Pedro Carrano de Curitiba (PR)
“A luta essencial é entre mercado e direitos. A
gente quer tirar do mercado e colocar na esfera dos direitos e eles querem
mercantilizar. A linha demarcatória é entre neoliberalismo e
antineoliberalismo”, define o sociólogo Emir Sader, quando questionado sobre o
que é ser de esquerda nos dias de
hoje.
Sader esteve em Curitiba para o lançamento de seu
livro As Armas da Crítica – Antologia do Pensamento de Esquerda (Editora
Boitempo, ao lado de Ivana Jinkings).
Em coletiva cedida à imprensa sindical e
de esquerda, organizada pelo sindicato de professores estaduais
(APP-Sindicato), o que era para ser uma conversa pontual sobre um lançamento
tornou-se uma reflexão sobre a crise econômica e a disputa em torno da
manutenção do modelo neoliberal, por um lado, e as tentativas populares de
romper essa hegemonia; o que passa, de acordo com Sader, pela questão de os
movimentos sociais retornarem à disputa na esfera política.
Confira a Entrevista
Emir Sader |
Brasil de Fato – Qual caracterização o senhor faz
do atual momento da crise mundial?
Emir Sader – É inerente ao capitalismo a crise. Como Marx
reconheceu no próprio Manifesto Comunista, o capitalismo tem uma extraordinária
capacidade de transformação da realidade, mas não distribui renda para consumir
o que produz. Então, periodicamente o Capital tem crises, que alguns chamam de
superprodução e outros subconsumo. A produção cresce e falta consumo, então o
paradoxo é que sobram mercadorias nas estantes. Ao invés de distribuir renda
para consumir, a crise manda embora trabalhadores e aumenta-se mais ainda a
crise. Só que o capitalismo achava que o mercado recompõe isso. Na crise, as
empresas que eles consideram fragilizadas, digamos, quebram e o capitalismo
retoma seu ciclo de crescimento, num patamar mais baixo, mas mais saudável.
Desta vez, não está acontecendo isso. Porque na fase neoliberal do capitalismo,
o que é hegemônico é a especulação e não a
produção.
Brasil de Fato – Como se dá este embate no campo da
política? A impressão é que, na opinião pública, se polariza entre alternativas
neoliberais e o resgate do keynesianismo.
Emir Sader – O grande diagnóstico dos dirigentes capitalistas quando
terminou o ciclo expansivo econômico anterior foi o de que a economia deixou de
crescer porque havia muita regulamentação e ‘muito Estado’. Então, é preciso
liberar a livre circulação do Capital, tirar as travas para que circule. A
grande norma passa a ser a desregulamentação, o livre-comércio. Ao fazer isso,
não vem um ciclo produtivo e expansivo. Porque o Capital não é feito para
produzir, mas para acumular, se ele consegue isso na acumulação é para lá que
ele vai. Então, em escala mundial, há uma brutal transferência de capitais do
setor produtivo para o especulativo. Hoje, mais de 90% das trocas econômicas no
mundo não são compra e venda de bens, são basicamente compra e venda de
papéis.
Ele [sistema capitalista] está numa fase
particular, diferenciada. O neoliberalismo não teve um ciclo produtivo porque
na verdade canalizou recursos para a especulação. A crise explode diretamente
no sistema financeiro, bancário. E a hegemonia de ideias é neoliberal. Estão
dando soluções neoliberais para a crise na Europa, estão jogando álcool no
fogo. Tanto que a Dilma jogou isso na cara da Angela Merkel: cortando [direitos
trabalhistas, previdenciários] só se leva a mais recessão e desemprego. Essa é
a interpretação dominante.
A outra [solução] é a da reativação keneysiana, um
pouco o que a América do Sul está fazendo. Algo óbvio. Na crise se investe mais
em políticas sociais, distribui a renda para aumentar a demanda. Como fizemos
em 2008. O que tem uma solução, do ponto de vista imediato, anticíclica, funciona
relativamente. Tanto que a América do Sul é um polo de desenvolvimento ainda.
Falta-nos a demanda deles, mas em outra circunstâncias a crise seria
avassaladora. Já existe uma multipolaridade econômica mundial, pela integração
regional, pela relação com a China, e também pelo mercado interno de consumo. A
visão crítica disso é que é uma solução defensiva em relação à
crise.
Se você não muda estruturas econômicas de poder,
isso tem limites. Nosso continente foi vítima das transformações mundiais negativas,
como a crise da dívida, ditaduras militares, governos neoliberais, e que
desarticularam a estrutura industrial, abriram aceleradamente a economia,
enfraqueceram o Estado. Então temos coisas paradoxais: os produtos primários
agrícolas e energéticos são prioridade na exportação do comércio exterior,
então exportamos soja e fazemos política social. Melhor assim, mas de qualquer
maneira é uma soja ligada ao agronegócio. Então, temos limitações estruturais,
porque a estrutura mundial ainda é hegemonizada pelo neoliberalismo. Só tem
saída com a integração regional.
Brasil de Fato – Houve o crescimento de renda nos
governos Lula e Dilma, mas isso não parece interferir na consciência de classe.
O senhor poderia comentar esse processo?
Emir Sader – Essa é a maior disputa no mundo hoje. Os EUA são
decadentes como potência militar, política e econômica, mas a maior força deles
é a força ideológica. O modo de vida estadunidense é a mercadoria mais forte
que eles têm que penetra na China, penetra na periferia dos pobres, são valores
determinantes, que ninguém compete com eles. No Brasil, não se está gerando uma
nova forma de sociabilidade, correspondente à democratização econômica e
social. Isso não está sendo acompanhado de valores. Hoje o risco não é tanto o
consumismo, mas quem é que influencia os processos mesmo eleitorais? É a mídia
e são as igrejas evangélicas. O movimento popular está muito fragilizado no seu
processo de mobilização e também de difusão de ideias. São Paulo foi pega
desprevenida neste sentido. Vivemos três ditaduras que são os obstáculos
maiores: a ditadura do dinheiro, que é o capital financeiro, ditadura da terra,
que é o agronegócio, e a ditadura da palavra, que é o monopólio da mídia, o que
dificulta essa criação de consciência nova.
Brasil de Fato – E qual o papel dos sindicatos,
cuja atuação parece muito restrita aos seus interesses econômicos?
Emir Sader – Difícil porque, nas grandes transformações do
mundo, os trabalhadores foram vítimas especiais, não só na esfera produtiva,
nas políticas de flexibilização laboral, que enfraquece a base dos sindicatos,
mas o próprio mundo do trabalho ficou invisibilizado – parece que ninguém mais
trabalha. A jornada hoje não é de oito, mas de doze horas. Esse é o cotidiano
das pessoas, que não está em lugar nenhum. Não tivemos muitas gerações de
trabalhadores a ponto de gerar uma cultura operária no país, nem sequer na
base, tampouco na literatura. São poucas coisas. No mundo rural sim. Então, nas
novelas da Globo, que criam o imaginário nacional, o trabalhador não existe.
Então, o que ocupa as pessoas o tempo todo, que é o trabalho alienado, não
aparece, não está em lugar nenhum. Não está em editoria de
jornal.
Brasil de Fato – Quais são os espaços para essa
disputa ideológica?
Emir Sader – Mesmo sem financiamento público de campanha, o
movimento popular deveria eleger sua bancada no Congresso. Sei que não é fácil.
Olhamos o Congresso, há retrocessos ou se bloqueia avanços. O agronegócio tem
uma bancada fenomenal, e apenas dois representantes de trabalhadores rurais.
Quantos representantes os educadores têm no Congresso? Se tem, nem sequer atuam
como bancada. Já de donos de escolas privadas está
cheio.
Hoje, uma estratégia insurrecional não é viável. A
correlação de forças mundial mudou, basta ver a situação de impasse na
Colômbia, a América Central se reciclou. Se os zapatistas e o MST
militarizassem sua luta seriam massacrados. Então, [a luta] é pela
democratização do Estado. É preciso penetrar no Estado, não de qualquer modo. O
parlamento é um lugar não só para ter líderes políticos e sindicais.
Reclamamos, com razão, que o governo nem colocou a lei de regulamentação da
mídia em votação, mas você acha que neste Congresso, formado por donos de meios
de comunicação, isso vai passar?
Brasil de Fato – Como o senhor define o campo da
esquerda hoje?
Emir Sader – O capitalismo assumiu a roupa neoliberal. Veio de
um modelo keynesiano, de bem-estar social, para um modelo liberal de mercado.
Essa é a linha divisória. Ser de esquerda hoje, moderadamente ou radicalmente,
é ser antineoliberal. A luta essencial é entre mercado e direitos. A gente quer
tirar do mercado e colocar na esfera do direito e eles querem mercantilizar. A
linha demarcatória é neoliberalismo e antineoliberalismo. Há movimentos que são
gritos desesperados que não encontram espaço na esfera política. Agora,
diferente é o movimento dos estudantes no Chile, que tem organicidade com os
sindicatos, fazem greve geral e levaram à quebra de legitimidade do governo
Piñera.
Brasil de Fato – Seria possível estratégias
combinadas entre movimentos, partidos e governos?
Emir Sader – A América Latina teve governos neoliberais na sua
versão mais radical. Na década de 1990 tivemos um período de resistência contra
essa hegemonia que era tão forte. Os movimentos sociais foram determinantes
nessa época. Depois, surgiram governos alternativos. Era a hora de passar da
resistência à disputa de hegemonia. Na época, a hegemonia dominante no Fórum
Social Mundial era a das ONGs, tanto assim que se teorizou e os movimentos
sociais entraram nessa sobre a ‘autonomia dos movimentos sociais’. Autonomia em
relação a quê? A gente falava antes de maneira ampla em autonomia em relação à
burguesia e etc... Agora, autonomia em relação à política? A ONG sim nasceu
como sociedade civil conquistada. Os movimentos sociais entrarem nessa foi uma
loucura. O movimento piquetero acabou na Argentina. Os zapatistas buscaram
emancipar Chiapas, independente da luta política no México, são contra até o
PRD e as soluções moderadas, em nome da ‘autonomia dos movimentos sociais’.
Isso é algo pré-gramsciano. É não disputar a hegemonia. Então, foi fundamental
os movimentos bolivianos se reunirem. Derrubaram cinco governos na Bolívia,
criaram um partido para disputar a presidência, dando um salto de qualidade.
Quem está, mal ou bem, construindo um outro mundo possível são os governos
latino-americanos. O FSM devia ser o lugar onde os governos com os movimentos
sociais sejam os pontos centrais dessa alternativa.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/11219
26/11/2012
Emir Simão Sader (São Paulo, 13 de julho
de 1943) é um sociólogo
e cientista político brasileiro. De
origem libanesa,
é graduado em Filosofia
pela Universidade de São Paulo, mestre em filosofia política e doutor em ciência política por essa mesma instituição. Nessa
mesma universidade, trabalhou ainda como professor, inicialmente de filosofia e
posteriormente de ciência política. Trabalhou também como pesquisador do Centro
de Estudos Sócio Econômicos da Universidade do Chile e foi professor de
Política na Unicamp.
Atualmente, é professor aposentado da
Universidade de São Paulo, dirige o Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, onde é professor de sociologia. Em 2011, foi cogitado para a presidência
da Fundação Casa de Rui Barbosa, nomeação abortada após crise gerada a partir
de uma entrevista na qual fez criticas a ministra da cultura Ana Buarque de Hollanda. Atualmente é
professor doutor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenador do
Laboratório de Políticas Públicas e Secretário Executivo do Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales. Tem experiência na área de Ciência
Política, com ênfase em Estado e Governo, atuando principalmente nos seguintes
temas: Lula, América
Latina, Brasil
e Política.
É autor de A Vingança da História, entre outros livros.
Pensador de orientação marxista, Sader
colabora com publicações nacionais e estrangeiras e é membro do conselho
editorial do periódico inglês New Left Review. Presidiu a Associação
Latino-Americana de Sociologia (ALAS, 1997-1999) e é um dos
organizadores do Fórum Social Mundial.
Em novembro de 2006, Sader foi
condenado à prisão em regime aberto, além da perda da função pública por calúnia ao
senador Jorge Bornhausen (PFL de Santa
Catarina). No entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo aceitou recurso
do sociólogo contra o senador em fevereiro de 2009.
Após a declaração do presidente do PFL, há
cerca de um ano, de que o Brasil precisava "livrar-se dessa raça",
em referência ao Partido dos Trabalhadores e aos petistas,
Emir Sader atribuiu a ele, em artigo no site Carta Maior,
no dia 28
de agosto de 2005,
a prática de “racismo”.
Sader imputou ao senador discriminação aos "negros, pobres, sujos e
brutos", intitulando-o de "fascista".
Em resposta à condenação judicial, que ainda não é definitiva, cabendo recurso,
intelectuais encabeçados por Antônio Cândido fazem circular um
abaixo assinado contra a sentença. Segundo o manifesto, a decisão judicial afronta
a liberdade de expressão, intimidando e
criminalizando o "pensamento crítico", e a "autonomia
universitária". A sentença continua o manifesto, transforma o
"agressor" em "vítima" e em "criminoso" o
"defensor dos agredidos".
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