Filhos de fundadores do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra celebram e assumem a luta dos pais.
Marciane
Hences de Frederico Westphalen (RS)
Ocupação da Fazenda Annoni em outubro de 1985 - Foto: Daniel de Andrade |
O sol já se punha no horizonte quando,
aos solavancos, arrancando terra da estrada poeirenta que a seca castigava há quase três meses,
após uma curva, surgiu o asfalto. Meu pai, Carlos, parou o carro no
acostamento, procurou um cigarro, apontou na direção da minha janela:
– Ali estão eles!
Desci do carro com o coração aos pulos, encarando
fixamente aquele homem que segurava a foice e sua companheira que carregava a
bandeira. Lentamente, me aproximei dos dois. Numa placa abaixo dos pés do casal
lia-se: “Monumento em homenagem aos 10 anos de retomada da luta pela terra
(7-09-1979/ 7-09-1989) Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra.”
O monumento fora erguido em 1979 na beira da
estrada que liga Ronda Alta a Passo Fundo, norte do Rio Grande do Sul, no local
conhecido como Encruzilhada Natalino. Estima-se que 5 mil pessoas estiveram
acampadas no local. A imagem daquele casal remeteu-me à infância. Lembrei-me
dos tios, vizinhos e conhecidos indo e voltando para os acampamentos. Recordei
dos relatos sobre o fim da ditadura militar, o renascimento do país e, como
parte do reflexo dessas mudanças, o surgimento do MST. No centro dessa ebulição,
renascia a esperança dos camponeses no final da década de
1980.
Anoitecia quando retornamos para Ronda Alta. A
terra vermelha, nua, se estendia às margens da BR-386 e eu me perguntava por
onde andariam aqueles camponeses que um dia sonharam com a reforma
agrária.
Terra de Lutas
A região norte do Rio Grande do Sul fez parte dos
acontecimentos que deflagrariam o nascimento do maior movimento de contestação
e luta pela terra na América Latina, o MST.
Nesse espaço, ao sul com o Rio Uruguai e a leste
com o Rio Passo Fundo, o processo de ocupação do solo gerou diversos conflitos
entre índios e brancos. Diversas famílias foram expulsas desse local. As
Reservas Indígenas da Serrinha e Nonoai, ambas demarcadas em 1857 pelo governo
imperial e redemarcadas em 1912 foram o estopim da
crise.
Desde 1940, ano de fechamento da fronteira agrícola
do Rio Grande do Sul, quatro grupos sócio-culturais dividiam o espaço nessa
região – índios, caboclos, fazendeiros e imigrantes europeus. As reservas
indígenas foram sendo ocupadas pelos brancos com a conivência do Estado. O
confronto cultural foi inevitável.
A partir dos anos 1960 o campo passa por profundas
mudanças. A Revolução Verde difundiu o uso de tecnologia, mas causou um intenso
êxodo rural. Além disso, famílias numerosas e a falta de perspectivas na cidade
foram alguns dos fatores que levaram os camponeses a exigir uma redistribuição
das
terras.
Salete Campigotto é uma das protagonistas dessa
história. Assentada em Nova Ronda Alta (município de Ronda Alta) em 1983,
assumiu em 2005 a Coordenação do Instituto Educar, escola técnica do MST, na
Fazenda Annoni.
De acordo com a educadora, para entender o processo
da luta pela terra na região é preciso voltar à década de 1960, quando o Movimento
dos Agricultores Sem Terras (Master), que antecipou, no Rio Grande do Sul, as
propostas e estratégias do MST pela Reforma Agrária, organizou a ocupação da
Fazenda Sarandi, no local que ficou conhecido como acampamento do Cascavel, em
Ronda Alta. A ocupação reuniu cerca de 1500 pessoas e contou com o apoio do
então governador Leonel Brizola, que teria apoiado a ação também em prol de sua
reeleição. A fazenda agregava uma área de aproximadamente 120 mil hectares.
Pertencia a uma família de uruguaios, os Mailhos, e cobria grande parte do
território dos atuais municípios de Ronda Alta, Sarandi, Rondinha, Pontão e
Coqueiros do Sul.
Em janeiro de 1962, parte dessa área seria
desapropriada e distribuída entre meeiros e granjeiros que viviam ali. Apesar
das contradições desse processo, o acampamento do Cascavel deixou marcas na
cultura daquele povo que foram passadas para as próximas
gerações.
Herdeiros da terra
O relógio marcava 8h30min quando desci do ônibus no
trevo que dá acesso à área 1 da Fazenda Annoni, dividida hoje em vários lotes,
localizada no município de Pontão. Era a primeira vez que eu voltava à Annoni,
desde uma visita que fiz quando era criança. O frio de junho castigava quem
andava pela estrada de terra que levava até o Instituto
Educar.
A ocupação da Annoni ocorreu em outubro de 1985 e
durou até 1993, quando os colonos foram assentados, mas deixou marcas na
história da luta camponesa. Símbolo de resistência e de luta pela terra, esse
acampamento foi um dos mais longos conflitos no estado. Foi a primeira ocupação
organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que já vinha se
estruturando desde o acampamento da Encruzilhada Natalino. A partir daí o MST
se consolida como movimento social e suas práticas se disseminam por todo o
território nacional.
Hoje, os assentados da Annoni constituem parte da
história da reforma agrária que deu certo. Abertos às novas ideias, vivendo de
forma coletiva, pautados pelo social, com bases em valores socialistas, eles se
organizaram em cooperativas, como é o caso da Cooperativa de Produção
Agropecuária Cascata LTDA (Cooptar).
Nas idas e vindas à Fazenda Annoni conheci muitas
pessoas, conversei com dirigentes do MST, ex-assentados, professores, entre
outros, mas o que me chamou atenção foram alguns jovens que nasceram ali e
saíram para ter acesso às universidades, sem abandonar suas raízes. Eles fazem
parte de uma nova geração de militantes do movimento, com curso superior, e que
trazem no sangue a luta dos pais.
Diego Vedovatto é um exemplo disso. Filho de Isaías
Vedovatto, um dos dirigentes estaduais do MST na década de 1980, Diego nasceu
no assentamento da Annoni em 1990. Formado em Direito pela Universidade Federal
de Goiás (UFG) em agosto desse ano, estudou por meio de um convênio entre o
governo federal, a universidade, o Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária (Pronera) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra). O programa subsidia os custos do curso, como despesas de passagem,
moradia e alimentação. O curso era voltado para o Direito Agrário, frequentado
apenas por filhos de assentados e de pequenos agricultores. Atualmente, Diego
reside em Porto Alegre e trabalha num escritório de advocacia, onde presta
assessoria jurídica para integrantes do MST e agricultores
gaúchos.
Josene dos Santos é natural de Trindade do Sul. Os
pais vieram acampar na Annoni em 1985. Na época ela tinha 1 ano de idade. Hoje,
Josene é formada em Geografia pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp),
também com a ajuda do Pronera. Após concluir seus estudos, foi designada pelo
MST para dar aula no Instituto Educar. Sempre presente nessa caminhada, quando
pergunto o que o MST representa na vida dela, é com firmeza que
responde:
– A condição de ter conquistado uma vida digna.
Meus pais eram meeiros e foi a partir dessa luta que nós conquistamos a terra.
Hoje eles são assentados em Eldorado do Sul. É muito importante dar
prosseguimento à luta que nossos pais iniciaram, ainda que não seja trabalhando
diretamente com a terra. Através do conhecimento, voltamos mais qualificados
para fazermos algumas intervenções no meio rural e conscientizar as pessoas da
legitimidade da luta.
Magnus Potheguara Maschio, filho de Darci Maschio,
um dos primeiros gaúchos a assumir a liderança nacional do MST, tem 19 anos e
também nasceu na Annoni. Sempre acompanhando a luta dos pais, decidiu bem cedo
o que queria para sua vida. Cursando o 2º semestre de Agronomia no Instituto
Federal de Ciências e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), ele é um dos
dirigentes estaduais da Juventude do MST no Rio Grande do Sul. Juntamente com
outros integrantes da direção, ele faz um trabalho de base para manter os
jovens no campo:
– O MST incorporou outras bandeiras a sua luta. Não
queremos somente a terra, que era uma necessidade dos nossos pais lá nos anos
de 1980. Hoje nós lutamos por melhores condições de vida no campo e na cidade,
educação, moradia, cultura, além de buscar o fortalecimento das pessoas que já
estão assentadas. Nosso objetivo é construir novas estratégias de luta. Vivemos
um governo muito contraditório que só chegou ao poder porque fez alianças com
grupos de direita e hoje está amarrado a esses setores, principalmente com o
agronegócio.
Andréia Campigotto, filha de Salete e Antoninho
Campigotto, foi a primeira criança que nasceu no assentamento de Nova Ronda
Alta, em 1984. O amor pela terra e pela causa dos pais tornou-se a bandeira de
sua vida. Com 18 anos de idade ela assume a direção estadual da Juventude do
MST. Posteriormente, é convidada a participar de um projeto que seleciona
jovens do Movimento Sem Terra para estudar na Escola Latino Americana de
Medicina (Elam), em Cuba.
Andreia concluiu o curso de Medicina em 2011.
Retornou ao Brasil e assumiu novamente a direção estadual da Juventude do MST.
Atualmente ela reside com a família na Fazenda Annoni e fala da aprendizagem em
Cuba e dos planos para o futuro:
– Morei durante seis anos em Cuba e aprendi muito.
Meu objetivo agora é fazer uma medicina voltada para o povo camponês. O MST é
um movimento social que consegue organizar nossos jovens para que tenham uma
perspectiva de vida. A luta sobrevive na memória coletiva daqueles que deram os
primeiros passos e eu quero continuar o trabalho que meus pais iniciaram lá na
Encruzilhada Natalino.
Para concluir essa reportagem retornei à Annoni
muitas vezes. Na última vez que estive lá alguns já haviam seguido seus
caminhos. Despedi-me da Salete, que ficou acenando lá da escola. Olhei para
trás e revi as casas bonitas, confortáveis, com seus pátios floridos e gramados
bem cuidados, comparei-as mentalmente com os barracos de lona preta embaixo dos
quais eles viveram por mais de oito anos. Conclui que a luta não fora em vão,
ela havia dado frutos que se multiplicavam. Muitos anos se passariam, outras
gerações viriam, mas a terra continuaria ali, à espera de sementes.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/11323
10/12/2012
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