Esse interessante texto de Luiz Ricardo Leitão que
usa a morte de Hugo Chaves como gancho para falar sobre democracia e
capitalismo vale apenas ler e fazermos uma reflexão.
Diz a etimologia grega que democracia é o
“poder do povo”, mas a leitura burguesa do termo me leva a crer que o
povo, para as elites, é literalmente o “demo”.
Por Luiz Ricardo Leitão*
A morte de Hugo Chávez provocou múltiplas e impetuosas reações na Venezuela e
no mundo. Cada uma dessas manifestações, por certo, diz muito da posição de
classe e da perspectiva histórica de quem as expressa.
As massas populares
venezuelanas, por exemplo, que viviam há décadas excluídas da vida pública no
país e agora voltam a assumir um papel decisivo na política nacional, já
inscreveram o Comandante na galeria de heróis da pátria e se comprometem a
levar adiante a Revolução Bolivariana. Os empresários e a chamada
“imprensa livre”, porém, saúdam sem nenhum pudor sua passagem para o infinito –
e cacarejam, aos quatro ventos, que é hora de ‘restaurar’ a democracia (?) na
terra de Bolívar.
Em meio ao seu funeral, esse desconforto da mídia e dos monopólios é a melhor
homenagem que se poderia prestar ao presidente que mandou a ALCA àquele lugar –
e enterrou de vez a espúria “Aliança de Livre Comércio” (?) ianque na Cúpula de
2005. Basta ver as manchetes estampadas pelos veículos mais raivosos de
Bruzundanga...
Em tom de filme de vampiros, ao estilo adolescente playboy,a
Veja, porta-voz da banca transnacional, amaldiçoa “a herança sombria”
de Chávez; a Época, subnitrato de O Globo, da
mui católica família Marinho, não fica atrás e, reeditando “O Exorcista”,
conclama a legião dos democratas (?) a livrar a América Latina da influência
maldita do chavismo e do bolivarianismo.
Na TV, vi coisas ainda mais bizarras. Em um programa da Globo News, um
suposto acadêmico alertava sobre o risco de um ataque da Venezuela aos EUA (!)
e insistia em (des)qualificar Chávez de “ditador”, ainda que o dileto confrade
Maringoni, também presente, lembrasse-o civicamente de que o Comandante fora
eleito e reeleito pelo voto popular.
O argumento de nada serviu: com o aval da
entrevistadora, o papagaio da intelligentsia alegou que mais de uma
década no poder era um sinal inequívoco de tirania. Uai, sô! E a
poderosa Sinhá Margareth Tahtcher, a Dama de Ferro britânica que reinou entre
1979 e 1990, o ioiô professor ousaria tachar de “ditadora”?
Pois é, meu caro e fiel leitor, esses são os “guardiões” da democracia, sempre
mui zelosos das regras do livre mercado, ou melhor, do mundo livre ocidental.
Ouvindo-os discorrer com enorme pompa e circunstância sobre as mazelas alheias,
eu até poderia crer que vivo no melhor regime do planeta...
De fato, priva-se
cá em Bruzundanga do festival da democracia! Ao contrário do que ocorre na
Venezuela, onde o povo insiste em inundar as ruas para afirmar sua soberania,
nossa Paideia midiática logrou feito bem maior, tornando-nos o país que mais
tempo navega na internet. Para tal proeza, em muito têm contribuído as
aulas intensivas de educação política que seres iluminados como Faustão, Silvio
Santos, Pedro Bial, Gugu e Ratinho nos brindam diuturnamente nas telas da TV.
E o que dizer dos Poderes da República, a começar pelo excelso Congresso Nacional?
Sinto-me mui orgulhoso, sem dúvida, ao ver o egrégio Renan Calheiros (PMDB),
figura ilibada da política nacional, ser eleito o novo (?) presidente do
Senado. E o que dizer do pastor-deputado Marco Feliciano (PSC), célebre por sua
homofobia e racismo, indicado para presidir a Comissão de Direitos Humanos (!)
da Câmara? Será que a bancada bolivariana do parlamento venezuelano
igualaria tamanhos feitos?
Não carece de gastar prosa com os próceres do Executivo, carece? Gente do
quilate de Alckmin, Cabral, Wagner e outros governadores, sem falar nos
maravilhosos alcaides que promovem a festa das empreiteiras e a limpeza étnica
para a Copa de 2014, são a dádiva maior da democracia representativa
tupiniquim. Basta ver o quanto se aprende nas escolas públicas ou como são bem
atendidos os cidadãos nos hospitais para aquilatar o profundo compromisso
social dos nossos síndicos.
Diz a etimologia grega que democracia é o “poder do povo”,
mas a leitura burguesa do termo me leva a crer que o povo, para as elites, é
literalmente o “demo”... E, não por acaso, Chávez, um mestiço igual ao seu
povo, por muito tempo ainda será pintado como um demônio que veio ameaçar a
ordem e a paz nas Américas. Gracias, Comandante, por desafinar o coro
dos contentes. Seguimos em combate!
* Luiz Ricardo Leitãoé escritor
e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários
pela Universidade de La Habana,
é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima
Barreto – o rebelde imprescindível.
Fonte: http://editora.expressaopopular.com.br
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