público à incapacidade sistemática de resolver problemas que esse modelo de urbanização contribui para agravar.

Na verdade, o padrão periférico de expansão urbana deriva da existência de mecanismos econômicos que conferem ao solo urbano funções econômicas alheias à sua utilidade intrínseca enquanto bem natural e ao papel que deveria ter na composição e organização do espaço requerido para atividades públicas ou privadas da população.

Uma breve recapitulação dos principais momentos da história da urbanização brasileira evidencia que o processo de formação e expansão das cidades apresenta um movimento contraditório: elas incorporam de maneira relativamente rápida as inovações tecnológicas, alteram o modo de vida e, ao mesmo tempo, segregam grande parte de sua população.

As dificuldades de acesso à terra e a inconsistência das políticas públicas referentes às demandas de moradia favorecem a proliferação das favelas, dos mocambos, dos cortiços. A segregação dos maiores contingentes populacionais vivem próximas ou abaixo da “linha da pobreza” (assistencialismos à parte) na periferia, submetidas a modalidades extremas de exploração do trabalho coexiste com políticas públicas orientadas para o atendimento prioritário das demandas do capital em matéria de infraestrutura e serviços urbanos, relegando a um plano secundário aquelas relativas à reprodução da força de trabalho.

ENGELS que dera, em 1945, o passo pioneiro no estudo das relações entre a exploração do trabalho, as iníquas condições de vida do proletariado e as linhas matriciais do processo de urbanização no capitalismo, com a publicação de A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, ao analisar a crise de moradia na Alemanha, no momento de expansão industrial no final do século XIX, traça um quadro extremamente preciso da questão habitacional como resultante da estrutura de classes e da distribuição de renda no modo de produção capitalista:

“De onde provém a crise de habitação ?(...) ela é necessariamente produzida pela forma burguesa de sociedade; uma sociedade que não pode existir sem falta de habitação quando a grande massa trabalhadora depende exclusivamente do seu salário, ou seja, da soma de meios indispensáveis à sua subsistência e reprodução (...) quando violentas e cíclicas crises industriais condicionam, por um lado, a existência de um grande exército de desempregados (...) quando grande massa de trabalhadores desempregados concentram-se nas grandes cidades num ritmo mais rápido do que o da construção de casas (...) Numa sociedade assim, a falta de habitação não é nenhum acaso: é uma instituição necessária; e justamente com suas repercussões sobre a saúde etc, só poderá ser eliminada quando toda a ordem social for inteiramente transformada”[10]

Na forma burguesa de sociedade referida por Engels, a cidade tem os usos do espaço determinados pelo mercado, isto é, os lugares da metrópole aparecem como lugares da infraestrutura necessária ao desenvolvimento de cada atividade de modo a permitir uma equação favorável ao desenvolvimento do lucro.

As cidades brasileiras são o resultado de um processo de urbanização que segrega e exclui. No Brasil, onde jamais o salário foi regulado pelo preço da moradia, mesmo no “período desenvolvimentista”, a favela ou o lote ilegal combinado à autoconstrução precária foram partes integrantes do crescimento urbano[11] sob a égide da industrialização e, como sublinha MARICATO, “o consumo da mercadoria habitação se deu, portanto, em grande parte, fora do mercado marcado pelas relações capitalistas de produção”[12]

Como o espaço é condição da realização do capital e, ao mesmo tempo, seu produto[13], convém assinalar que em todos os momentos da reprodução do capital, a interferência do Estado é fundamental e a sua ação desencadeia um processo de revalorização/desvalorização das áreas das cidades e, com isso, a expulsão/atração dos habitantes (em função de sua compatibilização com os movimentos de renovação/revitalização), produzindo o fenômeno da explosão e “modernização” do centro, que se traduz no movimento de expulsão de habitantes em direção à periferia, reproduzindo-a[14]

Em outras palavras, o processo de produção do espaço é determinado pelo conflito gerado pelas contradições inerentes às diferentes necessidades de uma sociedade de classes norteada pela acumulação privada da riqueza social. O processo de valorização conjugado às estratégias das empresas imobiliárias reproduzem um espaço orientado pelos interesses do grande capital que, ao intervir no urbano, interfere na prática sócio-espacial. Assim as rápidas transformações da morfologia ocorrem concomitantemente a uma profunda transformação dos limites e das possibilidades de reprodução das relações sociais no âmbito urbano.

Na urbanização da pobreza, com o predomínio do padrão periférico de crescimento urbano, as relações de propriedade, ao se desenvolverem, criam os limites do uso e produzem a fragmentação dos espaços, com a tendência à destruição/dissolução dos espaços públicos e ao esvaziamento da própria sociabilidade. 

E na medida em que não se orienta para as demandas dos oprimidos em termos de moradia, saneamento, saúde, transporte, educação e reserva os investimentos públicos para as áreas determinadas pela integração submissa à lógica do capital, o Estado reforça a informalidade, a autoconstrução, a marginalização social e a criminalização da pobreza.

Compreender as determinações concretas desse processo de urbanização no Brasil implica necessariamente a compreensão das leis gerais do capitalismo e, em consequência, do próprio urbanismo capitalista.


[1]Ver COUTINHO, Ronaldo.”A urbanização da pobreza e a lógica do capital” In; COUTINHO, Ronaldo;AHMED, Flávio (Coords).Cidade, Direito e Meio Ambiente: Perspectivas Críticas”Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011;”Sustentabilidade e Riscos nas Cidades do Capitalismo Periférico” In: FERREIRA, H. S; LEITE, J. R. Morato; BORATTI, L. V (Orgs). Estado de Direito Ambiental:Tendências. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010; “A Mitologia da Cidade Sustentável no Capitalismo” In:COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi (Orgs). 2ªed. Direito da Cidade:novas concepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
[2]Ver HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo: Annablume, 2005; CARLOS, Ana Fani Alessandri.Novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004 (especialmente p. 89-107).
[3]Cf. ONU/UM-HABITAT. An Urbanising World, 2008.
[4]Expressão que designa o conjunto formado por uma cidade e seus subúrbios ou por cidades reunidas que constituem uma sequência sem, contudo, se confundirem.
[5]Cf.”Megacidades”, matéria investigativa especial do Estado de São Paulo, em 03/08/2008.
[6]Neste sentido, ver SPOSITO, M. E. BELTRÃO; WHITACKER, Arthur Magon (Orgs). Cidade e Campo: relações e contradições entre urbano e rural. São Paulo: Expressão Popular, 2006; ALVES, Adilson Frnacelino; CARRIJO, Beatriz Rodrigues; CANDIOTTO, Luciano Zanetti Pessoa (Orgs).Desenvolvimento territorial e agroecologia.São Paulo: Expressão Popular, 2008; PROCÓPIO, Argemiro. Subdesenvolvimento Sustentável. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2008
[7]Entre 1970 e 1980 estima-se a migração rural-urbana em aproximadamente 15,6 milhões de pessoas (cf.MARTINE, George. “As migrações de origem rural no Brasil:uma perspectiva histórica”In História e população: estudos sobre a América Latina.São Paulo: ABEP/IUSSP/CELADE, 1990).
8.Cf.BERQUÓ, Elza “ Evolução demográfica” In: SACHS, Ignacy; WILHEIM, Jorge; PINHEIRO, Paulo Sérgio (Orgs) Brasil:Um Século de Transformações.São Paulo: Companhia das Letras, 2001 (22-23)
[9]MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. 3ªed.São Paulo: Nova Cultural, 1988, Tomo I, vol.1,p.1
[10]ENGELS, Friedrich. A Questão da Habitação.São Paulo: Acadêmica, 1988 (p.38-39) [grifos meus].
[12]MARICATO,Ermínia “As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias” In: ARANTES, Otília;VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A Cidade do Pensamento Único: Desmanchando Consensos.2ªed. Petrópolis: Vozes, 2000 (p.155).
[13]Ver CARLOS, Ana Fani Alessandri “ A Metrópole entre o local e o global” In: SILVA, Catia Antonia;CAMPOS, Andrelino (Orgs). Metrópoles em Mutação.Rio de Janeiro: Revan;Faperj, 2008
[14]Na verdade, nesses processos de “renovação urbana” de áreas centrais, a exemplo do que ocorreu no projeto apresentado como “revitalização” do centro histórico de Salvador (Pelourinho), o que acontece é a conjugação do propósito de valorização do solo em determinadas áreas de interesse imobiliário e a delimitação de fronteiras de classe mediante intervenções espaciais efetuadas pelo Poder Público.

Fonte:http://editora.expressaopopular.com.br/batalha-das-ideias/

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