É inaceitável que ruralistas
concentradores de terras e exploradores da natureza continuem determinando os
rumos das políticas indigenista, agrária e quilombola.
Roberto Antonio Liebgott |
Nas últimas semanas, uma parcela
significativa da população brasileira se mobilizou e ocupou as ruas das grandes
cidades, nos mais diversos estados brasileiros, para combater os desmandos
políticos e a precariedade dos serviços públicos em nosso país. A partir de
então, parlamentares, tanto no Senado Federal, quanto na Câmara dos Deputados,
passaram a incorporar em seus discursos referencias ao "grito das
ruas", mas na pratica pouco fazem no sentido de acolher e contemplar as
reivindicações e apelos dessa massa atuante e participativa.
Paralelamente, a
mídia divulga denúncias que evidenciam a imoralidade no trato e uso dos bens
públicos por parte de ministros, senadores e/ou deputados. Surgem denuncias,
por exemplo, de uso indevido de bens públicos, a exemplo dos aviões da Força
Aérea Brasileira para fins particulares, por parte do presidente do Congresso
Nacional, Renan Calheiros, e do presidente da Câmara dos Deputados, José
Henrique Alves.
Na encenação de escuta das vozes
das ruas, parlamento e governo dizem que acolhem as reivindicações daqueles que
exigem a punição dos corruptos, assistência em saúde, educação, segurança e
transporte público gratuito.
Na vida real, no entanto, eles legislam e governam
para assegurar os interesses privados de empreiteiras e de latifundiários, a
quem, como sempre, são outorgadas as desonerações de tributos, as concessões de
financiamentos e liberação de verbas bilionárias (obras da Copa do Mundo, de
barragens, de estradas, de estrada de ferro, de aeroportos superfaturadas continuam
recebendo vultuosas quantias, enquanto permanecem contingenciados recursos
destinados a ações e políticas publicas).
Recentemente, depois das
mobilizações que povoaram as ruas e os noticiários televisivos, a presidente da
República resolveu que ouviria a população. Decidiu convocar alguns
representantes da sociedade, dos movimentos sociais, sindicais, populares e
indígenas para reuniões no Palácio do Planalto.
A reunião da presidente Dilma
com lideranças indígenas ocorreu no dia 10 de julho. Depois de ouvir as
propostas e críticas dos líderes, a presidente respondeu que vai tratar das
questões com cautela. E, acerca do tema específico da saúde, reconheceu que é
vergonhosa a atenção prestada aos povos indígenas. Questionada sobre os
procedimentos de autorização e de construção de hidroelétricas que impactam
terras indígenas, respondeu que este é um ponto em que haverá divergências
entre o governo e os povos indígenas.
A avaliação das lideranças
presentes nesta reunião, acerca da receptividade e da postura da presidente, é
de que o governo não está muito interessado nas pautas de reivindicações e na
garantia plena dos direitos deste e de outros segmentos sociais que não são
considerados produtivos ou empreendedores. As reuniões visam, na prática,
chamar os “insatisfeitos” e “escutá-los” para abrandar os ânimos e não
propriamente para assegurar o debate e o diálogo. O interesse do governo, neste
momento, parece ser tentar resgatar um pouco da popularidade que perdeu ao
longo dos últimos meses.
Essa postura de dialogar para
“inglês ver” ficou evidente no conteúdo das entrevistas pós-reunião com as
lideranças indígenas, especialmente do ministro da Justiça José Eduardo
Cardozo, que tem se firmado como uma espécie de porta-voz da presidente. Ao se
pronunciar, ele afirmou que o governo vai alterar o procedimento de demarcação
de terras, contrariando, portanto, as propostas e interesses indígenas.
Ou
seja, o governo continuará honrando os compromissos políticos estabelecidos, em
efetivo diálogo com os representantes dos ruralistas, das empreiteiras e
mineradoras. A reunião, que deveria servir para dialogar com as lideranças
indígenas constituiu-se, uma vez mais, em monólogo, já que o discurso e as
pretensões do governo, no que tange aos direitos indígenas, se mantiveram
inalterados.
Simultaneamente à reunião dos
indígenas com a presidente Dilma, a Comissão de Agricultura e Pecuária da
Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar 227/2012, que
pretende regulamentar o parágrafo 6º do Artigo 231 da Constituição Federal, e
com isso impedir demarcações das terras dos povos indígenas e ao mesmo tempo
inviabilizar o direito de posse e usufruto exclusivo destes povos nas áreas
demarcadas.
Pelo projeto de lei complementar,
as terras indígenas ficarão submetidas ao que se pretende caracterizar como
sendo "de relevante interesse da União". Isso significa que estradas,
oleodutos, linhas de transmissão, hidrelétricas, ferrovias, vilas e cidades
poderão ser construídas nas terras indígenas. E, para além, permite que as terras
fiquem submetidas aos interesses da iniciativa privada, a exemplo de
fazendeiros, posseiros, mineradoras, assentamentos do INCRA, antigos e novos.
A antropóloga Manuela Carneiro da
Cunha, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, argumentou que "esta
cláusula seria o equivalente da anistia que os ruralistas conseguiram no Código
Florestal. Mas dessa vez não se trataria de escapar de multas e de ter de
recompor paisagens degradadas. Seria legalizar e perpetuar o esbulho. Se uma
lei como essa passar, será a destruição dos direitos territoriais
indígenas".
Na audiência com a presidente da
República as lideranças indígenas se manifestaram contra o PLP 227/2012 e
solicitaram que ela orientasse seus líderes no Congresso Nacional a rejeitarem
o referido projeto. Na mesma semana, o líder do governo na Câmara dos
Deputados, deputado Arlindo Chinaglia, reconheceu que a tramitação acelerada do
PLP 227/2012 vinha ocorrendo graças a acordo entre o governo e a bancada
ruralista. O deputado foi além, declarando que recomendou a aprovação do
projeto, obedecendo a ordens do Palácio do Planalto.
Em função da grande reação e da
repercussão negativa sobre a tramitação do PLP 227/2012, o presidente da Câmara
dos Deputados não aprovou um requerimento de urgência para o projeto, como
pretendiam lideranças da maioria dos partidos, e determinou que o mesmo fosse
apreciado por uma Comissão Especial. Apesar de atender parcialmente as
manifestações dos povos indígenas, das entidades indigenistas, não há nenhuma
garantia de que o projeto, mesmo com a Comissão Especial, venha a ser apreciado
com a profundidade necessária.
Neste contexto de adversidades
políticas e econômicas, no qual ainda imperam interesses dos segmentos mais
favorecidos da sociedade, os povos indígenas e as comunidades quilombolas devem
manter suas mobilizações e articulações com outros setores sociais e, assim,
continuar lutando para impedir que seus direitos constitucionais sejam
desmantelados.
As mobilizações realizadas no ano de 2012 foram extremamente
importantes na luta contra iniciativas impostas pelo governo federal: a
publicação da Portaria 303 da AGU; a construção da hidroelétrica de Teles
Pires, no rio Tapajós; e contra o genocídio imposto ao povo Guarani-Kaiowá.
Também em 2013 os protestos indígenas contiveram a tramitação, na Câmara dos
Deputados, da PEC 215/2000 que vinha sendo articulada pela bancada parlamentar
da agropecuária.
É inaceitável que ruralistas
concentradores de terras e exploradores da natureza continuem determinando os
rumos das políticas indigenista, agrária e quilombola. É inaceitável que um
número reduzido de pessoas, cerca de 70 mil de acordo com o IBGE, concentre
impunemente 228,5 milhões de hectares de terras improdutivas; que 43% das
propriedades rurais tenham mais de 1.000 hectares de terras; que cinco milhões
de estabelecimentos rurais detenham mais de 360 milhões de hectares, sendo que
o território nacional conta com 851 milhões de hectares (dados do Censo
Agropecuário do IBGE-2006).
Esses dados explicitam a injusta,
absurda e inaceitável concentração de terras em nosso país. Terras que estão
sob o domínio de um punhado de fazendeiros que, através da CNA - Confederação
Nacional da Agricultura e Pecuária - atreve-se a questionar a demarcação de
terras indígenas com a alegação de que "é muita terra para poucos
índios". Os dados refletem que há, sim, uma vastidão de terras para poucos
“donos”. Esta é a grande injustiça, contra ela é que devemos nos unir e nos
mobilizar!
Roberto Antonio Liebgott
é vice-presidente do Cimi e integrante da Equipe Porto Alegre.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/14496
29/07/2013
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