A realização de uma assembleia constituinte
exclusiva com representantes externos ao Congresso Nacional poderia abrir
precedentes para uma maior politização do debate acerca da reforma política,
algo muito inconveniente para o governo, a oposição de direita e a imprensa.
Os protestos recentes, que tomaram as ruas de
várias cidades do país, podem ser caracterizados como uma combinação de
espontaneísmo com movimento organizado. O espontaneísmo tem se manifestado por
meio de pautas difusas que questionam a malversação das verbas públicas, a
corrupção no sistema político, a legitimidade dos partidos políticos, entre
outros pontos.
Trata-se de pautas com conteúdo progressista, mas facilmente
apropriadas pelas forças conservadoras, justamente por se fixarem no plano das
denúncias, sem apresentarem medidas concretas para solucionar as mazelas
apontadas. Já o movimento organizado tem se valido da reivindicação de pautas
concretas, frutos, na maioria das vezes, da experiência de lutas travadas por
diversos grupos políticos e movimentos sociais ao longo das últimas décadas.
Queremos ressaltar, com isso, que as lutas pelo passe livre, por mais verbas
para a educação e para a saúde, pela tributação das grandes fortunas, pela
redução da jornada de trabalho, pela democratização da mídia, não surgiram em
junho de 2013, mas são resultantes de muitos debates e embates realizados nas
ruas e nos mais variados espaços sociais. São exatamente as pautas concretas,
construídas nas lutas, que têm sido até agora vitoriosas, o que nos leva a
salientar a importância da mobilização e da organização na luta por direitos e
pela ampliação de conquistas democráticas.
Quem tem acompanhado o noticiário deve ter
percebido a dificuldade que os diferentes governos e prefeituras têm tido para
compreender e lidar com os protestos. Entre a indisposição para a negociação e
a tática de neutralizar os protestos, com a inserção de pautas secundárias
presentes nas manifestações de maneira difusa, governos e prefeituras, com o
apoio da mídia, têm tomado clara orientação, nos últimos dias, no sentido da
neutralização dos movimentos. É preciso ressaltar que, desde a crise política
de 2005, a bandeira da reforma política tem sido defendida com unhas e dentes
pela burguesia brasileira para se livrar de eventuais “conturbações” das
massas. Ao contrário do que pregava a esquerda e a centro-esquerda, não
vivíamos a iminência de um golpe das elites, pois a maior parte destas vinha
defendendo a reforma política – e não, o impeachment de Lula. Basta ler o
documento “Agenda mínima para a governabilidade”, entregue ao governo Lula por
seis entidades empresariais (CNI, CNA, CNT, CNC, CNF e Ação empresarial), em
agosto de 2005, e as declarações dos presidentes da Fiesp e da Febraban, na
mídia, para chegarmos à conclusão de que a burguesia brasileira não queria
conviver novamente com o movimento de massas que tomou as ruas de todo o Brasil
em 1992 para pedir a cabeça de Collor de Mello - hoje, aliado dos governos Lula
e Dilma.
A defesa da reforma política é retomada, agora, não só como uma forma
de neutralizar as manifestações de massa que vêm questionando as cláusulas
pétreas da rolagem da dívida pública e da isenção fiscal, e concessão de
serviços e atividades públicos ao capital privado, mas também como um meio de
superar a instabilidade política que atingiu o país. Além disso, é uma pauta
que pega de surpresa o movimento organizado, não havendo sequer acúmulo
suficiente por parte deste para debatê-la. Alguns poderiam dizer que a inserção
do tema na pauta dos debates nacionais, ajudaria a fomentar o conhecimento da
matéria. No entanto, é preciso reconhecer que o que se pode ou não fazer com
uma reforma política, o significado de uma assembleia constituinte exclusiva e
as diferenças existentes entre plebiscito e referendo se apresentam como
questões bem distantes da compreensão do grande público e de parte considerável
da intelectualidade e das forças e movimentos progressistas organizados. Se
desejasse realizar mudanças substanciais e progressistas com a reforma
política, o governo Dilma teria que primeiramente ouvir e negociar a matéria
com tais forças e movimentos, de modo a amadurecer a proposta e permitir que a
mesma ganhasse capilaridade. Nada disso fez, preferiu o voluntarismo,
tornando-se presa fácil da oposição de direita, dos partidos de aluguel aliados
e das forças conservadoras que compõem o seu governo.
Para fazer o jogo de que é um governo progressista,
a presidente Dilma sugeriu a ideia de que a reforma política poderia ser
debatida por meio da organização de um plebiscito que aprovaria uma assembleia
constituinte exclusiva sobre o tema. No entanto, em menos de 24 horas depois de
ir à rede nacional lançar a proposta, a presidente Dilma, sob pressão da
própria base e da oposição, procurou abortar a ideia inicial da assembleia
constituinte exclusiva. Se acreditássemos no que diz o governo, a oposição de
direita e a imprensa, seríamos levados a concluir que a medida era
inconstitucional e por isso não poderia ser levada adiante. Do ponto de vista
jurídico, não há consenso sobre a matéria, já que alguns especialistas da área
do direito têm defendido a constitucionalidade da proposta. No entendimento
desses especialistas, para autorizar a realização de um plebiscito para aprovar
ou não a assembleia constituinte exclusiva, a presidente da República
precisaria encaminhar uma proposta de emenda constitucional ao Congresso
Nacional, que, por sua vez, teria que aprová-la por maioria qualificada. Do
ponto de vista político, diferentemente do método adotado pela assembleia constituinte
de “congressistas” de 1987-1988, a realização de uma assembleia constituinte
exclusiva com representantes externos ao Congresso Nacional poderia abrir
precedentes para uma maior politização do debate acerca da reforma política,
algo muito inconveniente para o governo, a oposição de direita e a imprensa.
Obviamente, o problema não era jurídico, mas político!
A recente divulgação dos cinco temas propostos pela
presidência da República ao Senado indica claramente a natureza despolitizada
do debate em curso sobre a reforma política. Os cinco temas sugeridos são os
seguintes: 1) financiamento de campanha; 2) sistema eleitoral; 3) suplência do
senador; 4) fim do voto secreto em deliberações do Congresso Nacional; 5) fim
das coligações partidárias proporcionais. Com exceção da questão do fim do voto
secreto nas decisões do Congresso, todos os demais seguem a lógica da reforma
política sem reformas. O ponto do financiamento de campanha é importante, mas o
fundamental é saber como se daria a distribuição do financiamento público, caso
seja aprovado o financiamento público exclusivo. Já o tema do sistema eleitoral
foi inserido no plebiscito para gerar confusão, pois a votação pode seguir
várias diretrizes: voto majoritário, voto proporcional com lista fechada, voto
proporcional com lista flexível, voto distrital, voto distrital misto. Aqui o
propósito do plebiscito parece se confundir com uma prova objetiva de ciência
política, de marcar “X”. A questão da suplência do senador chega a ser risível
e está muito distante de ser uma preocupação nacional para ser votada num
plebiscito. Imaginem-se as manchetes de jornal informando que o Brasil realiza
plebiscito para aprovar a permanência ou não da suplência do senador... Por
fim, é curioso constatar a inserção da votação sobre a continuidade ou não das
coligações partidárias nas eleições proporcionais. Isso não faz o menor sentido
se colocado no mesmo regime de votação do sistema eleitoral, pois, caso
vencesse a proposta do voto distrital - tão desejada pela oposição de direita -
a votação das coligações nas eleições proporcionais não teria nenhum efeito.
Pelo exposto, torna-se urgente ampliar os espaços
de debate sobre a reforma política. Se, num primeiro momento, estava correta a
crítica à manobra do governo de dar centralidade à pauta da reforma política,
consideramos que, agora, chegou o momento de mudar de posição.
A despeito da
queda da popularidade da presidente Dilma, devemos reconhecer que ela conseguiu
transformar a pauta da reforma política numa pauta central. Assim sendo,
entendemos que cabe à esquerda e às forças progressistas enfrentar o debate e
politizá-lo. É com essa preocupação que indicamos abaixo um conjunto de ideias
e medidas que devem ser minimamente debatidas e consideradas, caso não
queiramos transformar a reforma política numa enquete despolitizada que não
aponte para mudanças substanciais, mantendo tudo como está.
Para ser didático e correndo o risco de ser
superficial, apontamos questões que deveriam ser trabalhadas por uma reforma
política ampliada, portanto, não meramente restrita ao âmbito partidário e
eleitoral:
1) Criação de mecanismos de controle popular
a) Criação de mecanismos para a realização de
amplos debates, na sociedade, sobre a reforma política, promovendo-se a reforma
por meio de assembleia constituinte exclusiva desde que garantida a
participação de representantes dos movimentos popular e sindical.
b) Instituição do mandato revogatório. Após metade
do mandato, desde que preenchido o requisito mínimo de 20% de assinaturas do
total de eleitores, seria concedida à iniciativa popular a prerrogativa de
realizar referendo para aprovar ou não a continuidade do ocupante do cargo
executivo. Tal dispositivo existe na Constituição de outros países, como é o
caso da Venezuela.
c) Extensão da prerrogativa de convocar plebiscitos
e referendos sobre temas de relevância nacional à iniciativa popular, desde que
preenchido o requisito mínimo de 20% assinaturas do total de eleitores.
2) Poder econômico e política
A reforma política não resolverá o problema da
influência do poder econômico sobre o processo eleitoral, pois as desigualdades
socioeconômicas existentes nas sociedades capitalistas não colocam todos os
indivíduos em condições de igualdade de participação política, seja como
candidato, seja como eleitor, nos processos eleitorais.
Nesse sentido, faz-se
necessário construir, para além de uma defesa genérica do financiamento público
exclusivo de campanha, uma pauta que detalhe como se dará a distribuição desse
financiamento e que estabeleça mecanismos para dificultar ou constranger a
influência do poder econômico nos pleitos eleitorais.
No âmbito da reforma política, as seguintes medidas
poderiam ser adotadas:
a) Aprovação do financiamento público exclusivo de
campanha. Medida a ser adotada não só para reduzir os custos de campanha, mas
também para ampliar as condições de concorrência dos partidos que não recebem
os volumosos recursos de empreiteiros, banqueiros e outros financiadores
privados, como os principais partidos: PT, PSDB, PMDB, PSD, etc.
b) Destinação do montante total do fundo partidário
ao financiamento público exclusivo de campanha: 50% do orçamento deveria ser
destinado a todos os partidos de maneira igualitária e 50% dos recursos
restantes deveriam ser distribuídos proporcionalmente de acordo com a
representação de cada partido nas instâncias legislativas federal, estadual e
municipal. Isso garantiria recursos mínimos para cada partido realizar sua
própria campanha e romperia, em certo sentido, com as assimetrias fomentadas
pelo atual modelo;
c) Criação de dispositivos punitivos mais incisivos
para os partidos que fizerem uso do caixa dois em suas campanhas eleitorais.
Uma possibilidade é transformar o caixa dois num crime inafiançável.
d) Proibição do pagamento de cabos eleitorais, com
previsão de multas com valores correspondentes até 50% do financiamento público
recebido pelo partido, no caso de desrespeito a esse dispositivo.
e) Garantia de uso de tempo igual no horário
eleitoral para todos os candidatos aos cargos executivos.
f) Garantia de divisão igualitária de 50% do tempo
do horário eleitoral para os partidos que disputam as vagas, nos legislativos,
e de distribuição proporcional dos 50% do tempo restante de acordo com a
representação de cada partido nos legislativos federal, estadual e municipal.
g) Garantir na TV e no rádio, durante o período
eleitoral, o mesmo tempo de cobertura da campanha dos candidatos aos cargos
executivos, seja na publicização das matérias, seja na realização dos debates
entre tais candidatos.
Além disso, seria de suma importância que a reforma
política viesse acompanha da regulamentação da taxação sobre grandes fortunas e
da aprovação do imposto progressivo com vistas a promover efeitos
redistributivos de amplo alcance e tornar o processo eleitoral menos vulnerável
à influência do poder econômico.
3) Combater o carreirismo
a) Indexação do salário de parlamentares e
ocupantes de cargos executivos ao salário mínimo e estabelecimento de um teto
de 10 salários mínimos.
b) Permissão de uma única reeleição e de, no
máximo, três mandatos não consecutivos para os ocupantes de cargos
parlamentares e executivos.
c) Matrícula obrigatória aos parlamentares e
ocupantes de cargos executivos de seus filhos em escola pública.
4) Voto
a) Manutenção do voto obrigatório.
b) Validação dos votos nulos e brancos, tendo em
vista sua importância para identificar o voto de protesto. Caso a soma dos
votos nulos e brancos seja superior ao percentual atingido pelo primeiro
colocado, convocação de novas eleições.
5) Fidelidade partidária e fortalecimento dos
partidos
a) Adoção, para as eleições de cargos legislativos,
da lista pré-ordenada de candidatos por partido, observando-se critérios de
gênero (50% de mulheres e 50% de homens). Tal dispositivo poderá contribuir
para neutralizar a força do personalismo político e para transferir a posse do
mandato para o partido do candidato. O parlamentar que desejar mudar ou sair do
partido de origem perderá o mandato, e o próximo colocado da lista do partido
passará a ocupar o seu lugar.
b) Criação de dispositivo para calcular anualmente
a taxa de infidelidade partidária nas votações, prevendo-se a perda automática
do mandato do parlamentar que contrariar em mais de 20% as decisões da bancada
do partido ou, quando for o caso, as decisões do Diretório Nacional do seu
partido.
Em resumo: para pensar numa reforma política
ampliada e efetivamente participativa, cabe aos setores de esquerda e
progressistas defenderem a realização de uma assembleia constituinte exclusiva,
caso contrário, corre-se o risco de transformar o plebiscito numa enquete
despolitizada e a reforma política numa farsa. Certamente, as mudanças mais
substanciais, ainda que nos limites da democracia burguesa, não ocorrerão sem
mobilização e movimento organizado nas ruas. Fica aqui também registrada a
pergunta: qual partido da ordem abraçaria o conjunto de medidas acima proposto?
Danilo Enrico Martuscelli é
graduado em Ciências Sociais, com mestrado em Ciências Políticas pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é pesquisador do Centro
de Estudos Marxistas da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).
Fonte:http://www.brasildefato.com.br/node/13462
05/07/2013
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