Dênis de Moraes fala sobre vida e obra do
escritor Graciliano Ramos e afirma que ele tinha clareza absoluta de
que um escritor que se distancia das questões sociais e políticas não é capaz
de retratar em profundidade a condição humana
Sheila
Jacob do Rio de Janeiro (RJ)
O escritor alagoano Graciliano Ramos, por volta de 1948.
Foto: Acervo Graciliano Ramos
|
Protagonista de uma trajetória intensa e dramática,
o homem Graciliano Ramos permaneceu, durante muito tempo, desconhecido de seus
leitores e da opinião pública em geral. Apesar da consagração de sua obra,
pouco se sabia da vida do autor de Vidas Secas, São Bernardo e Memórias
do Cárcere.
Procurando suprir essa lacuna, o jornalista Dênis de Moraes,
professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal
Fluminense (UFF), passou dois anos envolvido com uma intensa pesquisa em
acervos. Também fez uma série de entrevistas com pessoas que conviveram com
ele. Este rico trabalho de investigação resultou na biografia O Velho Graça,
lançada em 1992, ano de centenário do escritor.
Recentemente, 20 anos depois, a
Boitempo Editorial reeditou esse importante material, que mostra, ao longo de
suas cerca de 350 páginas, como as preocupações e o exemplo de Graciliano Ramos
continuam mais atuais do que nunca. O lançamento dessa nova edição está marcado
para os dias 27 e 30 de novembro no Rio de Janeiro e em São Paulo,
respectivamente.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato,
Dênis de Moraes fala sobre suas motivações ao escrever e relançar a biografia
do escritor, cuja vida se confunde com a própria história do Brasil do início
do século 20.
Graciliano teve fama de ser uma pessoa seca e introvertida, mas
neste livro aparece o homem que existiu por trás dos estereótipos: brincalhão,
irônico, romântico e de profunda solidariedade e sensibilidade em relação à
miséria humana.
A indignação com a perversa estrutura fundiária que testemunhou
no Nordeste foi amadurecendo e, no Rio de Janeiro, chegou a ingressar no PCB,
entendendo o socialismo como a saída para a humanidade. Em sua literatura,
soube conciliar a condição humana universal com a denúncia da realidade social
brasileira, sem deixar de efetuar um cuidadoso e obsessivo trabalho estético.
Como explica Dênis de Moraes, hoje é fundamental voltar a Graciliano Ramos não
apenas para entender o Brasil de ontem, mas principalmente para ver como a
estrutura desigual que ele denunciava ainda permanece.
“Apesar dos eventuais
avanços e transformações que vivemos ao longo das últimas décadas, na essência
vivemos os mesmos dilemas da época do escritor. É a mesma desigualdade social
sem paralelo, terríveis injustiças, situação de profundos desníveis e
descompassos regionais desse país imenso”, observa.
Confira a Entrevista
Dênis de Moraes |
Brasil de Fato – Como foi seu primeiro encontro com
Graciliano Ramos?
Dênis de Moraes – Meu primeiro contato com a
literatura de Graciliano foi na adolescência, quando li Vidas Secas incentivado
por meu saudoso pai [Francisco Pimenta de Moraes], que era professor de
Literatura Brasileira, ministrava curso sobre o autor e sempre me chamou muita
atenção para ele. Depois, no vestibular, me deparei com São Bernardo.
Este livro, para mim e para alguns colegas, foi um clarão na consciência, pois
o universo tirânico e feudal de Paulo Honório, protagonista do livro, guardava
alguma semelhanças com o clima de ditadura que nós vivíamos em 1972. O momento
de consolidação da minha admiração por Graciliano foi quando li Memórias do
Cárcere, sempre me identificando muito com os compromissos sociais,
políticos e éticos do escritor. Ou seja: meu interesse surgiu a partir da
iniciação dentro de casa e se solidificou com as identidades que fui
construindo com ele e que, ao longo dos anos, se aprofundaram.
Brasil de Fato – E como surgiu a ideia dessa
biografia?
Dênis de Moraes – A ideia da biografia veio da
convicção de que o escritor Graciliano era muito conhecido por suas obras, sua
literatura, mas o homem que se ocultava por trás dele só era conhecido pelas
pessoas mais próximas, amigos e familiares. E era um homem que teve uma trajetória
extremamente acidentada, rica e complexa. Pensei que era necessário lançar
luzes sobre sua vida, principalmente porque episódios cruciais de sua jornada
se confundiram com momentos muito expressivos da história do nosso país do
início do século 20, fatos que Graciliano ou protagonizou ou testemunhou – como
a passagem da República Velha para o governo Vargas e a insurreição comunista
de 1935. O interessante é que no contato humano com pessoas de geração,
familiares e amigos mais próximos eu sentia uma série de vazios, lacunas a
respeito de certas passagens da vida dele. Mesmo quem era próximo e o conhecia
razoavelmente bem demonstrava curiosidade e certa perplexidade em relação a
etapas que ele vivenciou. Isso só confirmou a premissa de que o homem que se
ocultava por trás do grande escritor, por ter tido um percurso singular,
precisava de uma biografia.
Brasil de Fato – Você fala que há 20 anos, quando a
biografia foi lançada, o Brasil desconhecia esse homem. E hoje? Qual a
importância da reedição do seu livro?
Dênis de Moraes – Sem dúvida, a repercussão do
livro em 1992, ano do centenário do escritor, direcionou um olhar mais
abrangente para ele. Acho que despertou, pela excelente acolhida, um grande
número de leitores de Graciliano interessados pelas circunstâncias, políticas, sociais,
existenciais e familiares que o envolveram e que ele levou para sua obra.
Brasil de Fato – Que exemplos você pode dar?
Dênis de Moraes – O período da prisão, as relações
dele com o stalinismo cultural, a época em que ele foi prefeito [de Palmeira
dos Índios/AL] e secretário de Educação, o drama de um intelectual cuja obra
tem amplo conhecimento da crítica e que em vida não conheceu a prosperidade
material que merecia, vivendo a vida inteira em uma corda bamba financeira...
Essas são algumas questões. E me chama atenção o fato de que isso tudo
aconteceu depois que ele se consagrou com a publicação de São Bernardo,
Angústia e Vidas Secas. Nos cerca de 20 anos que Graciliano viveu
após a consagração ele enfrentou toda sorte de infelicidade e infortúnios para
tentar manter a coerência com sua vocação literária. Fico bastante surpreso
ainda como a revelação biográfica de Graciliano encontra ainda hoje uma
acolhida e uma repercussão extraordinárias, mostrando que uma série de aspectos
da sua jornada são bastante atuais. Por exemplo: o problema da ética na vida
pública, o que nosso país continua enfrentando de maneira dramática. Há também
a condição do intelectual em uma sociedade do Terceiro Mundo, já que ainda hoje
permanecem as dificuldades e restrições para que o intelectual possa exercer
seu ofício de maneira mais independente e autônoma. 20 anos depois vejo que foi
tão emblemático, rico, variado, intenso e dramático o percurso de Graciliano
que ainda hoje sua história desperta muitos debates e discussão na imprensa.
Brasil de Fato – Sua pesquisa foi bem completa.
Você leu cartas, vasculhou publicações na imprensa, entrevistou muita gente...
Quanto tempo você levou para fazer essa pesquisa e como foi construir essa
biografia?
Dênis de Moraes –Levei dois anos para fazer o livro [1990-1992],
consultando arquivos públicos e privados do Rio de Janeiro, São Paulo, Maceió e
Palmeira dos Índios. Tive a felicidade de encontrar vivos personagens
fundamentais de sua história, todos muito idosos. Tive a alegria de conversar
com vários amigos, companheiros de geração, escritores, intelectuais,
familiares... Tive também a sorte de reencontrar antigos moradores de Palmeira
dos Índios, testemunhas que puderam relembrar os dois anos gloriosos em que ele
foi prefeito da cidade. Foi um trabalho extremamente meticuloso, cansativo e
prazeroso porque o mosaico foi sendo construído peça por peça. Isso sem contar
os depoimentos contrastantes com outros testemunhos ou então com documentos, o
que demanda um trabalho em dobro do biógrafo. Isso aconteceu algumas vezes
durante a minha pesquisa
Brasil de Fato – E o que tem de novo nessa nova
edição?
Dênis de Moraes – Nesses 20 anos eu continuei
ligado a Graciliano Ramos, inclusive pesquisando mais coisas que eventualmente
pudessem ser acrescentadas no dia em que eu fosse mexer de novo nesse livro.
Conversei com pessoas que só depois de 1992 fui localizando e descobrindo
vínculos e laços com o escritor. Foi em uma dessas entrevistas, com o saudoso
escritor Antonio Carlos Villaça, que cheguei a uma das revelações inéditas
dessa nova edição: o único encontro entre Getúlio Vargas e Graciliano Ramos.
Naquela época [1937] no Rio de Janeiro as pessoas tinham hábito de sair depois
do jantar para dar uma volta, não havia televisão para prender as pessoas em
casa. Foi num desses passeios que os dois se encontraram no Catete. Getúlio o
cumprimentou, e ele não respondeu. Esse episódio foi muito significativo,
porque foi uma espécie de vingança silenciosa contra o chefe do regime que o
encarcerara sem processo, sem culpa formada, sem interrogatório, sem nada. Além
desses testemunhos, essa edição traz um apêndice com a melhor entrevista dada,
na minha opinião, por Graciliano. Foi ao saudoso jornalista Newton Rodrigues,
do Rio de Janeiro, publicada em junho de 1944 na revista Renovação, que
teve apenas dois números e foi fechada pelo Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP). Ele fala sobre a condição do escritor em sociedade
periférica; as relações entre literatura, sociedade e política; o problema da
tutela ideológica sobre o trabalho artístico; que tipo de literatura condiz com
o público de massa, chegando à conclusão de que é o folhetim. Ora, isso é
visionário da parte dele, pois a telenovela de hoje equivale ao folhetim de
ontem.
Brasil de Fato – E desses depoimentos que você
recolheu, quais te marcaram mais?
Dênis de Moraes – Foram muitos, porque eu descobri
que a chamada “história oficial” criou uma série de mitologias e lendas em
torno de Graciliano Ramos: um homem rude, intratável, intolerante, grosso.
Descobri que era na verdade um sertanejo que tinha deixado o Nordeste e que,
preso, veio parar na corte da capital federal. Ficou quase um ano encarcerado e
depois teve que reconstruir sua vida do zero. Ele tinha seus rompantes, mas era
uma pessoa muito mais complexa do que supunha a história oficial. A pesquisa
mostra que Graciliano era ambivalente; tinha momentos de impaciência, mas podia
ser o mais acolhedor dos homens, o mais tolerante, o mais solidário. Um bom
exemplo disso são os jovens escritores que o procuravam na famosa Livraria José
Olympio nos anos 1940 para mostrar originais. Quando ele reconhecia valor em
algum texto, ele se sentava com esses jovens escritores para dar conselhos,
passar experiências de criação. Isso aconteceu com Guilherme Figueiredo, Alina
Paim... Outro mito: apresentavam Graciliano Ramos como anti-romântico, tentando
transformá-lo numa pessoa insensível. Nunca poderia ser considerado assim um
homem que conquistou sua segunda mulher, Heloisa de Medeiro Ramos, através de
cartas. Como poderia não ser romântico um homem que, para fazer um mimo à sua
esposa, levou tantas vezes maçãs para agradá-la que ela chegou ao ponto de não
agüentar sentir mais o cheiro desta que era sua fruta predileta! Ou seja: essa
pesquisa mostrou que era necessário desfazer uma série de supostas verdades que
estigmatizavam e o aprisionavam em um Graciliano que, se existia, não era o
único. Como todos nós, ele também tinha suas complexidades.
Brasil de Fato – Ao ler sua biografia a gente vê
que a participação política do escritor vai se acentuando. Quando foi preso, em
1935, ele não chegou a participar ativamente do levante comunista...
Dênis de Moraes – Isso. Ele não participou
diretamente, era apenas uma pessoa progressista. Em Maceió frequentava uma roda
literária de escritores quase todos progressistas, alguns de esquerda. Tinha
visão anti- oligárquica, anti-elitista e muito crítica em relação aos arranjos
de cúpula da política brasileira para manter as estruturas desiguais do país.
Ele tinha também uma verdadeira aversão aos coronéis e à política nordestina.
Graciliano Ramos tinha inclusive uma opinião crítica também sobre a insurreição
comunista de novembro de 1935, a qual considerava um exemplo do espontaneísmo e
da falta de avaliação correta da correlação de forças. Apesar de saber que
estava tudo errado e era indispensável fazer qualquer coisa, considerou um erro
terrível aquele movimento.
Brasil de Fato – Ele parte dessa visão mais
distanciada e chega a se filiar, depois, ao PCB.
Dênis de Moraes – A crítica que ele fazia ao mundo
agrário não era teórica-conceitual. Era uma crítica que vinha das experiências
de vida, da indignação de ver a exploração do homem do campo, as misérias que
se reproduziam no Nordeste... Por isso batizei a segunda parte do livro de O
Testemunho do Tempo, porque ele viveu aquilo tudo; se não sofreu na carne,
pelo menos testemunhou e depois levou para sua literatura, pois sabia que ela
não poderia estar desvinculada da realidade do homem brasileiro. Por exemplo:
toda aquela situação de Vidas Secas ele presenciou no sertão pernambucano
quando, ainda menino, se deparou com o flagelo da seca. Posteriormente ele
conviveu com as elites políticas latifundiárias, com os coronéis do sertão.
Então, ao longo do tempo, ele foi acumulando muito sentimento de repulsa e
rejeição ao poder opressivo, identificado, inicialmente, nas estruturas
semifeudais e agrárias do Nordeste brasileiro. Depois que ele sai da prisão e
vai para o meio urbano, principalmente nos anos de 1940, ele não apenas
consolida e sedimenta essa visão como passa a ter uma noção mais ampla dos
mecanismos do poder na capital federal. No Rio ele teve contato com um Brasil
ainda extremamente desigual, perverso, injusto. Portanto, aquele sentimento
inicial de indignação foi amadurecendo na compreensão de que ele tinha que se
cercar de um arsenal teórico-conceitual para tentar entender a realidade
brasileira. Não poderia ficar só na visão interpretativa. É por isso que se
aproxima do marxismo, descobrindo nele um método de análise que dava conta da
compreensão das estruturas profundamente perversas da sociedade brasileira.
Brasil de Fato – A questão internacional também
entra aí, pois Graciliano foi duramente crítico ao fascismo internacional.
Estava inclusive na mesma prisão em que estava Olga [Benário] e testemunhou sua
deportação para a Alemanha...
Dênis de Moraes – Sem dúvida. O fascismo lhe
causava verdadeira repulsa, e o daqui também. Esse sentimento o levou, por
exemplo, a certa vez na José Olympio cuspir no chão e dizer que “a ditadura do
Estado Novo era uma cachorrada”. Ele tinha verdadeiro ódio do Estado Novo e
muito desprezo pela figura de Getúlio Vargas. Temos que situar o ingresso dele
no PCB como uma adesão à esperança que surgia no pós Segunda Guerra com a
ascensão do socialismo. Não é casual o fato de que tantos escritores, artistas
e intelectuais entraram para o PCB depois de 1945. Com Graciliano não foi
diferente: ele viu no socialismo o caminho para a humanidade, no sentido da
igualdade, justiça social, inclusão.
Brasil de Fato – E quais foram os problemas que ele
enfrentou no partido?
Dênis de Moraes – O problema veio com a
intensificação da Guerra Fria, do mundo polarizado. Naquele momento ele se viu
na difícil situação de estar cercado e patrulhado pela política cultural que o
PCB importou da União Soviética, o chamado “realismo socialista”. Ele caminhou
no fio da navalha entre a convicção filosófica no socialismo e o respeito pelo
partido como instituição, ao mesmo tempo em que rejeitava a tutela ideológica
sobre a obra de arte e, principalmente, sobre sua literatura. Ele foi um dos
poucos intelectuais que não aceitaram a intervenção do partido em sua criação
ficcional e pagou o preço alto da incompreensão, sofrendo críticas injustas. Mesmo
assim ele nunca deixou de ter absoluta fidelidade ao partido, ao socialismo e à
idéia de que o lado justo estava com a esquerda. Acho que nesse sentido ele
acabou sendo um militante exemplar. É formidável o fato de que ele jamais falou
publicamente ou escreveu uma linha sequer contra o PCB. Ele não evidenciou sua
divergência; ela aparecia dentro do partido ou dentro de casa em conversas com
seus camaradas. Esses fatos também nunca o fizeram colocar em xeque sua crença
sólida no socialismo como saída para a humanidade.
Brasil de Fato – E como toda essa indignação e
revolta frente às injustiças do país se apresenta na literatura de Graciliano
Ramos, que dizia preferir a dureza da realidade às ilusões românticas? No livro
você mostra como ele conseguiu conciliar a denúncia social com uma profunda e
obsessiva preocupação estética...
Dênis de Moraes – Graciliano sentiu que o realismo
crítico precisava ser aprofundado, no sentido de fazer relação entre a
literatura e a sociedade. Ele costumava dizer que não podia escrever nada sem
ter vivido. Ao mesmo tempo, tinha absoluta consciência do valor de sua
literatura. Ele era um artista da palavra, uma pessoa que retratava a realidade
social e política a partir de um trabalho profundamente ficcional e estético.
Graciliano tinha preocupação obsessiva com a forma; era capaz de reduzir
originais à sua proporção mínima, sempre cortando excessos, gorduras,
derramamentos. Ele foi um estilista da concisão, que conseguiu expressar muito
com poucas palavras. Suas metáforas são ao mesmo tempo enxutas e muito ricas.
Ou seja: ele tinha a preocupação de manifestar seu vigor crítico e humanista
sem cair em uma retórica fácil e sem contentar se com o tom panfletário. Tinha
também profunda consciência de sua função social e clareza absoluta de que um
escritor que se distancia das questões sociais e políticas do seu tempo não é
capaz de retratar em profundidade a condição humana. Isso assegura à sua obra o
signo da permanência, pois trabalhou as questões do homem universal sem perder
de vista os dramas, as angústias, os sonhos e os desafios do homem brasileiro.
Não é casual que o escritor russo Dostoievski tenha sido uma de suas
referências, ao mesmo tempo em que nutria profunda admiração pelos grandes
romancistas sociais, inclusive do ciclo nordestino.
Brasil de Fato – E o país que Graciliano Ramos denunciou
um país de exploração, latifúndio, da miséria que desumaniza os homens... Esse
Brasil mudou ou é o mesmo?
Dênis de Moraes – Apesar dos eventuais avanços e
transformações que vivemos ao longo das últimas décadas, na essência vivemos os
mesmos dilemas da época de Graciliano Ramos. É a mesma desigualdade social sem
paralelo, terríveis injustiças, arranjos de cúpula para resolver problemas
políticos, sede do poder pelo poder, uso indevido da máquina pública, alianças
contraditórias, profundos desníveis e descompassos regionais desse país
imenso... Acredito que a literatura social dele se mantém muito vigorosa ainda
hoje porque muitos desses contrastes permanecem em linhas gerais. É por isso
que o retorno a Graciliano é inspirador e iluminador, pois significa voltar à
consciência crítica de um Brasil que, assim como no passado, precisa germinar,
superar suas contradições, fazer rupturas e transformações, abandonar arranjos
que só favorecem as elites e classes dominantes.
Brasil de Fato – Como você mostra, Graciliano é um
dos grandes exemplos de um intelectual comprometido com as questões do país,
assim como o ilustrador Henfil e o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho [Vianinha],
que também foram biografados por você. Como você enxerga o papel da cultura na
transformação da sociedade?
Dênis de Moraes – Meus três biografados têm a
semelhança de serem artistas e/ou intelectuais comprometidos com o ideário da
esquerda de combate às injustiças, busca da igualdade, rompimento das
estruturas arcaicas da sociedade brasileira, necessidade de libertação dos
oprimidos e excluídos... Isso tem a ver com a ideia de que cultura também pode
ser instrumento para a luta política e para a transformação e a emancipação.
Sem essa compreensão vamos relacionar a cultura
sempre ao entretenimento. Nada contra o lazer, mas não se pode pensar a cultura
como um aspecto isolado da sociedade e da política. Então essas três biografias
são pretextos para falar do homem brasileiro e da importância de se pensar a
experiência estética, artística e literária como um recurso de intervenção na
realidade com vistas à construção de uma sociedade justa e generosa. Com
Graciliano Ramos, Henfil e Vianinha, a cultura é colocada em uma esfera
emancipadora. Henfil dizia que gostava do humor porque conseguia “dar um soco
no fígado de quem oprime”. Apesar de nunca ter dito uma frase como essa, o
vigor com que Graciliano atacava as classes dominantes e as estruturas
desiguais da nossa realidade mostra que ele também via, na cultura, um lugar
privilegiado para esclarecer, formar consciências e apontar novos valores
através da sensibilidade estética. Hoje ainda há setores do mundo das artes que
entendem esse papel e o vêm desempenhando, apesar de a retórica ideológica
neoliberal tentar nos convencer de que não é necessário ter uma cultura emancipatória,
de questionamento. Na música, na literatura, nas artes cênicas e em outras
áreas, a permanência de vozes comprometidas com a crítica e com a solidariedade
aos que sofrem é uma demonstração esperançosa de que nem tudo está perdido.
05/12/2012
Dênis de Moraes nasceu no Rio de Janeiro em 1954.
É doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e
pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), sediado
em Buenos Aires, Argentina. É professor associado do Departamento de Estudos
Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Federal Fluminense e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). Autor e organizador de diversos livros, entre
os quais Cultura mediática y poder mundial (Norma, 2006), Sociedade midiatizada
(Mauad, 2006), Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise (Record,
2004), Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder
(Record, 2003), O concreto e o virtual: mídia, cultura e tecnologia (DP&A,
2001), O planeta mídia: tendências da comunicação na era global (Letra Livre,
1998), Vianinha, cúmplice da paixão (Record, 2000), O velho Graça: uma
biografia de Graciliano Ramos (José Olympio, 1992) e O rebelde do traço: a vida
de Henfil (José Olympio, 1996
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