Por Fábio Mura
O Homem Vitruviano - Leonardo da Vinci |
Uma decisão judicial revertendo uma reintegração de
posse e tendo como beneficiária uma comunidade indígena, e, ademais,
determinando que o Estado brasileiro (através do órgão indigenista oficial)
promova a conclusão dos estudos para identificação e delimitação de uma terra
indígena é seguida de uma chuva de artigos em jornais, revistas e blogs, que
estão com ela diretamente relacionados. Em seu cerne, estes artigos focam-se
num ataque aos antropólogos que são os profissionais responsáveis por tais
tipos de estudos. Tal coincidência de fatos merece uma devida contextualização
e uma análise, que passaremos a delinear.
O contexto que dá origem à solidariedade da
sociedade civil para com os indígenas e à reação midiática em defesa do
agronegócio.
Cacique Nízio Gomes. Foto: MPF |
Vem cada vez mais ganhando a atenção da sociedade
civil a situação em que se encontram os indígenas Guarani-Kaiowa e
Guarani-Ñandéva de Mato Grosso do Sul.
Os episódios de violência de que estes indígenas
têm sido alvo em diversos enfrentamentos fundiários chamam a atenção por sua natureza:
pessoas espancadas, feridas por arma de fogo, mortas, indícios de sequestro de
corpos de vítimas para confundir investigações policiais, assim como um clima
de tensão, gerado em cercos aos acampamentos organizados por esses indígenas
nos espaços que consideram como de sua ocupação tradicional, e demonstrações de
opulência paramilitar nas estradas que conduzem às fazendas da região.
Nos últimos tempos, a luta de uma comunidade kaiowa
específica, Pyelito Kue, tem se constituído em algo emblemático pela tenacidade
demonstrada por seus integrantes. Acampada próxima ao rio Hovy, no município de
Iguatemi, sul do estado, essa comunidade afirmou uma disposição de morrer,
antes de deixar o que consideram como suas terras de origem e de onde foram
expulsas. Com efeito, não obstante a fragilidade de vida no acampamento –
sofrendo de fome, com casos de suicídio entre seus membros –, as famílias de
Pyelito reagiram à liminar de despejo emitida pela Justiça Federal de Naviraí
(MS) dispondo-se a morrer na terra ancestral.
Todos esses fatores (embasados por outros de
caráter especificamente jurídicos) eram de conhecimento do juiz, através da
argumentação interposta pelo MPF. Na audiência para decidir o pleito, o juiz
pode, ademais, contar com os esclarecimentos prestados pela antropóloga
responsável pelos estudos de identificação e delimitação da terra indígena
correspondente à comunidade de Pyelito, no concernente ao processo de
expropriação fundiária que desembocou na expulsão das famílias de Pyelito de
seus espaços de ocupação tradicional – ora reivindicados. Não obstante essas
informações, e o fato de os índios ocuparem apenas um hectare do total de 700
da fazenda cujo proprietário impetrou a ação de reintegração de posse, a
sentença foi desfavorável aos indígenas – de modo idêntico, aliás, à esmagadora
maioria dos casos julgados em primeira instância em Mato Grosso do Sul sobre
disputa fundiária envolvendo comunidades Guarani-Kaiowa e Guarani-Ñandéva.
Em seguida, a referida atitude dos indígenas
provocou a solidariedade e a indignação de parte significativa da sociedade
civil, que percebia na decisão judicial uma atitude que atentava ao direito à
vida e à especificidade dessa vida do ponto de vista indígena, assim refutando
o que se revela como um genocídio e um etnocídio dos Guarani.
Através das redes sociais da internet, iniciou-se
uma campanha, de repercussão nacional e internacional, focada principalmente
sobre o destino da comunidade de Pyelito e, de modo mais geral, sobre o destino
de todo este povo.
Em decorrência de recurso da decisão no Tribunal
Regional Federal, não apenas foi acatado o recurso, suspendendo a liminar de
despejo, mas, no corpo da sentença, intimou-se o governo, responsável pelo
processo administrativo, a publicar, no prazo de 30 dias, o relatório de
identificação e delimitação da terra indígena – no caso, a “Terra Indígena
Iguatemipegua I”, que abrange as comunidades de Pyelito Kue e Mbarakay.
É justamente a partir, e contrastando o mérito
desta última decisão judicial, que no espaço de apenas duas semanas tem-se uma
sequência de artigos publicados pela revista Veja e pela Folha de S.
Paulo, apoiados em resultados de uma pesquisa feita pelo Datafolha, sob
encomenda de um organismo nada isento de interesse, como é a Confederação
Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Mais do que aprofundar-se
em entender casos específicos como o de Pyelito, o intento destes artigos é
discutir quais seriam as “reais exigências e interesses dos índios
contemporâneos” (sic).
Vejamos (e analisemos) a seguir os principais dados
e argumentos apresentados pelos articulistas, bem como suas conclusões.
Os argumentos de certa mídia sobre os povos
indígenas
Os artigos veiculados pela revista Veja
(Visão medieval de antropólogos deixa índios na penúria), de Leonardo Coutinho
(http://www.abant.org.br/file?id=864 – Nota de João Pacheco de Oliveira,
Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas, em maio de 2010 sobre a matéria
intitulada “A farra da antropologia oportunista”, elaborada pelo mesmo mau
jornalista), e os de autoria de Reinaldo Azevedo (“As reservas indígenas e o
surrealismo brasileiro: celular, televisão, cesta básica, Bolsa Família e 13%
do território brasileiro para… nada! E há gente querendo mais!”, e “O que
realmente querem os índios e o que alguns antropólogos querem que eles
queiram”…), publicados respectivamente nos dias 4, 10 e 11 de novembro de 2012,
bem como o artigo “Uma antropologia imóvel”, da senadora Kátia Abreu, na Folha
de S.Paulo do sábado, dia 17 de novembro, apresentam estruturas argumentativas
e objetivos bastante semelhantes, complementando-se entre si.
A finalidade
principal é apresentar resultados de pesquisas como aquela realizada
recentemente pelo Datafolha, arrogando-se a competência necessária para
analisar os dados produzidos, e apresentando situações sociais, culturais e
materiais de suma complexidade, como se estas fossem de simples compreensão.
Improvisando-se em especialistas em antropologia e
questões indígenas, os autores declaram que as “reais necessidades” dos
indígenas contemporâneos seriam manifestadas a partir de uma lógica de consumo,
em tudo semelhante àquela que impulsiona a classe média da sociedade nacional:
os índios desejam celulares, televisões, casas de alvenaria, geladeiras, etc.
Afirma-se que escola e trabalho seriam, portanto,
os caminhos para se conseguir estes bens, que permitiriam “progredir
socialmente”, sendo a terra e os recursos naturais nela presentes de
importância secundária, se não irrelevante. Declara-se que os indígenas (em
geral) seriam, em suas origens, “pescadores, nômades e coletores”, como escreve
a senadora Abreu, razão pela qual não teriam, em suas organizações enquanto
povos, um vínculo específico com um determinado lugar; eles apenas “vagam” pelo
Brasil”, como afirmado por Leonardo Coutinho. Não seriam agricultores,
produtores de alimentos e as reivindicações fundiárias não surgiriam, portanto,
das necessidades destes povos, mas da cabeça de missionários e antropólogos,
que teriam convencido os índios (sempre nas palavras de Coutinho) “de que o
nascimento ou o sepultamento de um de seus membros em um pedaço de terra que
ocupem enquanto vagam pelo Brasil é o suficiente para considerarem toda a área
de sua propriedade”.
Como fica evidente até mesmo nos títulos das
matérias, a imagem que se quer transmitir é de uma antropologia que,
propositalmente ou romanticamente, buscaria descrever os indígenas com
características que seriam apenas de seus antepassados remotos, com o intuito
de justificar a demarcação de amplas frações do território nacional para nelas
continuar tutelando os povos indígenas. Reinaldo Azevedo chega a afirmar que o
processo demarcatório estaria produzindo “uma horda de miseráveis com celular,
televisão e DVD”.
Desta forma, acusa-se profissionais com uma longa
formação acadêmica de manifestar um “pensamento medieval”, de promover uma
“antropologia do miolo mole”, como definido pelo mesmo Azevedo em seu blog, ou
ainda uma “antropologia imóvel”, segundo a expressão de Kátia Abreu. Com
exceção feita ao escrito da senadora, cujo tom apresenta uma formal polidez ,
para veicular esses argumentos as matérias utilizam-se de uma linguagem
arrogante e profundamente preconceituosa, quando não ofensiva, principalmente
em relação aos indígenas.
Os Guarani (Kaiowa e Ñandéva) de Mato Grosso do Sul
prontamente responderam aos argumentos de Coutinho, através de nota emitida
pelo conselho da Aty Guasu, a assembleia geral destes povos, manifestando
indignação e acusando a revista Veja de fomentar o preconceito para com
os índios, apresentados que são como incapazes de pensar com suas próprias
cabeças e de tomar suas próprias decisões.
No tocante ao papel da Antropologia,
cabe observar que especificamente a senadora, na abertura de sua matéria,
parece reconhecer os profundos conhecimentos que a Antropologia vem acumulando
a respeito dos diferentes povos indígenas, mas ao mesmo tempo afirma que seria
injustificável que estas informações “sejam usadas como instrumento de
dominação e manipulação”. Ainda citando o caso dos povos tupi e guarani,
argumenta ela que estes “são estudados há tanto tempo quanto os astecas e os
incas, mas a ilusão de que eles, em seus sonhos e seus desejos, estão parados
no tempo não resiste a meia hora de conversa com qualquer um dos seus
descendentes atuais”.
Pois bem, estas colocações nos levam a questionar:
quem de fato está manipulando informações? Qual seria a Antropologia que não
leva em consideração, em suas análises, as formas de viver e de conceituar o
mundo por parte dos indígenas contemporâneos? Comecemos enfrentando a segunda
questão, para, em seguida, nos dedicarmos à primeira.
Desconstruindo estereótipos e lugares comuns: o
saber antropológico e a questão indígena
Indicaremos aqui, de modo sucinto, a complexidade
dos dados e dos estudos voltados a identificar e delimitar uma terra indígena,
bem como dos conhecimentos antropológicos, de modo geral. Para tal propósito,
focaremos um contexto específico: o das reivindicações fundiárias feitas pelos
Guarani Kaiowa e Guarani Ñandéva, em Mato Grosso do Sul. Com isto queremos evitar
sermos excessivamente generalistas e, ao mesmo tempo, poder informar sobre o
caso que desencadeou a reação de uma certa mídia, representada aqui pelos
veículos e autores citados. O objetivo é revelar quão superficiais, mal
informados, caricaturais e mal intencionados são os argumentos das matérias
jornalísticas aqui tratadas.
Em primeiro lugar, é totalmente falsa a ideia de
que todos os povos indígenas sejam ou tenham, um dia, sido nômades, centrando
as suas economias na caça, na pesca e na coleta. E, mais importante ainda,
quando nômades, estes não “vagam” por um espaço geográfico, mas constroem,
através de suas experiências acumuladas ao longo de séculos, verdadeiros
territórios de referência, nos quais baseiam suas atividades e desenvolvem suas
vidas.
Em segundo lugar, significativa parte dos indígenas
centra suas atividades econômicas na agricultura. Os Guarani aqui em tela são
milenares agricultores, existindo uma ampla e rica literatura histórica,
arqueológica e antropológica que documenta este fato. Esta mesma literatura
coloca em destaque também o fato de os Guarani terem, ao longo de milênios, num
processo de expansão civilizacional em busca de terras férteis, realizado
amplas migrações; isto de modo algum os caracteriza como nômades, como é muitas
vezes erroneamente apresentado pela mídia. Com efeito, ao considerarmos os
últimos séculos, percebe-se um modo de ocupação sedentário; milhares de sítios
arqueológicos justamente revelam para os Guarani uma continuidade ocupacional e
o desenvolvimento de rotações de cultivos ao redor de centros de habitações.
Estes centros são construídos nas proximidades de
fontes de água (nascentes, córregos e rios), formando amplas redes de
comunidades locais. A relação entre estas comunidades, que permite a integração
social e a cooperação, é determinada por uma elevada mobilidade espacial, para
participar de rituais, realizar atividades econômicas (coleta, caça e pesca),
socializar, visitar parentes, estabelecer casamentos, formar ou fortalecer
alianças e, antigamente, para organizar e empreender ações guerreiras. Como
fica claro, esta mobilidade não representa absolutamente um “vagar” pelo Brasil
(ou entre Brasil e Paraguai), conforme pretendido por Leonardo Coutinho em sua
matéria.
Em terceiro lugar, é importante destacar que os
indígenas não são uma realidade abstrata e homogênea, cada povo sendo um
sujeito histórico com suas peculiaridades, constituídas ao longo do tempo, em
situações sociais, econômicas e territoriais concretas. Neste sentido, os povos
indígenas não podem ser vistos como estáticos, relegados a um modo de vida
pretérito, nem como seres passivos, suas vidas, desejos e inspirações sendo
definidas apenas por fatores externos ao seu próprio agir.
Não cabe dúvida de
que o impacto da colonização e o contato com outras civilizações têm-lhe
proporcionado novos saberes, tornando as experiências individuais e coletivas
mais ricas e diversificadas. Por outro lado, é também verdade que estas novas
experiências não são realizadas a partir de um vazio de informação, de
parâmetros e de lógicas de entendimento sobre o mundo; os indígenas vêm, ao
longo de séculos e milênios, construído tradições de conhecimento, produzindo
cosmologias, definindo quadros morais, lógicas de troca, circulação e uso de
bens materiais e simbólicos, fatores estes que permitem a definição de
parâmetros para dar um sentido específico a suas coletividades.
É a partir da compreensão destes parâmetros, que
costumam ser bastante sofisticados, que podemos entender qual espaço um
determinado objeto ocupa na escala de valores definida pelos indígenas, qual
será o seu destino de uso, suas propriedades simbólicas, como este pode ser
transacionado, trocado, distribuído, etc. Para dar um pequeno exemplo, quando
se encontram geladeiras nas residências kaiowa, estas são utilizadas de uma
forma bem específica: suas prateleiras são quase totalmente ocupadas por
garrafas PET cheias de água, que é destinada ao preparo do tererê (infusão fria
da erva mate), consumido geralmente de modo coletivo, quando da visita de
parentes, algo constante nas residências destes indígenas.
Fica, portanto,
óbvio que a eficiência técnica da geladeira, como instrumento que subtrai
calor, é algo apreciado pelos kaiowa, mas o uso social deste objeto é definido
de modo bem particular. Este exemplo representa apenas a ponta de um iceberg,
cuja base não poderemos apresentar aqui por falta de espaço, havendo que se
levar em conta todos os parâmetros acima descritos, que são absolutamente
diferentes daqueles que servem como referência aos membros da nova classe média
nacional, e não similar, como pretendido em seu blog por Reinaldo Azevedo.
Há que se considerar, ainda, que a terra não
representa para os povos indígenas em geral um mero meio econômico, assim como
a agricultura e outras atividades produtivas não apresentam apenas aspectos
materiais, sendo intimamente ligadas à ordem cósmica, adquirindo fortes
conotações religiosas. Neste sentido, no caso dos kaiowa, pensar-se que a
retirada forçada de seus integrantes de significativas porções de seus
territórios de ocupação tradicional, com a sucessiva depauperação dos mesmos
(por desmatamento para pecuária extensiva e monoculturas exportadoras) leve
estes indígenas a renunciarem àqueles espaços territoriais, representa uma
visão extremamente superficial do fenômeno em pauta. Com efeito, as famílias
indígenas consideram-se pertencentes a esses lugares, cujo uso material e
simbólico revela-se para elas fundamental na manutenção da ordem cósmica e no
destino de seu povo.
As violências (físicas e simbólicas) sofridas por
efeitos da colonização têm, ao contrário, conduzido a uma exaltação simbólica
das propriedades da terra e dos lugares de origem, num complexo processo de
construção cultural do sentido de pertencimento territorial, étnico e cósmico.
Esta complexidade emerge através de acuradas pesquisas e não resulta das
presumidas fantasias de “antropólogos de miolo mole” (como disse Azevedo), que
estariam convencendo os índios de que “o nascimento ou o sepultamento de um de
seus membros em um pedaço de terra” lhes outorga o direito de propriedade sobre
o mesmo (como afirmado por Leonardo Coutinho, na Veja).
Finalmente, é importante observar que quando se
identifica e delimita uma terra indígena busca-se relacionar famílias indígenas
concretas e específicas com espaços territoriais também concretos e
específicos. Para tal propósito é necessário verificar as modalidades de uso,
conceituação e exploração do território por parte do grupo em consideração.
Assim, em Mato Grosso do Sul, a tarefa consiste em analisar a relação de
comunidades indígenas contemporâneas com os lugares de onde foram expulsas há
apenas poucas décadas, delimitando-se apenas os espaços necessários à
reprodução física e cultural dessas comunidades específicas, conforme os ditames
da Constituição Federal vigente.
No caso da comunidade de Pyelito Kue, que tem
atraído toda essa atenção midiática, por exemplo, trata-se de um esbulho
ocorrido a partir dos anos 1940 e que se acirrou com uma remoção maciça das
famílias indígenas dos lugares que consideram de sua origem no final da década
de 1970. Não se trata, pois, de definir um elo imemorial com a situação
pré-colonial, criando um território indígena abstrato e sem parâmetros no
tamanho. Portanto, é totalmente desprovido de fundamento afirmasse que, uma vez
que antes da conquista europeia o Brasil era habitado unicamente por indígenas,
estes últimos poderiam reivindicar hoje a totalidade da sua superfície,
colocando assim em perigo o resto da população do país (e a capacidade produtiva
e econômica da nação).
Inúmeras páginas ainda poderiam detalhar os fatores
necessários para se desenvolver uma adequada pesquisa que dê embasamento aos
Relatórios Circunstanciados de Identificação e Delimitação de uma Terra
Indígena (orientada, aliás, por regulamentação específica e criteriosa), feitos
pelos antropólogos, mas, por motivos de espaço, isto se torna impossível. O
objetivo maior é apontar sua complexidade, ao tempo que revela a desinformação,
a banalização e a distorção da realidade que são apresentadas nos artigos aqui
elencados. Poder-se-ia talvez afirmar que isto é fruto da ignorância, mas isto
não é uma justificativa válida. Há uma vasta e riquíssima literatura sobre
povos indígenas, constituída por publicações, dissertações e teses, bem como
por relatórios de identificação de terras e laudos periciais antropológicos,
que poderia bem ser consultada. Por que será que isto não ocorre?
Pensamos que seja não um problema de mera
ignorância, mas devido a uma proposital intenção de manipular a informação,
cujas razões consideraremos a seguir.
Os interesses do agronegócio e a Antropologia como
incômodo
Os estudos e aprofundamentos antropológicos podem
se constituir em uma ameaça aos interesses do agronegócio. A imprensa que apoia
as suas razões, por sua vez, sabe que em processos administrativos e jurídicos,
argumentações bem fundamentadas, fruto das pesquisas de profissionais sérios,
com formação consistente e ampla experiência sobre os indígenas podem redundar
no reconhecimento de direitos territoriais, colocando assim em risco seus
empreendimentos. Seus representantes sabem, igualmente, que atacar diretamente
a Antropologia como um todo, uma ciência com mais de um século de formação,
seria contraproducente; proceder deste modo os exporia, deixando transparecer
de modo evidente e radical a unilateralidade de seus próprios interesses.
Não podendo afrontá-la diretamente, enveredam por
caminhos indiretos. Em lugar de conduzir o debate a partir de conteúdos
antropológicos, lançam mão dos sentimentos nacionalistas, suscitando com isto
alarmismos, ao afirmar que os índios atentam à soberania nacional, representam
o atraso e estão associados a interesses estrangeiros. Recorrem também a
ataques pessoais, buscando contrastar os profissionais antropólogos não tanto
em seus argumentos, mas como indivíduos, que seriam suspeitos. Ainda assim,
necessitam contornar o fato de que os argumentos antropológicos lhes são
inconvenientes. Constroem então o expediente de se referir aos antropólogos que
realizam identificações e laudos periciais como sendo representantes de “certa
Antropologia”.
É bastante evidente o objetivo desta estratégia:
deixar imaginar a existência de outras possíveis Antropologias, cujos
argumentos refutariam aqueles normalmente apresentados nos relatórios e nas
perícias. Afirma-se, por exemplo, que os antropólogos da FUNAI em Mato Grosso
do Sul estariam querendo demarcar o maior número de terras indígenas para nelas
perpetuar a tutela. Isto é algo falso, na medida em que os Grupos Técnicos que
estão realizando os trabalhos naquele estado são coordenados por antropólogos
que não são funcionários desta instituição oficial.
Ademais, esses antropólogos têm formação acadêmica
em nível de doutorado ou mestrado, em sua maioria sendo professores de
universidades federais, com experiência sobre os indígenas em pauta, tendo
defendido sobre eles dissertações e teses, publicando livros e diversos artigos
científicos.
É evidente que estas estratégias discursivas são
rapidamente desmascaradas frente a um crivo acadêmico. Porém, há que se
evidenciar que o seu principal alvo (além obviamente da opinião pública,
contribuindo para reforçar lugares comuns) é o mundo jurídico, mais
especificamente a Justiça Federal, buscando influenciar suas decisões, formando
verdadeiros dossiês, compostos com matérias de artigos impressos e da internet.
Por vezes os juízes não possuem parâmetros para discernir sobre a qualidade de
um estudo antropológico, nem sobre correntes, paradigmas teóricos,
metodologias, etc. É justamente em virtude desta situação que, por exemplo, em
vários contra-laudos (documentos elaborados para contrastar os relatórios de
identificação de terras e as perícias antropológicas) são exaltados
determinados autores que sequer têm formação antropológica, apresentando-os como
eminências na disciplina, buscando criar assim uma Antropologia fictícia, a ser
contraposta àquela “Antropologia do miolo mole”.
Gera-se, nesses termos, uma imagem de autoridade
sobre a matéria, cuja verificação se torna de difícil realização pelos juízes,
que confiam na idoneidade de seus elaboradores.
Por último mas não menos relevante, ao deslocar a
atenção do conteúdo e da qualidade dos relatórios antropológicos de
identificação de uma terra indígena para um ataque à FUNAI, essas estratégias
discursivas buscam igualmente desestabilizar e deslegitimar a estrutura do
Estado, procurando interferir, o máximo possível, nos processos administrativos
voltados ao cumprimento de ditames constitucionais.
Fonte:http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-caso-dos-conflitos-fundiarios-em-ms-e-o-papel-da-antropologia/
Fabio Mura é antropólogo e membro da CAI(Comissão de Assuntos Indígenas)
O artigo acima expressa o ponto de vista da
Associação Brasileira de Antropologia-ABA.
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