Em
entrevista, o líder indígena Felix Diaz relata as agressões sofridas pelos
índios da etnia Qom na província de Formosa, no norte da Argentina.
Bruno
Moreno de Buenos Aires (Argentina)
Pablo Sanagachi tinha 19 anos quando morreu de
tuberculose, originada de desnutrição. Seu corpo ficou sete dias abandonado no
Instituto Médico Legal (IML) de Buenos Aires, na Argentina. Daniel Ajisak, 16
anos, recebeu um golpe na cabeça e também faleceu. Seus parentes afirmam que
foi agressão policial. O governo local diz que ele caiu de uma moto.
Os casos dos dois rapazes estão longe de serem
isolados e já estão virando regra. É o que diz Felix Diaz, líder da Comunidade
"Potae Napocna Navogh" (A Primavera), movimento de indígenas da etnia
Qom que há alguns anos luta pelo direito ao território e por condições básicas
de vida em Formosa, estado ao norte da Argentina. "Estamos sofrendo uma horrível
perseguição", afirma Diaz.
Nos últimos dois anos, os casos de agressão aos
indígenas da etnia vêm aumentando. Com eles, as mobilizações e embates entre a
comunidade e a polícia e os governos locais. A causa principal, nas palavras do
líder, é o conflito pelo território.
Nesse contexto, Felix Diaz surgiu como uma
voz incansável de denúncia dessa realidade. Seu caminhar conta com o apoio de
nomes como Eduardo Galeano e organizações da importância das Madres de Mayo. O Brasil
de Fato conversou com esse indígena de voz mansa e olhar calmo que, apesar
de também sofrer constantes ameaças de morte, acha que a "luta é o único
caminho para reverter essa situação".
Veja a entrevista abaixo:
O líder indígena Felix Diaz relata as
agressões sofridas pelos índios da etnia Qom na província de Formosa, no
norte da Argentina
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Brasil de Fato: As mortes e ameaças em Formosa
aumentaram nos últimos tempos. Qual é a relação entre as demandas da comunidade
Qom e essa violência?
Felix Diaz: Acreditamos que tudo isso passa pelo tema da luta
pelo território. Uma das coisas que nos afeta, pela qual sofremos, é que nos
opomos à invasão da pecuária, das plantações de soja. Isso tudo tem a ver com o
lado comercial, com os recursos da terra, do campo, as áreas usadas para a
soja. São muitos interesses na área em que vivemos. E esses interesses existem
há muitos anos na região. A democracia tem que começar a funcionar.
Democratizar a sociedade com a participação e conhecimento do que está
acontecendo. O que falta é a informação real dos direitos humanos, indígenas,
civis. A polícia intervém no território quando quer. Não se pode invadir uma
casa à noite, tomar decisões sem investigação. Sempre que um irmão morre, dão
várias desculpas. Dizem que é homicídio culposo, acidente. Quando um indígena
morre, é homicídio. Quando ele tem tuberculose, dizem que é morte natural,
parada cardíaca. Quando encontram pessoas enforcadas em casa, dizem que é
suicídio. Nunca investigam a fundo o que aconteceu. Tudo isso que estamos
vivendo nos gera desespero, porque não sabemos a quem procurar.
Brasil de Fato: A situação é igual em todo o país?
Felix Diaz: O roubo dos territórios dos povos indígenas é
generalizado. Muitos dos territórios saqueados são frutos da cobiça das
empresas multinacionais, madeireiras, de mineração, petróleo. Todos os recursos
que antes não serviam. Como não serviam antes, nos jogaram nessa região. Eram
tudo montanhas, lagos, sem utilidade. Não serviam para produção agrícola. Agora
servem e querem nos tirar de lá porque os recursos estão intactos. Estamos
sofrendo uma horrível perseguição. Não nos escutam. Também não temos a
possibilidade de discutir uma política indígena com o estado, porque não temos
contato direto com a participação das políticas que são tomadas em âmbito
nacional e estadual, apesar do Estado reconhecer nossa preexistência nessas
terras e garantir o respeito e o desenvolvimento cultural, ancestral,
tradicional e humano com nossos territórios. E as leis dizem que esses
territórios não podem ser embargados, não podem ser tirados da gente, não podem
trocar de dono. A Constituição estabelece pautas e garantias, mas elas não são
aplicadas porque o problema é a falta de legitimação dos direitos através do
Poder Legislativo. Precisamos regulamentar as leis que garantam a vida dos
povos indígenas
Brasil de Fato: E quais são as consequências desses
conflitos para a comunidade, além desses ataques?
Felix Diaz: Nunca nos deixam benefícios. Durante o processo de
democratização da Argentina, o povo indígena sempre foi excluído dos programas
sociais. Há muito tempo viemos denunciando isso, como a falta de água. E
existem outros danos ambientais na comunidade. Um dos principais é dos produtos
químicos usados nas fumigações da soja. E com a chuva, esses produtos químicos
caem em nossas casas, nos depósitos de água que fazemos com a água da chuva.
Muitos morreram por causa disso na comunidade. Temos problemas como
tuberculose, várias doenças. Entre 2007 e 2008, por exemplo, 65 pessoas
morreram por causa dessas substâncias.
Brasil de Fato: Mas como começou essa mobilização
pelo território que vocês reivindicam e o que o governo de Formosa e a
presidência estão fazendo?
Felix Diaz: Historicamente vivemos na região. Já em 1940 o
Estado reconheceu isso e através de um decreto reservou cinco mil hectares para
nós. Durante vários anos esse território foi reconhecido. Ratificaram esse
decreto em 1952, ratificaram em 1963. Mas em 77, na ditadura, fizeram um
reordenamento territorial e tiraram alguns indígenas desse território. Em 1985,
com a redemocratização, fizeram um novo reordenamento, mas tiraram ainda mais
os indígenas. Entregaram uma parte da terra, 2.042 hectares, a uma família
"criolla". Essas pessoas que agora têm parte da terra são poderosas,
têm gado e têm uma relação próxima com a polícia. Continuamos reclamando e, em
2005, tivemos esperança, porque o Estado implementou uma lei de emergência
territorial para o povo indígena. As terras seriam devolvidas. Era uma lei de
emergência, tinha que ser cumprida em quatro anos.
Brasil de Fato: E o que aconteceu?
Felix Diaz: Houve um inconveniente, porque a província tem a
autonomia em relação aos pdoeres Executivo, Legislativo e Judiciário. O Estado
nacional não pode se meter, porque Formosa é uma província autônoma e rejeitou
essa lei emergencial. Isso produziu um desequilíbrio na vida indígena. A lei
venceu em 2010. Não sabíamos mais o que fazer, reclamamos a todas as
autoridades competentes. Nada foi resolvido e tivemos que sair às ruas no dia
25 de julho de 2010. Ficamos quatro meses no meio da estrada protestando, mas
sem ter resposta do governo de Formosa. Eles tentaram nos desalojar, mesmo não
tendo um mandado judicial. Fomos reprimidos pela polícia de Formosa. Perdemos
um irmão, Roberto Lopez. Sua morte nunca foi esclarecida. Na ocasião também
morreu um policial, mas também ninguém esclareceu seu falecimento. De nenhum
dos dois. Apesar de toda essa repressão, nós fomos considerados responsáveis
pelas mortes. Fomos considerados responsáveis por instigar à violência, por
cometer delitos de usurpação de território, de agredir uma policial mulher.
Acusações inventadas pelos policiais, legitimados pela justiça local. Então
viemos à capital falar com o governo nacional. Pedir para que intercedesse na
devolução do território. Acampamos e fizemos greve de fome para exigir atenção
e uma resposta a essa demanda. O governo federal tentou resolver o conflito,
montou uma mesa de diálogo entre Formosa, o governo federal, e eu,
representando a comunidade.
Brasil de Fato: Conseguiram resolver?
Felix Diaz: Não porque aí entrou um problema grave, que é o de
representação. O governo de Formosa escolhe com quem ele quer falar na
comunidade. Não reconhecem o representante escolhido pela comunidade. Então
eles pegaram um irmão e o cooptaram. No nosso caso, o conflito foi com o filho
do cacique. Não é uma pessoa reconhecida pela comunidade, só pela província,
mas age em nome dela. Causa a divisão entre a gente. Então dão caminhonete de
presente, fazem de tudo para cooptá-lo. É o apadrinhamento político, que já
está naturalizado. Eles beneficiam certas pessoas da comunidade. Dão cargos
políticos, colocam dentro do poder estadual e escolhem o destino dos indígenas.
Dizem a eles como têm que falar, como tem que agradecer, como trabalhar. Apesar
disso tudo, e mesmo não sabendo direito como nos organizar, como espalhar essas
informações pelas pessoas, conseguimos inscrever a comunidade em uma
organização, a Potae Napocna Navogh (A Primavera). Precisávamos fazer a questão
da representação se tornar clara. E isso é muito difícil, já que essas
ferramentas jurídicas, eleições de membros, tudo isso vem de fora. Não dão a
possibilidade para que os indígenas definam sua própria política para poder
garantir a participação de todos.
Brasil de Fato: Há falta de vontade política e
preconceito por parte do Poder Judiciário local?
Felix Diaz: Há muito racismo por parte das autoridades
judiciárias e políticas. E também falta de compreensão sobre e formação de
profissionais que aceitem a cultura indígena. Falam muito de inclusão,
participação, mas isso são apenas palavras, não são reais. Quando você vai a um
território indígena vê esses problemas de que falei. Então, isso condiciona a
vida dos índios a mendigar para os políticos, e os políticos os cooptam com
migalhas. Quando chegam as eleições, os governantes pegam os documentos dos
indígenas e os controlam, intimidam, ameaçam. Então os indígenas não têm saída
de se opor ao sistema, porque ele é perverso. E você não pode dizer que não
quer. Se você se negar a seguir esse representante escolhido por eles, começam
a te pressionar e não te dão remédios, não te dão água. Os médicos não são
autorizados a te atender. Os índios não têm saída. Você não pode denunciar,
senão fica marcado. O sistema do estado de Formosa é muito feudal.
Brasil de Fato: Mas essa organização, apesar de
tudo, continua ativa...
Felix Diaz: Apesar de tudo, esse processo foi muito importante
com relação à política indígena. Nos deu a possibilidade de retomar e
fortalecer nossa identidade como povo e trabalhá-la através de nosso próprio
conhecimento, em relação à zona onde vivemos. Somos os melhores conhecedores
das realidades nos territórios porque vivemos e convivemos com o sofrimento e
padecimento da comunidade. Por isso, temos mais direito do que qualquer outra
pessoa de fora para dizer o que é que temos que fazer. E começamos a trabalhar,
capacitando nossos jovens, dando oficinas de direitos indígenas. São direitos
que foram escritos para garantir o respeito do direito à vida na Argentina. O
país aderiu a esse documento internacional, que diz que temos direitos que nos
correspondem como seres humanos.
Brasil de Fato: O atual governo kirchnerista se diz
progressista. Além de uma retórica de justiça social, uma das tônicas do Estado
são os julgamentos dos crimes na época da ditadura. E como os indígenas entram
nessa retórica, há investigação dos crimes cometidos contra vocês?
Felix Diaz: É uma das grandes lutas nossas. É que vemos que não
há mais necessidade de fazer convênios, porque as leis existem. Estão
estabelecidas na Constituição, no âmbito estadual e nacional. E também por
convênios internacionais. Mas os problemas que temos é que as leis não estão
regulamentadas. Estão todas à meia sanção e não podem ser usadas a favor dos
indígenas, não estão no Código Civil, por exemplo. Essa é uma das coisas que
dificultam nossas reclamações. Não há reconhecimento legal em relação a terras
comunitárias. Existem leis, especificamente, sobre a propriedade privada. Mas a
diferença é enorme em relação ao uso que fazemos, comunitário, da terra. Ela é
de todos, não só de uma pessoa. Abarca muitos espaços que para nós são
fundamentais. A terra é nossa vida. É lá que estão os recursos naturais para
podermos sobreviver, a caça, a pesca, matéria-prima para elaboração de
artesanato, construção dos ranchos. E também a espiritualidade. Tudo isso está
dentro do território. Sem esse espaço físico, o povo indígena não pode avançar
no desenvolvimento humano. Se você nos tira os territórios ancestrais, surgem
as doenças. E não temos dinheiro para tratamento de doenças graves, não temos
possibilidade de ter um bom trabalho. Há falta de ofício, falta de formação
acadêmica, falta de muitas coisas. Os indígenas não conseguem chegar a ser
médicos, advogados, algo grande. Há uma grande limitação na educação. Isso
dificulta nosso avanço. Quando você vê a lei de Formosa sobre os indígenas e analisa
os artigos, vê que a maioria não está regulamentada. Não podem ser usadas em
defesa da vida, do território, do povo.
Brasil de Fato: E o que o governo nacional está
fazendo efetivamente?
Felix Diaz: O que queremos é mostrar essa injustiça para a
sociedade em geral. Denunciar essa forma de discriminar, de olhar para algo
diferente e não aceitá-lo. Então estamos tentando dialogar com o governo
nacional. Agora estamos nos aproximando da secretaria de Direitos Humanos do
governo federal. Eles estão comprometidos a responder as denúncias que estamos
fazendo. Tomara que tudo seja solucionado em favor da vida. Se os indígenas
ficarem bem, o estado e o país também ficarão. Mostraremos ao mundo que temos
os mesmos direitos como cidadãos. Queremos mostrar para a sociedade que ela também
é afetada.
Brasil de Fato: Vocês têm apoio dessa sociedade?
Felix Diaz: Existe um grupo mínimo em Formosa que aceita nossa
condição de indígena e tenta fazer alguma coisa. Mas são minoritários e também
sofrem muita pressão. Esta semana falei com um jornal que nos apoia. Há uma perseguição
contra essas pessoas, jornalistas, donos dos jornais que apoiam a causa. Um dos
apresentadores de um jornal tem uma causa na justiça contra o Estado por causa
disso. Estão sendo atacados pelo Poder Judiciário da província. Acontece que
você acaba desistindo quando é ameaçado. Ninguém te socorre, porque estão todos
com medo. Estamos preocupados com essa situação, porque é muito duro e difícil.
Mas não perdemos a esperança que isso tem que mudar.
Brasil de Fato: O senhor acredita que o estado
argentino, que baseia sua política macroeconômica na exportação de soja e na
pecuária, vai realmente ter vontade de resolver essa questão? Não é uma luta
inviável?
Felix Diaz: A luta é o único caminho que pode reverter essa
situação. Se não lutarmos, fica pior. Você tem que lutar pelo que acredita, por
seus direitos. Tem que dar a vida por isso. Todos os direitos adquiridos são
produtos da luta. Trabalhadores, deficientes físicos, tudo através da luta.
Somos conscientes de que é difícil, mas que a luta é a saída para pelo menos
instalar o tema na sociedade. E que o Estado busque os mecanismos para resolver
esses conflitos, que são muito complexos.
Brasil de Fato: O senhor está sendo ameaçado de
morte constantemente. Tem medo de morrer?
Felix Diaz: Na verdade, se você morre, não é porque quer. É por
alguma coisa. Você nunca pode saber até quando viver. Quando tudo termina.
Então se eu recebi essa vida, tenho que viver do meu jeito, por amor às
pessoas. As ameaças são constantes. E quando querem te matar, não te avisam.
Não te dizem a hora. O importante é ignorar essas coisas e tentar lutar. E não
posso dizer quanto tempo vou ficar por aqui. Não posso prever meu destino.
Então tenho que aproveitar esse tempo, fazer com que a comunidade tenha saúde,
vida, território. Tudo que merece como povo. E nós não temos inimigos, porque
nunca fomos assassinos, nem ladrões, nem maltratamos ninguém. Nossa consciência
está tranquila, segura e serena, porque não temos dívidas com ninguém. Mas a
Argentina tem uma dívida social com os povos indígenas e, no nosso caso,
queremos que ela seja saldada com a devolução de nosso território.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/12242
08/03/2013
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