Ana Monique Moura*
É preciso que, para além de ler os clássicos
teóricos do Comunismo, se pense para com eles e para além deles, no sentido de
conduzir uma força de reflexão política e não uma comunidade hagiográfica do
pensamento da tradição.
É algo muito ambíguo o que tem ocorrido e permanece
ocorrendo nas ruas do nosso país, tamanha é essa ambiguidade, que veio
confundindo teóricos, políticos, sociólogos de todo o mundo sobre como definir
este panorama. Não é gratuito
que se revele ambíguo e, portanto, difícil, pois como diria Maiakóvski: “o mar
da história é agitado”. Estamos acostumados a definir a história e o nosso
tempo ainda de maneira um pouco linear.
Definir períodos de protestos de
maneira um tanto didática, mas é preciso que nos penetremos nesta confusão para
compreender o que está acontecendo. Com rigores de observações unilaterais isso
fica inviável. É preciso aceitar a agitação do período e ver nisso a
possibilidade de sua compreensão e não a sua ausência. Nosso momento é um
enredo truncado, com definições sempre falíveis, caso tentem repetir
abordagens.
Não valeria dizer, por outro lado, que pareça uma
revolução, mas também não é, inteiramente ou apenas, uma festa. A manifestação
que aconteceu para impedir a fixação do aumento dos R$ 0,20 centavos a mais nas
passagens de ônibus não é inovadora. Há anos, desde a nossa desconfiável
insurgente democracia, movimentos estudantis vem enrijecendo lutas, cuja
minoria participativa é inegável. Dentro das próprias universidades em que
estudam são, com frequência, rechaçados pela infinita maioria esmagadora de
outros estudantes que se dizem apolíticos, ou afastados do envolvimento, assim
dizem, “sem retorno”, com a politização de ideias.
Em triste contrapartida, os movimentos estudantis
atuais, claro, preciso ser ferrenha quanto a isso, de fato, carecem de uma
envergadura mais política e menos emotiva. A folia da indignação é o que se
mostra muito mais presente nas atividades dos grupos que saem às ruas há anos.
Esta ausência de envergadura, que significa, em outros termos, não apenas a
ausência de leitura e compreensão tanto do jovem quanto do velho Marx,e de outros
autores como Bakunin, Kropotkin, aliada à leitura de autores atualíssimos sobre
o tema, como o Badiou, Derrida, mas a própria produção intelectual dos grupos.
Não há, e se há, não é suficiente.
Mas o recuo da maioria infinita não se dá pelo
reconhecimento desta falta de envergadura política, e sim porque, neles, a
possibilidade de envergadura política nem mesmo alça algum feixe de possível
presença. Se parece claro a despolitização de muitos jovens estudantes que se
põem muitas vezes na luta, o que diríamos da grande massa que se aparte desta
minoria?
Embora este fato triste, e ao mesmo tempo, até
esperado, em se tratando de um país em que a preguiça intelectual ainda é
grande problema, é preciso que haja sempre desconfiança na negação da luta por
parte dos demais em relação às lutas dos estudantes contemporâneos.
Ainda que haja ingenuidade intelectual, há uma arma
que eles sabem utilizar muito bem, que é o discurso da indignação, coisa que já
critiquei em outro texto publicado aqui (Os índios e o Brasil: Da história às redes sociais),
que se revela, muitas vezes, como apelativa. A linguagem publicitária do
sistema culminou por estar presente em muitos dos discursos que deveriam se
propor como um discurso mais politizado. Hoje, por fim, usarmos os termos
“propaganda de esquerda” ou “propaganda de direita” é mais vigente do que o
discurso político para ambos.
Mas é preciso que a luta de uma esquerda crítica de
si mesma permaneça, que resistaao titubeios e disfarces das novíssimas
esquerdas que não tem nada de esquerdas. O que ocorre é que a direita se
apropria das conquistas da esquerda e assume tais conquistas como próprias do
direitismo político. Aqui a propaganda tem um papel fundamental, ao divulgar
que sem a direita, as conquistas adquiridas não receberiam a gestão devida.
I
Por fim, a esquerda começa a ser objeto da direita
e o perigo se mostra tanto pior no momento em que a esquerda entra na
ingenuidade de que está promovendo alguma luta política inovadora, quando, em
verdade, está sendo aproveitada pelos direitistas. O mínimo de esclarecimento
intelectual aqui bastaria aos entusiastas de esquerda para evitar isso.
É preciso que, para além de ler os clássicos
teóricos do Comunismo, se pense para com eles e para além deles, no sentido de
conduzir uma força de reflexão política e não uma comunidade hagiográfica do
pensamento da tradição. Como já pensou muito bem o Maurice Ravel, “a tradição é
a personalidade dos imbecis”. E o próprio Marx guarda como cerne de sua crítica
a economia política uma fundamental crítica à religião. Com toda certeza, ele
não esperaria dos comunistas uma genuflexão ao seu pensamento como uma doutrina
a ser honrada. É pensamento crítico, não religiosidade. Isto é básico. Esta
atitude ingênua acarreta na ridicularização cada vez mais declarada da atitude
política por parte dos jovens que se dizem de esquerda.
Deve-se entender que, se o nosso país ficou repleto
de pessoas nas ruas isso não se deu de uma maneira estritamente revolucionária.
Houve uma propaganda de direita que se aproveitou dessa conjuntura e ali, nas
universidades, os estudantes que sempre estiveram nos protestos ficaram
ingenuamente felizes com a repercussão, ao passo que os que sempre recuavam agora
aderiam às manifestações.
Há muitos que criticam as manifestações por uma
ausência de direcionamento de pautas, mas esta crítica é um tanto falha. Em um
país cujas decisões políticas são todas ao mesmo tempo muito falhas, as
manifestações só podem também revelar esse mosaico de decisões a serem
corrigidas. O problema não é o pluralismo das manifestações, mas o pluralismo
carnavalesco de decisões que se pretendem políticas para o país.As
manifestações são apenas uma decorrência natural de um palácio de governo no
qual a bacanal de leis irrisórias acontece com frequência e vem se acumulando a
cada ano, desde Fernando Collor.
O problema é que a política do Brasil é feita por
analfabetos políticos que alimentam outros analfabetos políticos, no sentido
Brechtiano. Se engana quem acha que está à frente de modo crítico disso por
levantar um cartaz nas ruas. O neoliberalismo consiste em aderir a todas as
tomadas contrárias a ele para, ao invés de conservar e tornar-se estéril a
partir da coibição, ampliar e multiplicar seu mercado a partir da aceitação.
Isso explica porque, dentre tantas outras coisas, Marx é emblema do cartão
mastercard em Chemntiz na Alemanha, porque Che Guevara é emblema de camisas de
marca, e o personagem de V de vingança é mercadoria querida dos manifestantes
brasileiros que, ao comprarem o produto, geram royalties para a Warner.
Estamos encurralados. E não digo isso
solitariamente. De uma maneira sofisticada e através da literatura, George
Orwell, na obra “1984”, retrata antecipadamente muito bem isso. E sua crítica é
tão ferrenha que traz esquerda sendo comparada ao a direita tem feito conosco.
E nos coloca a pensar que o que a direita fez é o que também a esquerda faria
se chegasse ao poder, a saber, controlar a todos para evitar que a direita
viesse a tona outra vez. Há a descrição do controle de mídia, jornais, a
comunicação do grande irmão, o famoso Big Brother, com os seus governados que
são, por isso mesmo, manipulados.
Penso que a saída, se houvesse ou se houver,
estaria, em alguma boa porcentagem, na revisão de algumas propostas feitas por
Bakunin, na sua critica radical ao estado, uma vez que o problema reside, como
vemos, na estrutura desse poder que existe, ao menos teoricamente, para nos
tonar mais dignos de uma vida social, o que é uma douta mentira. A erradicação
do Estado seria, de acordo com Bakunin, a erradicação das possibilidades de uso
excessivo de poder sobre os outros, para o bem ou para o mal. Ah, mas isto, nos
dizem, é anarquia! Sim, é anarquia contra outras anarquias soberanas.
É necessário saber que não estamos em Maio de 68,
mas muito provavelmente estejamos em 1984 de George Orwell, no estilo bem
abrasileirado.
II
Pergunto a vocês, leitores comunistas e
anarquistas, seria essa juventude brasileira, que está nas ruas, politizada? Em
um recente artigo na Revista Carta Capital (edição 754), Vladimir Safatle chega
a ser muito peremptório ao dizer que essa é a época de uma consciência política
no Brasil. Com exceção do brilhantismo de seus pensamentos, não vejo meios para
concordar com uma ideia tão deslumbrada.
Em primeiro lugar uma manifestação política em
forma de protesto não pode ser esperada. Ela deve chegar de surpresa. Neste
caso, a manifestação de fato que protestou aconteceu uma única vez, a primeira
manifestação em São Paulo.
Mas, em um lugar no qual os militares esperam, em
sua maioria, de maneira tranquila, em que boa parte das lojas da cidade fecha,
como ter voz de impacto a manifestação que ali chega? Em segundo lugar, como
pode haver uma consciência política se a juventude está despolitizada, mesmo
quando ousa falar muito mais por euforia, do que por compreensão, de
política?No meio desta juventude se metem os outros jovens direitistas cantando
e muitas vezes fazendo os outros de esquerda também cantar “deitado eternamente
em berço esplêndido”. Ora, como dizer que estamos deitados eternamente em berço
esplêndido? O Movimento Sem Terra esteve presente nas manifestações e foi
vaiado em muitas cidades. Seu grito foi substituído pelo “deitado eternamente
em berço esplêndido”. Que tipo de consciência política é essa que está indo às
ruas?
O problema é que não importa o que façamos, se o
fazemos numa apelação e firmação do poder do estado, o resultado disso será
reconfigurado pelo neoliberalismo atual e que se imiscui nas decisões políticas
do país. Aqui, a teoria do “menos Estado” no pensamento liberal cai por terra.
O próprio Estado detém princípios liberais, não nos enganemos.
Um exemplo. Eugênio Gudin, economista brasileiro na
época do presidente Café Filho (década de 50) defendeu a teoria de que recuar e
diminuir os impostos não resolve nenhum problema. O que precisa ser feito é
procurar um meio do país ter condições de conviver com o aumento dos impostos.
Mas, talvez ele não tenha pensado que, em geral, se há aumento de impostos,
algo vai mal na economia do país. É necessário que se reveja o número
significativo que um governo paradoxalmente tirânico e populista investe em
subsídios favorecedores de uma ideia de política da caridade, como o
programa Bolsa Família, que substitui uma política, para além do ideal de
Estado, reinventada para uma emancipação da educação, trabalho e liberdade
intelectual, no meu ver, importantíssima para um país doente pelo analfabetismo
político.
A medida dos subsídios não só servem para investir na separação entre
o que se toma como “o miserável que recebe ajuda” daquele que não precisa de
ajuda, como serve para enrijecer o poder do estado a insuflar no povo a
necessidade de ter um estado que lhe seja, sempre e cada vez mais, superior, temível
e, na ajuda, divino, tal como Deus. Não foi a toa que Bakunin associou o Estado
ao significado de Deus.
III
Acredito que das ideias anárquicas, já que seu todo
não consegue se manter, o que deve ser mantido, e o mais importante, é a recusa
permanente do poder excessivo de Estado sobre decisões que comprometem a
dignidade social do povo. Quanto ao Socialismo, nós sabemos, não podemos
esbravejar tal nome com tanta alegria. Hitler já o fez suficientemente a ponto
de não ser preciso nenhuma referência ingênua a esse termo. Se trata de um
termo atualmente muito genérico, a ponto de perder o sentido. Também não
falemos, com raras exceções, em Comunismo, não porque não tenha dado certo na
União Soviética, como muitos argumentam (o que me parece um argumento de certa
forma vazio), mas porque sua proposta deve ser repensada.
Proponho que possamos
não apenas falar, e sim por em prática algo próprio do Comunismo, que é a
crítica à alienação e, acrescente-se, que essa crítica não seja feita à
alienação da massa, mas também e com urgência à própria alienação dos
intelectuais e dos estudantes em relação às suas posturas atualmente
doutrinadas.
A crítica contemporânea à alienação começa muito
bem com uma crítica aos donos da mídia, que favorecem um Estado, para além de
corrupto, mafioso. Mas é preciso lembrar que esta crítica não deve ser feita
com um elogio auma outra mídia alternativa, embora ela precise existir, mas não
isoladamente. O protesto deve estar seguido de uma negação a todo e qualquer
tipo de hegemonia midiática sobre nossas cabeças frágeis e preguiçosas.
Nada pior e mais deplorável do que repetir o termo “revolução”, os nomes “Marx”
e “Che Guevara” sem saber o que tudo isso significa e fazê-lo tão só por uma
atitude hagiográfica. Uma mídia que viesse substituir a Globo, mas que para se
manter manipulasse um novo povo, provocaria um espírito tão fascista como o que
a Globo injetou em seu público. Ocorreria o que de fato Orwell mostrou muito
bem em seu romance“1984”, como falei acima.
Muitas pessoas estiveram e estão segurando seus
cartazes coloridos e sorrindo nas ruas. Pareciam e parecem condizer com alguma
mensagem subliminar que diz: “Sorria, a manifestação está sendo manipulada”. E
a pesar disso, sorriem. E é perfeito para eles que esteja tudo odiável e que o
ódio seja festejado, até que as eleições cheguem com suas novas promessas
teatrais supostamente acolhedoras de um país de “risonhos lindos campos”, que
em verdade, está abandonado por leis que deplora seu povo há muitos anos. Nada
mudou, o que precisa mudar é tão somente a recepção do que não é nada
novo. No dizer mais poéticode Maiakóvski,“... Não há nada de novo no
rugir das tempestades”.
*Ana Monique Moura - é doutoranda em Filosofia -
UFPB. Autora do livro “Entre Kant, Filosofias e Arte”, 2012.
Fonte:http://www.brasildefato.com.br/node/13665
19/07/2013
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