Empresa já foi indiciada por prática lesiva à
economia e condenada por problemas de terceirização trabalhista.
Guilherme Zocchio, da Repórter Brasil
“Confiança, franqueza e amizade como base das
relações internas e externas” não pareciam ser os valores que havia no vínculo
entre a Citrosuco e um grupo de 26 dos seus empregados da colheita de laranja,
resgatados de regime de trabalho análogo ao de escravo no último 2 de julho. A
frase que abre a reportagem, slogan na página da internet da companhia, destoa
da situação verificada pela vistoria realizada por dois auditores fiscais do
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e um procurador do Ministério Público do
Trabalho (MPT) em dois laranjais da empresa, no interior de São Paulo. O
contingente foi encontrado e libertado após uma denúncia recebida pelo MPT.
A fiscalização constatou que as 26 vítimas
sofriam restrições à liberdade de ir e vir e estavam sujeitas a condições
degradantes de trabalho e vida nas propriedades Fazenda Água Sumida, em
Botucatu, e Fazenda Graminha, em São Manoel, cidades na região centro-sul
paulista. A Citrosuco foi multada pelo MTE e ainda pode responder a processo na
Justiça, além de sofrer outras sanções administrativas, como a entrada na
“lista suja” do trabalho escravo ou a perda dos direitos econômicos. Ao
todo foram lavrados 25 autos de infração contra a empresa.
O MPT sinaliza que, pelo flagrante de escravidão,
deve entrar com uma ação civil pública para processar a companhia na Justiça do
Trabalho. Caso condenada em segunda instância, a Citrosuco pode ter o
registro no Imposto de Circulação de Bens de Mercadoria e Serviço (ICMS)
cassado junto à Secretaria Estadual da Fazenda de São Paulo, com base na lei
nº 14.946/2013, conhecida como “lei paulista contra a
escravidão”. “Uma empresa desse porte não pode, de forma alguma, fazer esse
tipo de contratação [em regime de trabalho escravo]”, justifica o procurador do
MPT presente na fiscalização, Fernando Maturana.
Na prática, a lei paulista prevê que pessoas
físicas ou jurídicas condenadas pelo uso de mão de obra escrava fiquem impedidas
de exercer o mesmo ramo de atividade econômica por um período de dez anos.
A empresa pode tornar-se a primeira a ser enquadrada na nova legislação do
Estado. Esta não é primeira vez, contudo, que a gigante produtora de suco de
laranja enfrenta problemas com o Poder Judiciário ou ações
administrativas por parte do Poder Executivo. Em posicionamento à Repórter Brasil, a
Citrosuco afirma que “em relação à fiscalização realizada pela Delegacia
Regional do Trabalho a empresa está avaliando as medidas cabíveis a serem
tomadas”.
Mercado concentrado
A empresa é a divisão responsável pela fabricação
de laranja e derivados do Grupo Fischer, um dos maiores conglomerados do setor
de frutas e sucos cítricos que atuam no mercado brasileiro. A corporação ainda
se divide entre a Fischer S/A e a Companhia Brasileira de Offshore (CBO), ramo
de navegação e apoio a plataformas marítimas. Juntamente de Cutrale e
Louis Dreyfus, a Citrosuco suco integra um restrito coletivo de apenas três
grandes produtoras de suco de laranja no Brasil.
Em 2006, o trio foi alvo da “Operação Fanta”,
deflagrada pelo Ministério Público Estadual de São Paulo (MPE-SP) e a Polícia
Federal (PF), para investigar o crime de formação de cartel. No Conselho de
Administração Econômica (Cade), autarquia vinculada ao Ministério da Justiça
que tem por objetivo zelar pela livre concorrência, o grupo de empresas também
responde a processo administrativo por prática lesiva à ordem econômica. Ainda
durante o começo deste ano, as três companhias também foram condenadas
a pagar, juntas, R$ 400 milhões pela Justiça do Trabalho, devido a problemas de
terceirização de mão de obra no setor.
Segundo informações do próprio Grupo
Fischer, a Citrosuco exporta mercadorias para mais de 90 países. Em
2011, além disso, a empresa anunciou, com outra então gigante do setor, a
Citrovita, que pertencia ao Grupo Votorantin, a intenção de se fundir e formar
uma única empresa. A fusão, aprovada pelo Cade no final daquele ano, desde
que cumpridas certas exigências, reduziu o número de indústrias atuando no
setor, então em quatro, para apenas três.
Flagrante de escravidão
Segundo Renan Barbosa Amorim, auditor fiscal do MTE que coordenou a fiscalização nos dois laranjais da Citrosuco, o grupo de 26 trabalhadores resgatados da escravidão havia sido aliciado no município de Ipirá, interior da Bahia, por uma funcionária administrativa da companhia, responsável pela formação das turmas de trabalho. Também participou da ação o auditor Fernando da Silva. Saído do sertão baiano no último 2 de maio, os migrantes chegaram a São Paulo com a promessa de receberem bons salários, um alojamento custeado pelo empregador, para residirem durante o ofício temporário, e condições dignas de serviço.
No período em que permaneceram no Estado, as
vítimas, porém, acumularam dívidas, receberam uma quantia abaixo do piso
mínimo paulista, estiveram impedidas de romper o vínculo trabalhista e
sobreviveram em uma casa sem quaisquer condições de habitabilidade. “A
fiscalização entendeu que faz parte do procedimento padrão da empresa o uso de
um preposto dela para trazer pessoas de fora e formar turmas de trabalho na
colheita da laranja”, explica à Repórter Brasil o
fiscal Renan Amorim. Conforme o MTE, todos os 26 resgatados eram registrados
pela Citrosuco. Após acordo firmado entre empresa e MPT, em 11 de
julho, os trabalhadores retornaram ao município de origem, com o
recebimento das verbas rescisórias e o custo da viagem pago pelo empregador.
Para o procurador do MPT Fernando Maturana, a
Citrosuco fez a receptação daqueles trabalhadores de modo a tirar “vantagem econômica”.
A conduta da empresa pode ser interpretada através da “teoria da cegueira
deliberada”, quando um acusado de certo crime nega participação por não estar
diretamente envolvido, mas, ainda assim, tira daquela prática algum tipo de
benefício. “A Citrosuco precisa daquela mão de obra mais barata para tirar
vantagem econômica e fecha os olhos para a forma como é feito o aliciamento.
Chamou muito a atenção a forma como eles entregam a contratação de
trabalhadores a um preposto.”
Os trabalhadores, assim que chegaram à região de
Botucatu, receberam a indicação de uma casa em que poderiam ficar, durante o
período em que estivessem em
São Paulo para realizar o serviço, e cujo aluguel seria
custeado pela empresa. De acordo com a fiscalização, a residência, no
entanto, não dispunha de banheiros e era pequena demais para um grupo de 26
pessoas.
Segundo os fiscais, a Citrosuco se negou a bancar a permanência em
outro local que não aquele indicado primeiramente, mesmo depois de os
trabalhadores terem passado a procurar por outra forma de residência. As
próprias vítimas passaram a custear seu alojamento em outro local, que era
somente um pouco maior e não estava em condições tão melhores quanto o
anterior. Hoje, segundo o auditor do Ministério do Trabalho, a casa em que o
grupo residia é utilizada pela proprietária para a criação de galinhas e outros
animais. A situação do local serviu como base para caracterizar a condição
degradante do trabalho desempenhado pelo grupo de resgatados.
Com o aval de um funcionário, a empresa, além
disso, indicou aos 26 trabalhadores o mercado de um terceiro envolvido no
caso, no qual o grupo escravizado deveria abrir uma conta para comprar seus
alimentos. Nas fiscalizações de trabalho escravo no campo, essa cadeia de
compra de mantimentos em local determinado pelo empregador é conhecido como
“sistema de cantina”. Normalmente, as pessoas escravizadas acabam por somar
dívidas com o estabelecimento de tal forma que ficam presas ao local até
saldarem o valor que devem. O grupo de 26 escravos chegou a acumular um débito
de mais de R$ 15 mil com o comércio.
“Os trabalhadores chegaram a dizer que passaram
fome, no momento em que houve a denúncia e também quando a fiscalização chegou
ao local, porque não tinham mais como pagar as dívidas no mercado e comprar a
própria comida”, detalha o auditor Renan Amorim. O fiscal do Ministério do
Trabalho reforça que o caso de trabalho escravo caracterizou-se mais por uma
forma de “violência indireta”, não tanto explícita, levando-se em conta as
condições degradantes e a restrição da liberdade do grupo escravizado. O grupo
esteve preso não só pelas dívidas acumuladas, mas também porque reteve suas
carteiras de trabalho. “Isso impedia, por exemplo, que eles deixassem o local
para procurar outro emprego”, acrescenta.
No momento em que a fiscalização chegou ao local,
contudo, o grupo não desempenhava qualquer tipo de serviço. De acordo com os
fiscais, não foi possível, portanto, verificar outras infrações cometidas pela
Citrosuco, como o fornecimento ou não de Equipamentos de Proteção Individual
(EPIs) ou o treinamento para o manuseio de ferramentas e agrotóxicos que os
trabalhadores poderiam vir a precisar.
O fato de os 26 empregados da Citrosuco
estarem ou não realizando qualquer atividade não diminui o flagrante de
escravidão, conforme explicam os auditores do MTE, já que, de toda a forma, os
trabalhadores mantinham vínculo e se viam obrigados a estarem à disposição da
empresa, até o momento em que foram resgatados.
Foto: PRT-15
Fonte:http://www.brasildefato.com.br/node/14473
26/07/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário